Boas lembranças para todos, bons festejos. E, sobretudo, um Ano Novo, com muita prosperidade, paz e amor.
Nota: Arte é a condição sine qua non para uma resolução alternativa.
sábado, 31 de dezembro de 2005
sexta-feira, 30 de dezembro de 2005
INTERVALO
Quem te disse ao ouvido esse segredo
Que raras deusas têm escutado
- Aquele amor cheio de crença e medo
Que é verdadeiro só se é segredado?...
Quem te disse tão cedo?
Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?
Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, porque o não direi,
Que o supôs feito, porque o só fingi
Em sonhos que nem sei?
Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?
Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca
- A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.
FERNANDO PESSOA
Que raras deusas têm escutado
- Aquele amor cheio de crença e medo
Que é verdadeiro só se é segredado?...
Quem te disse tão cedo?
Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?
Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, porque o não direi,
Que o supôs feito, porque o só fingi
Em sonhos que nem sei?
Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?
Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca
- A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.
FERNANDO PESSOA
quinta-feira, 29 de dezembro de 2005
Soneto desviado
Soletrava ela ou ele – não importa,
Pois nestas coisas do amor, o género
É puro detalhe –, na retina da solidão
Retirada do fino mel de mim.
E dizia, a cada momento, sua sentença
De ficar ou de partir e a viagem,
A mais dolorosa, diga-se, nesta nau
Onde são outros os azimutes de pertença.
Também outros, que não eu, caídos
À terra vermelha das coisas paradas,
Ajoelharão antes os deuses de esquina.
E saberão (dele ou dela) essa coisa louca,
Uma vontade de voo no improvável,
Que em mim lateja como um soneto…
Pois nestas coisas do amor, o género
É puro detalhe –, na retina da solidão
Retirada do fino mel de mim.
E dizia, a cada momento, sua sentença
De ficar ou de partir e a viagem,
A mais dolorosa, diga-se, nesta nau
Onde são outros os azimutes de pertença.
Também outros, que não eu, caídos
À terra vermelha das coisas paradas,
Ajoelharão antes os deuses de esquina.
E saberão (dele ou dela) essa coisa louca,
Uma vontade de voo no improvável,
Que em mim lateja como um soneto…
Passaja d’óne
Uma espécie de nuvem atravessa a manhã e se instala, nublada e cinzenta, na minha alma. Não sei se da geofísica ou se da minha tristeza, mas o certo é que jamais verei a águia que por mim passou e, se calhar por leviano romantismo, me deixou este travo de saudade. Também confesso que a divisa entre um ano que finda e outro que começa me deixa entre a euforia e a nostalgia. Quem dera poder, como os demais espantar os fantasmas que, noite e dia, invadem cá dentro as minhas catedrais. Tudo se esvai. Inexorável é a areia que vai com o vento. Insustentável este sentimento de perda que a pertença, quase sempre, não processa. Estou na beirada do rio Charles, em Boston. Numa ruidosa rua de São Paulo. Ou, no alto do Monte Verde nesta friorenta manhã, onde a águia atravessa o meu estado da alma. Não sei se da geofísica ou se da minha tristeza…
quinta-feira, 22 de dezembro de 2005
NO CAMINHO COM MAIAKÓVSKI
por Eduardo Alves da Costa
Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.
Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na Segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.
Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne a aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.
Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.
E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita - MENTIRA!
Nota do Blogueiro:
Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.
Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na Segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.
Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne a aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.
Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.
E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita - MENTIRA!
Nota do Blogueiro:
Natal: rebuliço do vento
Venta. Lembro-me da minha tia-avó Mamazinha a discorrer sobre o equinócio. Lá fora o rebuliço do vento. Aquele redemoinho. O silvo de uma melopeia triste. Dos que cortam na alma. E o fino corte na fímbria da tristeza. Das que se revelam apenas num olhar de soslaio. Relance de transeunte. Fugaz estrela. Ou tão-só cadente. A riscar o céu. As luzes, os sons, as gargalhadas, a mesa farta e o pinheiro enfarpelado se esvaem na retina desse espelho. De nada adianta a multidão se cá dentro deambula, alheio ao vento, um homem só…
quarta-feira, 21 de dezembro de 2005
Os juízes e os nossos deuses de esquina
(O Salão Abílio Duarte está cheio e a multidão celebra a chegada do candidato. Nos bastidores, é tudo adrenalina. Mayra Andrade está em Cabo Verde a emprestar poesia a este Natal de rebuliço comercial. No Senegal, faleceu a minha tia Ivone. Ainda estou por saber quem julgará os juízes. E os nossos deuses de esquina…)
Pórtico
As Festas aproximam-se vertiginosamente, mas a minha alma está triste com o falecimento da tia Ivone, irmã da minha mãe, pertença do que somos e do que temos em termos dos valores familiares. Naturalmente que não irei discorrer sobre este doloroso facto íntimo no S/Cem Margens que, modéstia à parte e mau grado o próprio autor, é referência pública. Entrementes, dando contas à vida, devo sublinhar que a morte é o grande reconstrutor das coisas. Relativizando tudo, mas tudo, nada se sobrepõe à perda (irreversível) de uma pessoa querida e próxima. É como se uma espécie de sol partisse para todo o sempre. Dói muito, muitíssimo…
Glosa
As Festas aproximam-se vertiginosamente, dizia, e a azáfama natalícia é consumista. O comércio é o grande ganhador de haver Natal e os pobres ficam mais deprimidos do que nunca. Sempre achei que o Natal daria uma excelente ocasião para o debate sobre o desequilíbrio social. Paradoxalmente, a celebração do nascimento de Cristo (a grande esperança dos deserdados) se transformou na exuberância dos poderosos. Pode? Não que eu seja contra a celebração e o encanto natalícios. Quem chega em casa e não encontra a Árvore de Natal, não se considere feliz, nem benquisto. Há rituais que valem a pena, porque o ritualismo faz parte do ser antropológico. De resto, cai bem sair pela Avenida Cidade de Lisboa e pela Avenida dos Combatentes pela Liberdade da Pátria e ver as luzes da cidade. Melhor, só a voz de Nat King Cole a cantar “Merry Christmas To You”, no rádio do automóvel. Vertiginosamente, e de um só gesto, apetece-me abraçar a todas as pessoas que amo…
Deliberações & milénio
Uma decisão das autoridades eleitorais, sem efeitos práticos, que o Falecido comentaria “apenas para o inglês ver”, manda um partido político retirar cartazes de propaganda eleitoral colocados há três meses. Esse ilícito, que já teve o seu impacto danoso, está a ser reparado tardia e morosamente, permitindo à opinião pública pensar que a impunidade reina e que há uma tendência de “bananização” da República. E, já agora, porque “o cujo nada tem a ver com as calças”, aproveito para expressar solidariedade ao jornalista José Leite, do Noite Ilustrada, diante do acto censurante (sem aspas, meus senhores) a uma peça feita com isenção e deontologia jornalísticas e que não belisca os princípios que enformam o sistema e a lei eleitorais. Estamos a entrar em 2006, caríssimos. Há coisas que não cabem no milénio!
Com Cabo Verde no coração
Estive na Assembleia Nacional a ponderar a nossa sala cheia. O candidato Pedro Pires dizia, às tantas no seu discurso de apresentação, que a questão de fundo já não é a de haver ou não a democracia, mas sim da qualidade da democracia que existe no país. E, se a conversa antes era a sala composta do adversário, o que se dirá agora da transbordante multidão que ali estava a apoiar o “Amigo Comandante”? Mas o tema recorrente terá de ser adiado novamente, já que é impossível não pensar na minha tia Ivone, recém falecida, cuja alegria de viver merece, aqui e agora, a recitara da minha imensa saudade…
Pórtico
As Festas aproximam-se vertiginosamente, mas a minha alma está triste com o falecimento da tia Ivone, irmã da minha mãe, pertença do que somos e do que temos em termos dos valores familiares. Naturalmente que não irei discorrer sobre este doloroso facto íntimo no S/Cem Margens que, modéstia à parte e mau grado o próprio autor, é referência pública. Entrementes, dando contas à vida, devo sublinhar que a morte é o grande reconstrutor das coisas. Relativizando tudo, mas tudo, nada se sobrepõe à perda (irreversível) de uma pessoa querida e próxima. É como se uma espécie de sol partisse para todo o sempre. Dói muito, muitíssimo…
Glosa
As Festas aproximam-se vertiginosamente, dizia, e a azáfama natalícia é consumista. O comércio é o grande ganhador de haver Natal e os pobres ficam mais deprimidos do que nunca. Sempre achei que o Natal daria uma excelente ocasião para o debate sobre o desequilíbrio social. Paradoxalmente, a celebração do nascimento de Cristo (a grande esperança dos deserdados) se transformou na exuberância dos poderosos. Pode? Não que eu seja contra a celebração e o encanto natalícios. Quem chega em casa e não encontra a Árvore de Natal, não se considere feliz, nem benquisto. Há rituais que valem a pena, porque o ritualismo faz parte do ser antropológico. De resto, cai bem sair pela Avenida Cidade de Lisboa e pela Avenida dos Combatentes pela Liberdade da Pátria e ver as luzes da cidade. Melhor, só a voz de Nat King Cole a cantar “Merry Christmas To You”, no rádio do automóvel. Vertiginosamente, e de um só gesto, apetece-me abraçar a todas as pessoas que amo…
Deliberações & milénio
Uma decisão das autoridades eleitorais, sem efeitos práticos, que o Falecido comentaria “apenas para o inglês ver”, manda um partido político retirar cartazes de propaganda eleitoral colocados há três meses. Esse ilícito, que já teve o seu impacto danoso, está a ser reparado tardia e morosamente, permitindo à opinião pública pensar que a impunidade reina e que há uma tendência de “bananização” da República. E, já agora, porque “o cujo nada tem a ver com as calças”, aproveito para expressar solidariedade ao jornalista José Leite, do Noite Ilustrada, diante do acto censurante (sem aspas, meus senhores) a uma peça feita com isenção e deontologia jornalísticas e que não belisca os princípios que enformam o sistema e a lei eleitorais. Estamos a entrar em 2006, caríssimos. Há coisas que não cabem no milénio!
Com Cabo Verde no coração
Estive na Assembleia Nacional a ponderar a nossa sala cheia. O candidato Pedro Pires dizia, às tantas no seu discurso de apresentação, que a questão de fundo já não é a de haver ou não a democracia, mas sim da qualidade da democracia que existe no país. E, se a conversa antes era a sala composta do adversário, o que se dirá agora da transbordante multidão que ali estava a apoiar o “Amigo Comandante”? Mas o tema recorrente terá de ser adiado novamente, já que é impossível não pensar na minha tia Ivone, recém falecida, cuja alegria de viver merece, aqui e agora, a recitara da minha imensa saudade…
sexta-feira, 16 de dezembro de 2005
A hora íntima
por Vinícius de Moraes
Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: – Nunca fez mal...
Quem, bêbedo, chorará em voz alta
De não me ter trazido nada?
Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?
Quem jogará timidamente
Na terra um grão de semente?
Quem elevará o olhar covarde
Até a estrela da tarde?
Quem me dirá palavras mágicas
Capazes de empalidecer o mármore?
Quem, oculta em véus escuros
Se crucificará nos muros?
Quem, macerada de desgosto
Sorrirá: – Rei morto, rei posto...
Quantas, debruçadas sobre o báratro
Sentirão as dores do parto?
Qual a que, branca de receio
Tocará o botão do seio?
Quem, louca, se jogará de bruços
A soluçar tantos soluços
Que há de despertar receios?
Quantos, os maxilares contraídos
O sangue a pulsar nas cicatrizes
Dirão: – Foi um doido amigo...
Quem, criança, olhando a terra
Ao ver movimentar-se um verme
Observará um ar de critério?
Quem, em circunstância oficial
Há de propor meu pedestal?
Quais os que, vindos da montanha
Terão circunspecção tamanha
Que eu hei de rir branco de cal?
Qual a que, o rosto sulcado de vento
Lançará um punhado de sal
Na minha cova de cimento?
Quem cantará canções de amigo
No dia do meu funeral?
Qual a que não estará presente
Por motivo circunstancial?
Quem cravará no seio duro
Uma lâmina enferrujada?
Quem, em seu verbo inconsútil
Há de orar: – Deus o tenha em sua guarda.
Qual o amigo que a sós consigo
Pensará: – Não há de ser nada...
Quem será a estranha figura
A um tronco de árvore encostada
Com um olhar frio e um ar de dúvida?
Quem se abraçará comigo
Que terá de ser arrancada?
Quem vai pagar o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Rio de Janeiro, 1950
Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: – Nunca fez mal...
Quem, bêbedo, chorará em voz alta
De não me ter trazido nada?
Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?
Quem jogará timidamente
Na terra um grão de semente?
Quem elevará o olhar covarde
Até a estrela da tarde?
Quem me dirá palavras mágicas
Capazes de empalidecer o mármore?
Quem, oculta em véus escuros
Se crucificará nos muros?
Quem, macerada de desgosto
Sorrirá: – Rei morto, rei posto...
Quantas, debruçadas sobre o báratro
Sentirão as dores do parto?
Qual a que, branca de receio
Tocará o botão do seio?
Quem, louca, se jogará de bruços
A soluçar tantos soluços
Que há de despertar receios?
Quantos, os maxilares contraídos
O sangue a pulsar nas cicatrizes
Dirão: – Foi um doido amigo...
Quem, criança, olhando a terra
Ao ver movimentar-se um verme
Observará um ar de critério?
Quem, em circunstância oficial
Há de propor meu pedestal?
Quais os que, vindos da montanha
Terão circunspecção tamanha
Que eu hei de rir branco de cal?
Qual a que, o rosto sulcado de vento
Lançará um punhado de sal
Na minha cova de cimento?
Quem cantará canções de amigo
No dia do meu funeral?
Qual a que não estará presente
Por motivo circunstancial?
Quem cravará no seio duro
Uma lâmina enferrujada?
Quem, em seu verbo inconsútil
Há de orar: – Deus o tenha em sua guarda.
Qual o amigo que a sós consigo
Pensará: – Não há de ser nada...
Quem será a estranha figura
A um tronco de árvore encostada
Com um olhar frio e um ar de dúvida?
Quem se abraçará comigo
Que terá de ser arrancada?
Quem vai pagar o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Rio de Janeiro, 1950
quarta-feira, 14 de dezembro de 2005
Pinóquio ou Ronda nº 2
Contextualizando
(Uma hora depois de rodarmos os bares da cidade da Praia em busca da paz de espírito: Motcha, fechado; Pirilampo: fechado; Petu Pomba, fechado; chegamos ao Paulino, no Palmarejo. Acesa discussão. A escravatura foi abolida há 169 anos. Alguns dos nossos bisavós foram escravos. Mas até esta não discutimos a fundo a questão. Temos falado do Holocausto, outra tragédia, mas acontecida há menos tempo. As luzes na avenida prenunciam o Natal. Fala-se da escrita. O poeta é um fingidor, glosou alguém Fernando Pessoa. Eu queria tanto contar aos meus filhos a história do Pinóquio. Festival marginalizado, dizes no teu Blog)
Zero
Amiga, a grande verdade é que o mundo começou sem o homem e há de terminar sem ele. O ciclo completo não é necessariamente antropológico. Leio o teu Blog e gosto das tuas razões. Um dia, hás de entender que o mundo é um grande paradoxo às voltas. Vale termos os Raiz di Polon, Amiga. Gostei daquela: Está tudo a ver um Benfica – Manchester, um Porto – Artimedia. Ou então, a encher avenidas em passeatas...
Boa nova…lufada de ar fresco
Soube, há dias, pelo meu pai que Arménio Vieira lança em breve um livro de poemas. Nessa mesma tarde, encontro o Poeta por acaso e este confirma-me ter na calha o documento. Venha o livro, agora ou nunca. Quero ler boa poesia e não a versalhada que pulula por cá. Aguardo, com expectativa, o livro de poemas do Conde de Silvenius, um veneno contra a monotonia…e a mediocridade!
Natal a ser…
Aproxima-se o Natal e ficamos entre tristes e contentes. As luzes e as cores trepidantes trazem-nos algo como uma nostalgia e, mesmo calados cá dentro, a nossa alma chora de alguma perda. Viver é perder. Perder-se, para ser mais próprio. E no Natal, na azáfama natalícia, que nos sentimos mais sós no mundo. Ou a sós com ele, como tu predizias quando era luar o que nos encantava à beira das horas…
Cinematografia nacional
Parece ter chegado a hora de abordarmos o cinema e o audiovisual em Cabo Verde. A questão de fundo não é este ou aquele festival de cinema. Não coloquemos o carro diante dos bois. Está fora de questão adiarmos o debate. Importa, a bem da nossa cultura e identidade, uma cinematografia nacional. Para já, temos de criar as infra-estruturas institucionais que possam, via cooperação internacional e outros canais, fomentar a Sétima Arte. O cinema criou um manancial de obras-primas em pouco mais de um século. Tornou-se a mais popular e mágica linguagem antes da multimédia e fixou imagens transcendentais na retina da humanidade. Só que não se faz cinema com o aparato e os significantes. É preciso tocar no ponto certo. O Ministério da Cultura não poderá aderir ao cinema apenas por uma questão de marketing. Ele tem de se reestruturar organicamente para que o cabo-verdiano veja e produza cinema. A cadeia tem de ser montada. Aqui e agora…
Cinema Paradiso e o festival
Acontece o Festival de Cinema. Sem público, o que não é dramático em qualquer mostra de qualidade. A qualidade é hermética, me perdoem os populistas e demagogos. O meu amigo sente-se nervoso, perdido e sem estribeiras. Começa-se a procurar culpados. Típico de pessoas que não possuem referencial e tentam justificar a sua mediocridade diante da crise. Raramente a qualidade é pão que agrada todas as bocas. Mas, dizia, o festival acontece com alguns gatos-pingados e os burocratas ficam descontentes. Queriam ter público, imprensa, secretário de estado, ministro, fogo de artifício, gala, Hollywood, a ver se era daquela que o comboio entrava nos trilhos. Mas ainda é prematuro…
A propósito do cabaret no Ilhéu dos Pássaros
Ocupação do Ilhéu de Santa Maria? Eu também tenho as minhas reticências. Não que eu seja contra o investimento do magnata David Chow. Cabo Verde precisa é de mais e mais investimentos. Mas quando as coisas são de fundo, elas merecem ser socializadas com os cidadãos. Queremos saber a natureza de tal investimento no Ilhéu de Santa Maria, escrutinar criticamente os prós e os contras. Afinal trata-se de um formidável património histórico, paisagístico e ecológico. Por isso, as intervenções estruturais demandam, no mínimo, algum consenso da cidadania. O crescimento económico é bem-vindo, mas não o queremos a qualquer custo…
Sim, falávamos de Pinóquio
O escritor é uma espécie de Pinóquio. De tudo o que escreve, cresce-lhe este nariz. E os leitores já sabem nada é verdade. Nem mesmo a verdade. Escrever, dizia Pessoa, é fingir tão completamente a dor deveras. Bem criança, entre os meus seis e sete anos, eu ouvia contar a história do Pinóquio e ficava numa pilha de meditações existenciais. Era uma história, não se sabe se de rir, se de chorar. Como era bom ser Pinóquio e equilibrar sobre os ombros de outros bonecos. A vida é um show de marionetas…
(Uma hora depois de rodarmos os bares da cidade da Praia em busca da paz de espírito: Motcha, fechado; Pirilampo: fechado; Petu Pomba, fechado; chegamos ao Paulino, no Palmarejo. Acesa discussão. A escravatura foi abolida há 169 anos. Alguns dos nossos bisavós foram escravos. Mas até esta não discutimos a fundo a questão. Temos falado do Holocausto, outra tragédia, mas acontecida há menos tempo. As luzes na avenida prenunciam o Natal. Fala-se da escrita. O poeta é um fingidor, glosou alguém Fernando Pessoa. Eu queria tanto contar aos meus filhos a história do Pinóquio. Festival marginalizado, dizes no teu Blog)
Zero
Amiga, a grande verdade é que o mundo começou sem o homem e há de terminar sem ele. O ciclo completo não é necessariamente antropológico. Leio o teu Blog e gosto das tuas razões. Um dia, hás de entender que o mundo é um grande paradoxo às voltas. Vale termos os Raiz di Polon, Amiga. Gostei daquela: Está tudo a ver um Benfica – Manchester, um Porto – Artimedia. Ou então, a encher avenidas em passeatas...
Boa nova…lufada de ar fresco
Soube, há dias, pelo meu pai que Arménio Vieira lança em breve um livro de poemas. Nessa mesma tarde, encontro o Poeta por acaso e este confirma-me ter na calha o documento. Venha o livro, agora ou nunca. Quero ler boa poesia e não a versalhada que pulula por cá. Aguardo, com expectativa, o livro de poemas do Conde de Silvenius, um veneno contra a monotonia…e a mediocridade!
Natal a ser…
Aproxima-se o Natal e ficamos entre tristes e contentes. As luzes e as cores trepidantes trazem-nos algo como uma nostalgia e, mesmo calados cá dentro, a nossa alma chora de alguma perda. Viver é perder. Perder-se, para ser mais próprio. E no Natal, na azáfama natalícia, que nos sentimos mais sós no mundo. Ou a sós com ele, como tu predizias quando era luar o que nos encantava à beira das horas…
Cinematografia nacional
Parece ter chegado a hora de abordarmos o cinema e o audiovisual em Cabo Verde. A questão de fundo não é este ou aquele festival de cinema. Não coloquemos o carro diante dos bois. Está fora de questão adiarmos o debate. Importa, a bem da nossa cultura e identidade, uma cinematografia nacional. Para já, temos de criar as infra-estruturas institucionais que possam, via cooperação internacional e outros canais, fomentar a Sétima Arte. O cinema criou um manancial de obras-primas em pouco mais de um século. Tornou-se a mais popular e mágica linguagem antes da multimédia e fixou imagens transcendentais na retina da humanidade. Só que não se faz cinema com o aparato e os significantes. É preciso tocar no ponto certo. O Ministério da Cultura não poderá aderir ao cinema apenas por uma questão de marketing. Ele tem de se reestruturar organicamente para que o cabo-verdiano veja e produza cinema. A cadeia tem de ser montada. Aqui e agora…
Cinema Paradiso e o festival
Acontece o Festival de Cinema. Sem público, o que não é dramático em qualquer mostra de qualidade. A qualidade é hermética, me perdoem os populistas e demagogos. O meu amigo sente-se nervoso, perdido e sem estribeiras. Começa-se a procurar culpados. Típico de pessoas que não possuem referencial e tentam justificar a sua mediocridade diante da crise. Raramente a qualidade é pão que agrada todas as bocas. Mas, dizia, o festival acontece com alguns gatos-pingados e os burocratas ficam descontentes. Queriam ter público, imprensa, secretário de estado, ministro, fogo de artifício, gala, Hollywood, a ver se era daquela que o comboio entrava nos trilhos. Mas ainda é prematuro…
A propósito do cabaret no Ilhéu dos Pássaros
Ocupação do Ilhéu de Santa Maria? Eu também tenho as minhas reticências. Não que eu seja contra o investimento do magnata David Chow. Cabo Verde precisa é de mais e mais investimentos. Mas quando as coisas são de fundo, elas merecem ser socializadas com os cidadãos. Queremos saber a natureza de tal investimento no Ilhéu de Santa Maria, escrutinar criticamente os prós e os contras. Afinal trata-se de um formidável património histórico, paisagístico e ecológico. Por isso, as intervenções estruturais demandam, no mínimo, algum consenso da cidadania. O crescimento económico é bem-vindo, mas não o queremos a qualquer custo…
Sim, falávamos de Pinóquio
O escritor é uma espécie de Pinóquio. De tudo o que escreve, cresce-lhe este nariz. E os leitores já sabem nada é verdade. Nem mesmo a verdade. Escrever, dizia Pessoa, é fingir tão completamente a dor deveras. Bem criança, entre os meus seis e sete anos, eu ouvia contar a história do Pinóquio e ficava numa pilha de meditações existenciais. Era uma história, não se sabe se de rir, se de chorar. Como era bom ser Pinóquio e equilibrar sobre os ombros de outros bonecos. A vida é um show de marionetas…
segunda-feira, 12 de dezembro de 2005
Porque...
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
Sophia de Mello Breyner Andresen
segunda-feira, 5 de dezembro de 2005
Não há praia para ninguém, madame
As boas e as más da Tapadinha
Há coisas que só acontecem aqui na Tapadinha. Umas boas, como a cachupa refogada ou o funaná lento. E outras horríveis, como o outdoor eleitoral antes da campanha ou, pior ainda, a covardia de o tirar. A jeito ou a eito, como diria o falecido no seu tratado “Oito ou Ointenta, as Dicas da Malandragem!”. Pelas coisas boas, vamos ficando nesta paragem e, nas entrelinhas, empunhando a bandeirola, mesmo que a dita pareça um pouco o logótipo daquela lata de banha da CEE. Pelas más, me perdoem as muito feias, mas beleza é fundamental, estaremos dispostos à lida contra a malvadeza e a carniça que envergonham a malta.
A Avenida enfarpelada
A Avenida, enfarpelada de luzes, prepara-se para a inauguração. Por uns instantes, somos já cosmopolitas. Por outros, continuamos provincianos. Cosmopolitas, quando pensamos a cidade de molde integrado e competitivo. Uma urbe disposta a ser um espaço equipado, com cidadãos qualificados. O binómio do desenvolvimento. E o resto, tretas. E provincianos, quando temos a sensação de trabalho acabado, obra fechada. Nivelando a cidade por baixo, comparando com outras da região ou, pior ainda, com o passado. O muito que já se fez, é pouco. O cidadão quer melhor aeroporto, porto, circular, avenida, rotunda, universidade, praça, mercado, parque, centro comercial, centro cultural, enfim, melhor tudo. Bem-estar e qualidade de vida, no mote dessa inauguração bonita. Ora, a cidade compara-se com o futuro. A saudade que se tem é do futuro…
Ao leitor atento
Mal abro a caixa-de-correio do Hotmail, dou de caras com uma mensagem indignada. Alguém que se assume apreciador do S/Cem Margens protesta contra a minha última crónica. Impõem-se-me uma resposta, noblesse oblige. Tive de explicar ao leitor que eu jamais seria pau-mandado. Se estou a apoiar este ou aquele é por pura convicção política. Melhor dizendo, convicção cultural. Acredito que este será capaz de ter sentido histórico e não se vender ao desbarato a um punhado de estrangeiros. E aquele tomará providências cautelares contra a máfia instalada na vizinhança. Pau-mandado é o apoiante acrítico que não destrinça aquele que governa daquele que se governa, porra. Agora, gostar mesmo, gosto da poesia e de coisas mais elegantes. Política não resiste à idealização. Arte, sim senhor. Paixão. Em matéria de coração, sou leviano assumido. Apaixono-me aos 44. Um caso sério…
O Plateau e o Monte Vermelho escavado
Dou uma volta pelo Plateau e tenho a impressão de que alguém anda a sabotar este lugar. Desconfio que seja ódio social, coisa parecida. Vingança histórica. Ou simplesmente incompetência. Nossa, naturalmente. De todos nós. Que não temos nem força, nem resistência, para dizer basta. Cidadania também seria afirmar o Plateau. Protegê-lo e fomentá-lo a ser o lugar de referência e memória de uma cidade, menina do mar. Só que o Plateau não é um problema só dos nascidos e residentes, dos munícipes direi, da Praia, mas uma questão que interpela a todos os cabo-verdianos. Desde a segunda metade do século XVIII que este espaço urbano é matricial da cabo-verdianidade. Não reconhecer isso é inibir a nossa memória e votar o nosso passado ao esquecimento. Não reconfigurar esta trajectória, que tudo alberga de identitária, significará uma perda colectiva com consequências imprevisíveis. O Falecido, que Deus o tenha, do alto do seu exagero, vaticinava a premonição da merda generalizada. Já não será só a falta de água e da energia eléctrica, dizia. Mas os esgotos vão encanar e o Monte Vermelho, escavado como está, cairá por terra. E os extractores de areia, além de matarem as tartarugas e de salgarem os lençóis freáticos, acabarão com as praias. Dentro de pouco tempo, já não há praia para ninguém, madame. O caos…
Há coisas que só acontecem aqui na Tapadinha. Umas boas, como a cachupa refogada ou o funaná lento. E outras horríveis, como o outdoor eleitoral antes da campanha ou, pior ainda, a covardia de o tirar. A jeito ou a eito, como diria o falecido no seu tratado “Oito ou Ointenta, as Dicas da Malandragem!”. Pelas coisas boas, vamos ficando nesta paragem e, nas entrelinhas, empunhando a bandeirola, mesmo que a dita pareça um pouco o logótipo daquela lata de banha da CEE. Pelas más, me perdoem as muito feias, mas beleza é fundamental, estaremos dispostos à lida contra a malvadeza e a carniça que envergonham a malta.
A Avenida enfarpelada
A Avenida, enfarpelada de luzes, prepara-se para a inauguração. Por uns instantes, somos já cosmopolitas. Por outros, continuamos provincianos. Cosmopolitas, quando pensamos a cidade de molde integrado e competitivo. Uma urbe disposta a ser um espaço equipado, com cidadãos qualificados. O binómio do desenvolvimento. E o resto, tretas. E provincianos, quando temos a sensação de trabalho acabado, obra fechada. Nivelando a cidade por baixo, comparando com outras da região ou, pior ainda, com o passado. O muito que já se fez, é pouco. O cidadão quer melhor aeroporto, porto, circular, avenida, rotunda, universidade, praça, mercado, parque, centro comercial, centro cultural, enfim, melhor tudo. Bem-estar e qualidade de vida, no mote dessa inauguração bonita. Ora, a cidade compara-se com o futuro. A saudade que se tem é do futuro…
Ao leitor atento
Mal abro a caixa-de-correio do Hotmail, dou de caras com uma mensagem indignada. Alguém que se assume apreciador do S/Cem Margens protesta contra a minha última crónica. Impõem-se-me uma resposta, noblesse oblige. Tive de explicar ao leitor que eu jamais seria pau-mandado. Se estou a apoiar este ou aquele é por pura convicção política. Melhor dizendo, convicção cultural. Acredito que este será capaz de ter sentido histórico e não se vender ao desbarato a um punhado de estrangeiros. E aquele tomará providências cautelares contra a máfia instalada na vizinhança. Pau-mandado é o apoiante acrítico que não destrinça aquele que governa daquele que se governa, porra. Agora, gostar mesmo, gosto da poesia e de coisas mais elegantes. Política não resiste à idealização. Arte, sim senhor. Paixão. Em matéria de coração, sou leviano assumido. Apaixono-me aos 44. Um caso sério…
O Plateau e o Monte Vermelho escavado
Dou uma volta pelo Plateau e tenho a impressão de que alguém anda a sabotar este lugar. Desconfio que seja ódio social, coisa parecida. Vingança histórica. Ou simplesmente incompetência. Nossa, naturalmente. De todos nós. Que não temos nem força, nem resistência, para dizer basta. Cidadania também seria afirmar o Plateau. Protegê-lo e fomentá-lo a ser o lugar de referência e memória de uma cidade, menina do mar. Só que o Plateau não é um problema só dos nascidos e residentes, dos munícipes direi, da Praia, mas uma questão que interpela a todos os cabo-verdianos. Desde a segunda metade do século XVIII que este espaço urbano é matricial da cabo-verdianidade. Não reconhecer isso é inibir a nossa memória e votar o nosso passado ao esquecimento. Não reconfigurar esta trajectória, que tudo alberga de identitária, significará uma perda colectiva com consequências imprevisíveis. O Falecido, que Deus o tenha, do alto do seu exagero, vaticinava a premonição da merda generalizada. Já não será só a falta de água e da energia eléctrica, dizia. Mas os esgotos vão encanar e o Monte Vermelho, escavado como está, cairá por terra. E os extractores de areia, além de matarem as tartarugas e de salgarem os lençóis freáticos, acabarão com as praias. Dentro de pouco tempo, já não há praia para ninguém, madame. O caos…
terça-feira, 29 de novembro de 2005
Ronda nº 1
(Seis imigrantes africanos morrem afogados a sul das ilhas Canárias, devido ao naufrágio da embarcação clandestina. Livros lidos e desafios à vista. Amanhece na cidade da Praia. Ontem, houve fogo de artifício. E eu numa melancolia de bom tamanho)
Zero
O editor e o leitor me perdoem a impertinência, mas hoje queria escrever em retrospectiva. Prometo ir e vir ao sabor do vento. Ao bom gosto do teclado, direi. Assim, como quem não quer a coisa….Uma das personagens do meu tempo era Balela (nome trocado, naturalmente), que fez grande carreira de vagabundo na cidade e tinha um português muito parecido a alguns deputados de hoje, teimosos em não levarem a oratória para o crioulo. Balela dançava no meio da praça, ao som da Banda Municipal, que, ao tempo, chamávamos de “musguêros”. Venham ver Balela a bailar o cha-cha-cha! E era a felicidade da meninada vê-lo dançar. A malta trocava o lanche de casa pela passada do dito e ficava a desoras a aprender as piruetas que o mesmo ensinava. Naquele tempo, a praça era um lugar bonito, ajardinado e alinhado. E o coreto ali imponente e o chafariz com repuxo de água. Outro tempo, aziago em muita coisa, mas em que o calcetamento não demandava cooperação internacional e outros trâmites cabeludos, sabe o leitor como são. E Balela era o rei e o senhor de tudo, porque elegante e amigo das crianças, vagabundo da primeira apanha, gente finíssima. Lembrei-me dele de repente e acho que estou a ficar velho. Ou, se tanto, a ficar mais rabugento e impaciente comigo próprio. Ou tão-só a morrer devagar. Arre, que estou numa melancolia de bom tamanho…
Amanhecendo
O amanhecer é um espanto. Da janela, temperados pela insónia, pedaços do luar banham o bocejar das horas. É-se feliz em lapsos de tempo. O resto é a mesmice que nos força à vigília. Apetece flutuar no imponderável e no improvável. Apetece saltar o cerco, correr, fugir e fazer dos confins um refúgio que seja…sonho. Ou, então, ficar calado, sereno e quieto à espera que as nuvens se dissipem sobre a manhã. Tremeluzem estrelas, ora em bocados de luz, ora em danças distantes. O que dirá o Zodíaco desta minha vida? O que será traduzido nos horóscopos e noutras leituras de premonição? Silva o vento, uiva o cão e canta o galo. Este último canta para contrariar a ideia de ser cosmopolita esta cidade. O gajo canta como um desaforado bardo e as galinhas, ensonadas ainda, convencem-se do atavismo entre o canto e o amanhecer. Mas as manhãs não cantam, mesmo que os nossos pequenos deuses prometam, de mãos juntas, acordes, ritmos e melodias. Tudo não passa de um ciclo que a cada volta de expande e deixa na minha solidão o travo da morte. Tudo é falso, falácia, ilusão. Ou, quem sabe, incandescente verdade que não interessa. Enquanto isso, cá estou a testemunhar as horas que, monocórdicas, marcam o caminho das coisas. Espreito, da fresta da minha alma, e vejo a rua ainda deserta. Amanhecendo…
Leituras do mês
Embora Novembro tenha sido um mês estressante, pude ler três livros interessantes. Li, e recomendo, "Animal Tropical", de Pedro Juan Gutiérrez, escritor que afirma, em máxima irreverência que, mau grado o “global player” e o seu embargo arrogante, o povo cubano continua a fazer amor, a andar de bicicleta, a dançar salsa e a comer arroz com feijão. Outro livro excelente é “Os Limites da Interpretação”, de Umberto Eco, em discurso directo para o leitor semântico e o leitor crítico. O livro é composto de vários ensaios sobre a semiótica como instrumento matricial da interpretação. O terceiro livro (oferta do meu irmão António) é “Historias Mal Contadas”, de Silviano Santiago, crónicas saborosas, meio densas, meio soltas, como só uma certa geração de brasileiros sabe contar. Um dia, quando for grande, hei de escrever as minhas histórias mal contadas. Prometo-vos…
Desafios
Faltam cumprir dois momentos essenciais, duas eleições importantes. À nossa maneira, apoiaremos os nossos candidatos, dando o máximo de nós, onde eventualmente sejamos mais úteis. Seria bom que cada cabo-verdiano defendesse a sua dama e consolidasse com isso o processo democrático. Pessoalmente, somos pelo PAICV e pelo Presidente Pedro Pires. Pelas bandeiras que defendem. Em prol de Cabo Verde. Não seria hora de falarmos nisso, pois o tempo das campanhas ainda não começou. Mas já há cartazes na rua, por incongruência ou provocação. O jeito é soltarmos todas – TODAS – as amarras. Uipooooooooo!
A festa acabou
E a festa acabou. Com muito cansaço e alguma saudade. Qualquer pecador teria o seu merecido descanso. Sombra e água fresca. Mas não. A vida continua. Dura, rasca e marra. Faltam erguer estátuas na minha cidade. Levantar vigas rente aos céus e desafiar a paisagem urbana. Aturdido pelo turbilhão de gente, entro no carro a cortar a marginal. O mar descansa um bocado. O imenso azul, o iodo nauseabundo e a espuma na areia. Uma ave marinha, branca, branca, branca. E, de regresso, passo em frente ao ilhéu de Santa Maria e a sua silhueta lambida na baía. É uma espécie de adeus. Dizem que em breve os chineses tomarão conta daquilo – uma decisão historicamente irresponsável e um negócio, no mínimo, da China. De facto, a festa acabou. Deixou de fazer sentido. Mas estou exausto. Na semana que vem continuo…
Zero
O editor e o leitor me perdoem a impertinência, mas hoje queria escrever em retrospectiva. Prometo ir e vir ao sabor do vento. Ao bom gosto do teclado, direi. Assim, como quem não quer a coisa….Uma das personagens do meu tempo era Balela (nome trocado, naturalmente), que fez grande carreira de vagabundo na cidade e tinha um português muito parecido a alguns deputados de hoje, teimosos em não levarem a oratória para o crioulo. Balela dançava no meio da praça, ao som da Banda Municipal, que, ao tempo, chamávamos de “musguêros”. Venham ver Balela a bailar o cha-cha-cha! E era a felicidade da meninada vê-lo dançar. A malta trocava o lanche de casa pela passada do dito e ficava a desoras a aprender as piruetas que o mesmo ensinava. Naquele tempo, a praça era um lugar bonito, ajardinado e alinhado. E o coreto ali imponente e o chafariz com repuxo de água. Outro tempo, aziago em muita coisa, mas em que o calcetamento não demandava cooperação internacional e outros trâmites cabeludos, sabe o leitor como são. E Balela era o rei e o senhor de tudo, porque elegante e amigo das crianças, vagabundo da primeira apanha, gente finíssima. Lembrei-me dele de repente e acho que estou a ficar velho. Ou, se tanto, a ficar mais rabugento e impaciente comigo próprio. Ou tão-só a morrer devagar. Arre, que estou numa melancolia de bom tamanho…
Amanhecendo
O amanhecer é um espanto. Da janela, temperados pela insónia, pedaços do luar banham o bocejar das horas. É-se feliz em lapsos de tempo. O resto é a mesmice que nos força à vigília. Apetece flutuar no imponderável e no improvável. Apetece saltar o cerco, correr, fugir e fazer dos confins um refúgio que seja…sonho. Ou, então, ficar calado, sereno e quieto à espera que as nuvens se dissipem sobre a manhã. Tremeluzem estrelas, ora em bocados de luz, ora em danças distantes. O que dirá o Zodíaco desta minha vida? O que será traduzido nos horóscopos e noutras leituras de premonição? Silva o vento, uiva o cão e canta o galo. Este último canta para contrariar a ideia de ser cosmopolita esta cidade. O gajo canta como um desaforado bardo e as galinhas, ensonadas ainda, convencem-se do atavismo entre o canto e o amanhecer. Mas as manhãs não cantam, mesmo que os nossos pequenos deuses prometam, de mãos juntas, acordes, ritmos e melodias. Tudo não passa de um ciclo que a cada volta de expande e deixa na minha solidão o travo da morte. Tudo é falso, falácia, ilusão. Ou, quem sabe, incandescente verdade que não interessa. Enquanto isso, cá estou a testemunhar as horas que, monocórdicas, marcam o caminho das coisas. Espreito, da fresta da minha alma, e vejo a rua ainda deserta. Amanhecendo…
Leituras do mês
Embora Novembro tenha sido um mês estressante, pude ler três livros interessantes. Li, e recomendo, "Animal Tropical", de Pedro Juan Gutiérrez, escritor que afirma, em máxima irreverência que, mau grado o “global player” e o seu embargo arrogante, o povo cubano continua a fazer amor, a andar de bicicleta, a dançar salsa e a comer arroz com feijão. Outro livro excelente é “Os Limites da Interpretação”, de Umberto Eco, em discurso directo para o leitor semântico e o leitor crítico. O livro é composto de vários ensaios sobre a semiótica como instrumento matricial da interpretação. O terceiro livro (oferta do meu irmão António) é “Historias Mal Contadas”, de Silviano Santiago, crónicas saborosas, meio densas, meio soltas, como só uma certa geração de brasileiros sabe contar. Um dia, quando for grande, hei de escrever as minhas histórias mal contadas. Prometo-vos…
Desafios
Faltam cumprir dois momentos essenciais, duas eleições importantes. À nossa maneira, apoiaremos os nossos candidatos, dando o máximo de nós, onde eventualmente sejamos mais úteis. Seria bom que cada cabo-verdiano defendesse a sua dama e consolidasse com isso o processo democrático. Pessoalmente, somos pelo PAICV e pelo Presidente Pedro Pires. Pelas bandeiras que defendem. Em prol de Cabo Verde. Não seria hora de falarmos nisso, pois o tempo das campanhas ainda não começou. Mas já há cartazes na rua, por incongruência ou provocação. O jeito é soltarmos todas – TODAS – as amarras. Uipooooooooo!
A festa acabou
E a festa acabou. Com muito cansaço e alguma saudade. Qualquer pecador teria o seu merecido descanso. Sombra e água fresca. Mas não. A vida continua. Dura, rasca e marra. Faltam erguer estátuas na minha cidade. Levantar vigas rente aos céus e desafiar a paisagem urbana. Aturdido pelo turbilhão de gente, entro no carro a cortar a marginal. O mar descansa um bocado. O imenso azul, o iodo nauseabundo e a espuma na areia. Uma ave marinha, branca, branca, branca. E, de regresso, passo em frente ao ilhéu de Santa Maria e a sua silhueta lambida na baía. É uma espécie de adeus. Dizem que em breve os chineses tomarão conta daquilo – uma decisão historicamente irresponsável e um negócio, no mínimo, da China. De facto, a festa acabou. Deixou de fazer sentido. Mas estou exausto. Na semana que vem continuo…
terça-feira, 22 de novembro de 2005
Da última marcha
Seja esta a última marcha e venha depois outro tempo. Em fila e em parada, como se fossemos militares. Blocos e mais blocos. Bandeiras. Cores e hinos. Seja esta a última revista e desça depois sobre nós a estação das flores. E de repente, termos sido o halo de uma breve fumaça. Esvoaçante. Livre. Para dançarmos ao crepitar dos fogos. Hirtos, lá vão eles a cantar o novelo dos dias. Cidade erguida agora com monumentos. Cidade de ruas incaracterísticas, onde a canalha urina e defeca nas esquinas. Cidade que amamos com, se necessário, sangue, acima de todas as outras. Cidade, toda ela útero, tomada de visco dos transeuntes. E dos automóveis enlouquecidos nas rotundas. Venha depois outro tempo e sejas para mim a dançarina misteriosa na praça vazia. E o resto, lua, luar, tua dança nua. Dessa nudez de última marcha…
Monte Birianda
Estive e nunca estive neste lugar. Há qualquer coisa de topo do mundo. Para além do falso horizonte das achadas e das várzeas. Vi o teu olhar nos olhos de muitas mulheres. E de muitos homens que, de soslaio, também miravam o desfiladeiro. Mentalmente declamei poemas desconexos. Bocados de Pessoa salpicados aos de Borges e os meus pobres versos de permeio. Este lugar tem música. Cada pedra guarda acordes inaudíveis e tu sabes o que significa música nas pedras.
segunda-feira, 21 de novembro de 2005
Monte Verde
Deu-me um branco. Um blackout na mente e, de repente, não vejo nada. Nesse relapso, o mundo parou. E tudo deixa de fazer sentido. Nem a tua mão faz sentido. Nem a rosa friorenta no alto do Monte Verde. Nem a portentosa baía e a frenética malha urbana. Nem o Vasco no seu tibetano exílio. Nem os falcões, nem as águias. Os corvos que grasnam pelas encostas. As pedras silenciosas à mercê da ventania. As nuvens vagarosas. Tudo a marcar o instante de nada. E esvai-se o branco. As cores regressam aos céus e algumas ilhas, e ilhéus, aparecem no painel do meu pensamento. E a tua mão recomeça a fazer sentido…
quarta-feira, 16 de novembro de 2005
Crónica tardia ou ninguém escreve ao coronel
(A campanha eleitoral aproxima-se. Tcheka ganha prémio em Dakar. José Maria Neves reafirma em Lisboa o papel geoestratégico de Cabo Verde. Chove. Chovendo mansamente, menina. Em Paris, nada está tão líquido. Há uma música de Caetano Veloso que não me sai do pensamento. Haverias de dizer que o desamparinho imortaliza. A nós, pelo menos…)
Monte Babosa
A solidão é uma espécie de espelho. Esse tempo que demora uma estrela cadente nos meus olhos. Mirada de transeuntes apressados, diria. Hora do rush. O sol a pôr-se em cores estivais. Pensar, de relance, em alguém. Fugaz o dia que acaba. E nunca mais regressa. Mesmo que na boca, sinta ainda o gosto do retorno impossível. No meio das pedras, uma insistente flor. A cidade estendida, do monte até ao mar. Sou andarilho de muitos mundos. Retirante…
Geração Pantera
A candura, a competência e o amor parecem ser os ingredientes de uma nova geração que, a força de expressão e a poesia deste tempo, chamaria de Geração Pantera. Orlando Pantera, o profundo Pantera, estivera uma vez no Instituto Cabo-verdiano de Menores à procura de emprego. A directora do ICM quis saber o seu currículo académico e ele respondeu não ter grandes estudos, mas que amava as crianças. Conta-o José Vicente Lopes num memorável texto sobre esse artista que mudou a música cabo-verdiana. Não estarei a exagerar se disser que há um antes e um depois Orlando Pantera, nem estarei a brincar se sublinhar de que mudou o tropos do cabo-verdiano. Quem é da Geração Pantera? Apenas músicos? Artistas? Penso que a malha é mais alargada. Em tempos, Mário Lúcio me dissera, na plena azáfama do Fesquintal de Jazz, que a revolução já estava instalada. Em todos os cantos do país. Em todos os quadrantes da nação. Basta ouvir José Maria Neves a discursar, a falar de amor, como um novo paradigma político. Experimente-se ver os quadros novos a projectarem o futuro. Até mesmo na economia o fenómeno está instalado. Geração da Independência. Noutra pauta, Geração Pantera…
Je danse avec l’ amour
Mayra Andrade, em dueto com Charles Aznavour, é simplesmente um luxo. Parcerias do tipo também ajudam a internacionalizar Cabo Verde. A multiculturalidade de um encontro assim traz à superfície uma série de coisas. Encontro de gerações, de géneros, de culturas, de estilos. Mayra Andrade e Charles Aznavour interpretam juntos Je danse avec l’amour. Album de Charles Aznavour. O da Mayra Andrade começou a ser produzido agora, em Paris. Aznavour canta o amor. Canta-o com beleza e sentimento. No melhor da canção romântica francesa. E hoje, como nunca, o amor deixou de ser meiguice para se afirmar como uma subversão do mundo. Estamos em tempos de terrorismos. Do Estado e do anti-Estado. Por isso, cantar o amor é cantar a paz, a existência, a vida. O amor de todas as formas. Agora veio-me à lembrança aquele conto de Woody Allen em que um professor da City College se evade para uma edição de bolso do Madame Bovary, de Flaubert, tanta era sua paixão por Emma. O protagonista sai de Manhattan contemporâneo para se refugiar em Yonville do século XIX. De todas as formas, dizia. Uma amiga confessava-me que todo o ser humano precisa fazer amor em Veneza. Quando não, em Porto Seguro onde a natureza é mais pródiga e o dólar vale muito mais. O ser humano precisa voar, rematava. Ícaro tinha razão. Ou, pelo menos, emoção…
Objectos transcendentes
Retirante, emociona-me que Tcheka tenha ganho o Prémio “Músicas do Mundo”, da RFI, em Dakar. A candura, a competência e o amor, Tcheka em pessoa. O resto, havendo campanha, ninguém escreve ao coronel. Agora que o sol morreu ou, quem sabe, ele seja vida noutro lugar, sei que a canção de Caetano Veloso se intitula Livros. Eis um cheirinho:
(…)
Apontando para a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo
(…)
Monte Babosa
A solidão é uma espécie de espelho. Esse tempo que demora uma estrela cadente nos meus olhos. Mirada de transeuntes apressados, diria. Hora do rush. O sol a pôr-se em cores estivais. Pensar, de relance, em alguém. Fugaz o dia que acaba. E nunca mais regressa. Mesmo que na boca, sinta ainda o gosto do retorno impossível. No meio das pedras, uma insistente flor. A cidade estendida, do monte até ao mar. Sou andarilho de muitos mundos. Retirante…
Geração Pantera
A candura, a competência e o amor parecem ser os ingredientes de uma nova geração que, a força de expressão e a poesia deste tempo, chamaria de Geração Pantera. Orlando Pantera, o profundo Pantera, estivera uma vez no Instituto Cabo-verdiano de Menores à procura de emprego. A directora do ICM quis saber o seu currículo académico e ele respondeu não ter grandes estudos, mas que amava as crianças. Conta-o José Vicente Lopes num memorável texto sobre esse artista que mudou a música cabo-verdiana. Não estarei a exagerar se disser que há um antes e um depois Orlando Pantera, nem estarei a brincar se sublinhar de que mudou o tropos do cabo-verdiano. Quem é da Geração Pantera? Apenas músicos? Artistas? Penso que a malha é mais alargada. Em tempos, Mário Lúcio me dissera, na plena azáfama do Fesquintal de Jazz, que a revolução já estava instalada. Em todos os cantos do país. Em todos os quadrantes da nação. Basta ouvir José Maria Neves a discursar, a falar de amor, como um novo paradigma político. Experimente-se ver os quadros novos a projectarem o futuro. Até mesmo na economia o fenómeno está instalado. Geração da Independência. Noutra pauta, Geração Pantera…
Je danse avec l’ amour
Mayra Andrade, em dueto com Charles Aznavour, é simplesmente um luxo. Parcerias do tipo também ajudam a internacionalizar Cabo Verde. A multiculturalidade de um encontro assim traz à superfície uma série de coisas. Encontro de gerações, de géneros, de culturas, de estilos. Mayra Andrade e Charles Aznavour interpretam juntos Je danse avec l’amour. Album de Charles Aznavour. O da Mayra Andrade começou a ser produzido agora, em Paris. Aznavour canta o amor. Canta-o com beleza e sentimento. No melhor da canção romântica francesa. E hoje, como nunca, o amor deixou de ser meiguice para se afirmar como uma subversão do mundo. Estamos em tempos de terrorismos. Do Estado e do anti-Estado. Por isso, cantar o amor é cantar a paz, a existência, a vida. O amor de todas as formas. Agora veio-me à lembrança aquele conto de Woody Allen em que um professor da City College se evade para uma edição de bolso do Madame Bovary, de Flaubert, tanta era sua paixão por Emma. O protagonista sai de Manhattan contemporâneo para se refugiar em Yonville do século XIX. De todas as formas, dizia. Uma amiga confessava-me que todo o ser humano precisa fazer amor em Veneza. Quando não, em Porto Seguro onde a natureza é mais pródiga e o dólar vale muito mais. O ser humano precisa voar, rematava. Ícaro tinha razão. Ou, pelo menos, emoção…
Objectos transcendentes
Retirante, emociona-me que Tcheka tenha ganho o Prémio “Músicas do Mundo”, da RFI, em Dakar. A candura, a competência e o amor, Tcheka em pessoa. O resto, havendo campanha, ninguém escreve ao coronel. Agora que o sol morreu ou, quem sabe, ele seja vida noutro lugar, sei que a canção de Caetano Veloso se intitula Livros. Eis um cheirinho:
(…)
Apontando para a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo
(…)
segunda-feira, 14 de novembro de 2005
Monte Babosa
A solidão é uma espécie de espelho. Esse tempo que demora uma estrela cadente nos meus olhos. Mirada de transeuntes apressados, diria. Hora do rush. O sol a pôr-se em cores estivais. Pensar, de relance, em alguém. Fugaz o dia que acaba. E nunca mais regressa. Mesmo que na boca, sinta ainda o gosto do retorno impossível. No meio das pedras, uma insistente flor. A cidade estendida, do monte até ao mar. Sou andarilho de muitos mundos. Retirante…
quinta-feira, 10 de novembro de 2005
Crónica tardia ou versos de estradas
(Lia-se Fernando Pessoa e a noite estava cálida, mas havia vento, um ventar que sabia à música, fiozinho de nada por onde as palavras navegam. Tirando o relógio, tudo era um conversar ao sabor dos momentos. O autor, serenado de tantas uvas, dirá que o vinho é tinto e que tudo é o que vem depois do Verbo. Assim diz o Livro, sabias?)
Estradas
Mas devo? Já estradas andado, começar a minha crónica tardia assim:
(…)
Alcantilado amarelo,
crua miragem, passei
crente do amor e alma
que haviam de jorrar
para os inocentes.
Mas quem me dava
inocência ou magia?
(…)
Não apenas pelos versos, estes últimos de Fiama Hasse Pais Brandão. Mas há estradas que marcam. O perder lugares tão-somente. E as paragens. Em momentos onde a lua se deleita na noite. Ou apenas suscitam madrugadas a desaguar em sol. É que há lugares parecidos connosco. Estradas andado, reparo que as tuas mãos seriam de atar pela jornada. E, quem sabe a dois (ou a sós, como tu dizes), eu sentisse menos náusea em tudo que seja vida. Mas adiante que há reaccionários reabilitados…
Os ditos reaccionários e as ditosas rosas
Ricardo Reis, dos muitos versos imortais, escreveu estes que são da minha cabeceira: Prefiro rosas, meu amor, à pátria/ E antes magnólias amo/ Que a glória e a virtude. Ora, isto é redutor, meus caros. Chegará a hora de zerar a dinâmica binária dos ditos e entender o mundo na sua complexidade reconciliadora. Os causídicos perdoem esta minha incursão por seara alheia, mas, convenhamos, que céu é grandi, mundu é largu. Este desabafo nada tem a ver com a nossa reconciliação, a desmerecer alguma verdade. Os heróis não se decretam. De resto, os reaccionários saíram mesmo de moda. E não se confunda mátria com pátria. Mas nem por isso deixarei eu de preferir as rosas. Quão ditosas. E de amar as magnólias…
Último acto
O velho continuava enfim o solilóquio. Agora saíste da varanda e entras no quarto. Não queres que te repita como foi, como não foi. Dizes que estou obcecado com isto. Talvez esteja, na minha pobre dimensão humana. Somos tão frágeis! Do pó viemos e ao pó iremos, inexoravelmente. Mas adiante. Resumia-se aquilo ao vemo-nos por aí. Uma frase sem grandeza para o adeus de qualquer coisa. E a foto de um farol. Mais precisamente do Farol D. Maria Pia. E seria preciso colocar as fichas sobre a mesa e estar na vida com alguma poesia. Não poderia ter sido apenas frisson, essa coisa na pele, o arrepio na espinha. Teria de ser mais compromisso. Com a vida. Naturalmente…
Mensagem II
Mas antes do encerrar da cortina, um intervalo para te contar do álbum Mensagem II, agora editado no Brasil, com os versos de Fernando Pessoa. Ao Mário Lúcio, músico nosso celebrado pela crítica internacional e, em paradoxo, apedrejado pela mediocridade caseira, coube a faixa D. Diniz, musicada pelo artista brasileiro, André Luis Oliveira. Pessoa escrevia, em Mensagem, e Mário Lúcio canta-o nessa linha:
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
o plantador de naus a haver,
e ouve um silêncio múrmuro comsigo:
é o rumor dos pinhaes que, como um trigo
de Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar,
e a falla dos pinhaes, marulho obscuro,
é o som presente desse mar futuro,
é a voz da terra anciando pelo mar.
E porque já estamos mesmo no fim desta crónica tardia, queria inaugurar daqui uma nova fase de escrita. Corpo e alma renovados pelo sopro da poesia. Ou da Arte, que é a melhor forma de amor. A melhor forma de achar um oceano qualquer…
Estradas
Mas devo? Já estradas andado, começar a minha crónica tardia assim:
(…)
Alcantilado amarelo,
crua miragem, passei
crente do amor e alma
que haviam de jorrar
para os inocentes.
Mas quem me dava
inocência ou magia?
(…)
Não apenas pelos versos, estes últimos de Fiama Hasse Pais Brandão. Mas há estradas que marcam. O perder lugares tão-somente. E as paragens. Em momentos onde a lua se deleita na noite. Ou apenas suscitam madrugadas a desaguar em sol. É que há lugares parecidos connosco. Estradas andado, reparo que as tuas mãos seriam de atar pela jornada. E, quem sabe a dois (ou a sós, como tu dizes), eu sentisse menos náusea em tudo que seja vida. Mas adiante que há reaccionários reabilitados…
Os ditos reaccionários e as ditosas rosas
Ricardo Reis, dos muitos versos imortais, escreveu estes que são da minha cabeceira: Prefiro rosas, meu amor, à pátria/ E antes magnólias amo/ Que a glória e a virtude. Ora, isto é redutor, meus caros. Chegará a hora de zerar a dinâmica binária dos ditos e entender o mundo na sua complexidade reconciliadora. Os causídicos perdoem esta minha incursão por seara alheia, mas, convenhamos, que céu é grandi, mundu é largu. Este desabafo nada tem a ver com a nossa reconciliação, a desmerecer alguma verdade. Os heróis não se decretam. De resto, os reaccionários saíram mesmo de moda. E não se confunda mátria com pátria. Mas nem por isso deixarei eu de preferir as rosas. Quão ditosas. E de amar as magnólias…
Último acto
O velho continuava enfim o solilóquio. Agora saíste da varanda e entras no quarto. Não queres que te repita como foi, como não foi. Dizes que estou obcecado com isto. Talvez esteja, na minha pobre dimensão humana. Somos tão frágeis! Do pó viemos e ao pó iremos, inexoravelmente. Mas adiante. Resumia-se aquilo ao vemo-nos por aí. Uma frase sem grandeza para o adeus de qualquer coisa. E a foto de um farol. Mais precisamente do Farol D. Maria Pia. E seria preciso colocar as fichas sobre a mesa e estar na vida com alguma poesia. Não poderia ter sido apenas frisson, essa coisa na pele, o arrepio na espinha. Teria de ser mais compromisso. Com a vida. Naturalmente…
Mensagem II
Mas antes do encerrar da cortina, um intervalo para te contar do álbum Mensagem II, agora editado no Brasil, com os versos de Fernando Pessoa. Ao Mário Lúcio, músico nosso celebrado pela crítica internacional e, em paradoxo, apedrejado pela mediocridade caseira, coube a faixa D. Diniz, musicada pelo artista brasileiro, André Luis Oliveira. Pessoa escrevia, em Mensagem, e Mário Lúcio canta-o nessa linha:
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
o plantador de naus a haver,
e ouve um silêncio múrmuro comsigo:
é o rumor dos pinhaes que, como um trigo
de Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar,
e a falla dos pinhaes, marulho obscuro,
é o som presente desse mar futuro,
é a voz da terra anciando pelo mar.
E porque já estamos mesmo no fim desta crónica tardia, queria inaugurar daqui uma nova fase de escrita. Corpo e alma renovados pelo sopro da poesia. Ou da Arte, que é a melhor forma de amor. A melhor forma de achar um oceano qualquer…
quarta-feira, 2 de novembro de 2005
Variações em torno do Zero
A José Luís Tavares, poeta
Zero
Presumo que não tenhas entendido o nosso diálogo no 11º andar. Em verdade, era um solilóquio, do tipo que, a cada manhã, se tem diante do espelho. A multiplicidade da interpretação é o grande achado da crónica. E, depois, texto literário não pode ser tão óbvio feito receita médica. Faz parte do encanto trazer a realidade e a fantasia para a leitura, pois ambos são o mister do equilíbrio do leitor. E, já agora, do escritor. É no inusitado que consegues sorrir. Esse sorriso de sol a nascer, que eu gosto e me ajuda a viver. Confesso-te que, vez por outra, tenho tentações de escrever sobre o lixo na cidade da Praia, as crianças que mendigam à porta dos restaurantes e das prostitutas que animam a indústria da noite. Quando não, de escrever sobre as máquinas, em ode triunfal, a cortarem os caminhos da Circular da Praia, da necessidade imperiosa de termos nesta cidade um campus universitário ou de fazermos disto um “porto digital”. A cada quarta-feira, à beira da entrega do texto, o meu dilema é atroz. Estou sempre entre Março e Abril. Mas nada como a sensação de te fazer sorrir ensolaradamente. E, se me permites, recomeça a ler isto como se fosse um intervalo. De qualquer coisa. Por acontecer…
Intervalo
...Não, eu não quero apartar a acidez do fogo/ que me intranqüiliza e me devora/. Eu não quero ofertar em súplicas/ e depois morrer por uns olhos/ que me sugerem messalinas e lambris/ e depois me enforcam. Não. Eu não quero o suicida/ que se despenca do alto da torre. Eu me quero vida para te ofertar rosas/ e te colher a plenitude de espigas maduras. Eu me quero vida para semear o trigo do teu corpo/ e me ceifar em messes de espumas/ e sóis de hipocampos sazonados. (Dimas Macedo, poeta brasileiro)
Starbucks Frappuccino
Falei-vos já (sem a palanquina arrogância do General) de Satyricon, do grande Petrónio – a novela erótica, a menipéia sátira, o mimo da fábula milésia. Leiam-no, pois. Um livro referencial que nos ensina como a civilização romana sucumbiu aos seus próprios vícios. Um verdadeiro afresco contra a sandice do poder. Devia ser pré requisito para a política. Leiam-no e deixam dessa santa ingenuidade que, nestes dias, se tornou vil e aziago. Li-o, por acaso, num Café Starbucks, em Old Boston. Há algum tempo. Entre um frappuccino quente e uns biscoitos inocentes. Numa das tardes em que me apetecia falar com desconhecidos sobre o aquecimento global. Ou, simplesmente, as trafulhas de Nero. O Imperador…
Em tempos de Electra, arre
Mau, mau, mau. Chegou o tão esperado 31 de Outubro e nada de voo internacional directo no Aeroporto Internacional da Praia. Precisamos ter um observatório para saber o que falha. Quem falha. E porque falha. Nadou o oceano inteiro para morrer na praia? Que absurdo! Agora a sério, somos dois, três, mais de centenas de milhar com olho vivo nesse aeroporto de parto difícil. Agora, mais do que nunca, a questão é mesmo séria. Seríssima. E dela dependerá o sol. Dito assim com metáfora para que os chacais não tomem conta do menino. Mas, meu caros, demais faz mal.
Campanha à porta
Mal ou bem já se vive o ambiente da pré campanha. Está tudo a postos para o grande arranque. As sondagens, umas próximas da verdade, outras próximas da mentira, aparecem nas ruas. Apesar dos sinais contrários na Assembleia Nacional, espera-se uma campanha cívica, serena e elevada. Sem maledicência, nem terrorismos verbais. Apenas com projectos e programas para debater. Por isso, vai ser um Natal simplesmente e-s-p-e-c-t-a-c-u-l-a-r! Desta banda, o pessoal prepara-se para vitaminar a campanha e vassourar, uma vez mais, aqueles de triste memória. A festa promete ser bonita, pá. Não vá o diabo tecê-las…
Acontece
Neste momento, o XIº Colóquio Internacional dos Estudos Crioulos. Uma centena de estudiosos (crioulófonos e crioulistas) sobre a crioulística. De várias partes do mundo. Por uma semana, a Praia será a capital cultural da crioulística. Hora de reflectir sobre a oportunidade de valorização consequente da língua crioula, em prol da nossa identidade e cultura. Já agora introduzir a questão sobre a oficialização da língua cabo-verdiana, afrontamento cultural que demanda coerência política. Quais os entraves para a oficialização? A Constituição? A falta da padronização? O não consenso de um alfabeto? O conservadorismo de uma classe dominante? A ignorância das coisas? Os resquícios da colonização? A falta da vontade política? O bairrismo? Imposição da maioria? Imposição da minoria? Quaisquer sejam as razões (mesmo aquelas que a Razão não explica), temos de colocar as ideias em cima da mesa para um grande debate. Luzes, luzes, luzes. Por uma questão da cidadania…
Zero
Presumo que não tenhas entendido o nosso diálogo no 11º andar. Em verdade, era um solilóquio, do tipo que, a cada manhã, se tem diante do espelho. A multiplicidade da interpretação é o grande achado da crónica. E, depois, texto literário não pode ser tão óbvio feito receita médica. Faz parte do encanto trazer a realidade e a fantasia para a leitura, pois ambos são o mister do equilíbrio do leitor. E, já agora, do escritor. É no inusitado que consegues sorrir. Esse sorriso de sol a nascer, que eu gosto e me ajuda a viver. Confesso-te que, vez por outra, tenho tentações de escrever sobre o lixo na cidade da Praia, as crianças que mendigam à porta dos restaurantes e das prostitutas que animam a indústria da noite. Quando não, de escrever sobre as máquinas, em ode triunfal, a cortarem os caminhos da Circular da Praia, da necessidade imperiosa de termos nesta cidade um campus universitário ou de fazermos disto um “porto digital”. A cada quarta-feira, à beira da entrega do texto, o meu dilema é atroz. Estou sempre entre Março e Abril. Mas nada como a sensação de te fazer sorrir ensolaradamente. E, se me permites, recomeça a ler isto como se fosse um intervalo. De qualquer coisa. Por acontecer…
Intervalo
...Não, eu não quero apartar a acidez do fogo/ que me intranqüiliza e me devora/. Eu não quero ofertar em súplicas/ e depois morrer por uns olhos/ que me sugerem messalinas e lambris/ e depois me enforcam. Não. Eu não quero o suicida/ que se despenca do alto da torre. Eu me quero vida para te ofertar rosas/ e te colher a plenitude de espigas maduras. Eu me quero vida para semear o trigo do teu corpo/ e me ceifar em messes de espumas/ e sóis de hipocampos sazonados. (Dimas Macedo, poeta brasileiro)
Starbucks Frappuccino
Falei-vos já (sem a palanquina arrogância do General) de Satyricon, do grande Petrónio – a novela erótica, a menipéia sátira, o mimo da fábula milésia. Leiam-no, pois. Um livro referencial que nos ensina como a civilização romana sucumbiu aos seus próprios vícios. Um verdadeiro afresco contra a sandice do poder. Devia ser pré requisito para a política. Leiam-no e deixam dessa santa ingenuidade que, nestes dias, se tornou vil e aziago. Li-o, por acaso, num Café Starbucks, em Old Boston. Há algum tempo. Entre um frappuccino quente e uns biscoitos inocentes. Numa das tardes em que me apetecia falar com desconhecidos sobre o aquecimento global. Ou, simplesmente, as trafulhas de Nero. O Imperador…
Em tempos de Electra, arre
Mau, mau, mau. Chegou o tão esperado 31 de Outubro e nada de voo internacional directo no Aeroporto Internacional da Praia. Precisamos ter um observatório para saber o que falha. Quem falha. E porque falha. Nadou o oceano inteiro para morrer na praia? Que absurdo! Agora a sério, somos dois, três, mais de centenas de milhar com olho vivo nesse aeroporto de parto difícil. Agora, mais do que nunca, a questão é mesmo séria. Seríssima. E dela dependerá o sol. Dito assim com metáfora para que os chacais não tomem conta do menino. Mas, meu caros, demais faz mal.
Campanha à porta
Mal ou bem já se vive o ambiente da pré campanha. Está tudo a postos para o grande arranque. As sondagens, umas próximas da verdade, outras próximas da mentira, aparecem nas ruas. Apesar dos sinais contrários na Assembleia Nacional, espera-se uma campanha cívica, serena e elevada. Sem maledicência, nem terrorismos verbais. Apenas com projectos e programas para debater. Por isso, vai ser um Natal simplesmente e-s-p-e-c-t-a-c-u-l-a-r! Desta banda, o pessoal prepara-se para vitaminar a campanha e vassourar, uma vez mais, aqueles de triste memória. A festa promete ser bonita, pá. Não vá o diabo tecê-las…
Acontece
Neste momento, o XIº Colóquio Internacional dos Estudos Crioulos. Uma centena de estudiosos (crioulófonos e crioulistas) sobre a crioulística. De várias partes do mundo. Por uma semana, a Praia será a capital cultural da crioulística. Hora de reflectir sobre a oportunidade de valorização consequente da língua crioula, em prol da nossa identidade e cultura. Já agora introduzir a questão sobre a oficialização da língua cabo-verdiana, afrontamento cultural que demanda coerência política. Quais os entraves para a oficialização? A Constituição? A falta da padronização? O não consenso de um alfabeto? O conservadorismo de uma classe dominante? A ignorância das coisas? Os resquícios da colonização? A falta da vontade política? O bairrismo? Imposição da maioria? Imposição da minoria? Quaisquer sejam as razões (mesmo aquelas que a Razão não explica), temos de colocar as ideias em cima da mesa para um grande debate. Luzes, luzes, luzes. Por uma questão da cidadania…
quarta-feira, 19 de outubro de 2005
A boca da tarde parece uma festa
Escrita 1
Debruças na varanda do 11º andar e olhas o imenso calçadão, o arreal e o mundo. Assim de repente, questionas a vida e a lida sabe-te sempre a pouco. Devias ter ido por ali. Ou talvez nem isso. Que outro norte haveria? A sensação do imponderável. A vertigem. Está aí algo que te embriaga e te excita. O escritor tem veias abertas. Profissão mais hemorrágica, tens de o admitir. Cronicar – lá estás tu – é fazer a comédia dos costumes. A canalha fica toda eriçada, mas o que se pode fazer? São para esquecer os nossos deuses pequenos. Mesmo os grandes são aquilo que a gente sabe. Retratar a falência dos dias que passam é a tua sina. Estás lixado…
A boca da tarde parece uma festa
Assim, as coisas bem vistas, o mundo é uma espécie de harmonia. O vasto azul do mar e um navio desliza para o cais de Mucuripe. O pessoano cais da hora marítima. Ao longo da avenida Beira-mar, o tremeluzir dos automóveis e do neón da publicidade. Faz algum sentido. Ou sentido nenhum. A boca da tarde parece uma festa. Apetecia estar num carrossel. Aquele da infância, outro nunca. Sei-o pela nostalgia com que olhas o vácuo do 11º andar. Uma harmonia e tu, em transe, assobias uma morna neurasténica. És tu ali, em pessoa, sem tirar nem pôr. Quixote vicioso e gracejas da tua Dulcineia…
Escrita 2
Preferias que eu escrevesse trivialidades. A escrita não pode perder a sua finalidade de passatempo. Depois, é sempre menos arriscado. O cronista tem este dilema: a inglória da salvação ou a morte sublime. Entre uma e outra coisa, preferias que eu pedisse uma cerveja “estupidamente”, como aliás sugeriu o garçon. Agora, mais a sério, querias que eu destilasse um veneno contra a monotonia, mas leve, levezinho, que deixasse tudo na santa paz. Prometo pensar no teu caso. Com carinho. E sentido de sobrevivência. Quase a exaltar as manhãs que cantam. Inocente, cândido e simples. Uma espécie de harmonia. Os teus olhos são lindos de morrer. E o teu afago é tudo o que reclama a minha vida. És a minha praia, sabias? Todavia, não meço bem todas as distâncias e tem horas que perco a compostura. Acho que a Constituição me garante tal direito. Se não o garante, que garantisse. Ia até dizer um palavrão…
A caminho
O Bastonário sobe ao palanque e começa a mandar vir. É tudo tão absurdo que nos desatamos a rir. Devíamos, a rigor, chorar. Mas não. Tornamo-nos imunes à invasão da nossa cidadania. Digam o que disserem, continuamos os flagelados do vento leste. Democracia é o menos indecente dos regimes, consolamo-nos com a máxima de Churchill, chiça. Mas demais faz mal, como diria um grande profeta marciano. Vemo-lo confuso se deve e trôpego se pode dar tantos pontapés na lei. Acho que a Constituição reprova. Se não o reprova, que reprovasse. O que me espanta mais são os seus pares, paradíssimos da silva, a medo de serem postos na ordem. Não vá o diabo tecê-las. Tem horas que apetece mandar um manguito concêntrico e fechar a loja para férias. Um absurdo. Igual só a gripe das aves que, inexoravelmente, desponta. A caminho…
Debruças na varanda do 11º andar e olhas o imenso calçadão, o arreal e o mundo. Assim de repente, questionas a vida e a lida sabe-te sempre a pouco. Devias ter ido por ali. Ou talvez nem isso. Que outro norte haveria? A sensação do imponderável. A vertigem. Está aí algo que te embriaga e te excita. O escritor tem veias abertas. Profissão mais hemorrágica, tens de o admitir. Cronicar – lá estás tu – é fazer a comédia dos costumes. A canalha fica toda eriçada, mas o que se pode fazer? São para esquecer os nossos deuses pequenos. Mesmo os grandes são aquilo que a gente sabe. Retratar a falência dos dias que passam é a tua sina. Estás lixado…
A boca da tarde parece uma festa
Assim, as coisas bem vistas, o mundo é uma espécie de harmonia. O vasto azul do mar e um navio desliza para o cais de Mucuripe. O pessoano cais da hora marítima. Ao longo da avenida Beira-mar, o tremeluzir dos automóveis e do neón da publicidade. Faz algum sentido. Ou sentido nenhum. A boca da tarde parece uma festa. Apetecia estar num carrossel. Aquele da infância, outro nunca. Sei-o pela nostalgia com que olhas o vácuo do 11º andar. Uma harmonia e tu, em transe, assobias uma morna neurasténica. És tu ali, em pessoa, sem tirar nem pôr. Quixote vicioso e gracejas da tua Dulcineia…
Escrita 2
Preferias que eu escrevesse trivialidades. A escrita não pode perder a sua finalidade de passatempo. Depois, é sempre menos arriscado. O cronista tem este dilema: a inglória da salvação ou a morte sublime. Entre uma e outra coisa, preferias que eu pedisse uma cerveja “estupidamente”, como aliás sugeriu o garçon. Agora, mais a sério, querias que eu destilasse um veneno contra a monotonia, mas leve, levezinho, que deixasse tudo na santa paz. Prometo pensar no teu caso. Com carinho. E sentido de sobrevivência. Quase a exaltar as manhãs que cantam. Inocente, cândido e simples. Uma espécie de harmonia. Os teus olhos são lindos de morrer. E o teu afago é tudo o que reclama a minha vida. És a minha praia, sabias? Todavia, não meço bem todas as distâncias e tem horas que perco a compostura. Acho que a Constituição me garante tal direito. Se não o garante, que garantisse. Ia até dizer um palavrão…
A caminho
O Bastonário sobe ao palanque e começa a mandar vir. É tudo tão absurdo que nos desatamos a rir. Devíamos, a rigor, chorar. Mas não. Tornamo-nos imunes à invasão da nossa cidadania. Digam o que disserem, continuamos os flagelados do vento leste. Democracia é o menos indecente dos regimes, consolamo-nos com a máxima de Churchill, chiça. Mas demais faz mal, como diria um grande profeta marciano. Vemo-lo confuso se deve e trôpego se pode dar tantos pontapés na lei. Acho que a Constituição reprova. Se não o reprova, que reprovasse. O que me espanta mais são os seus pares, paradíssimos da silva, a medo de serem postos na ordem. Não vá o diabo tecê-las. Tem horas que apetece mandar um manguito concêntrico e fechar a loja para férias. Um absurdo. Igual só a gripe das aves que, inexoravelmente, desponta. A caminho…
sexta-feira, 14 de outubro de 2005
O rei e o poeta
Ao senhor Walter, em Fortaleza
O rei e o poeta
O que Petronius não suportava mesmo nada era a prerrogativa de Nero de condenar ou de absolver os romanos. Era excessivo, pensava o filósofo ao esboçar Satiricom, o melhor dos textos. Reduzir Nero a nada seria sua secreta obsessão e, pensando bem, legitima obsessão de qualquer intelectual face a certos aparatos. Nessa linha de pensamento, o adágio de Chinua Achebe: o poeta que não tem problemas com o rei, terá problemas com a sua poesia. Lá estás tu, ó minha sombra, a dizer-me que não somos romanos! Enquanto, de lés a lés, percorremos a estrada, sei já do que não queria. Era ter problemas com a minha poesia…
Luzes na ribalta
Acaba de ganhar o Grande Prémio Cidade Velha, o académico Gabriel Fernandes. Estou eufórico. A mesma euforia sentida aquando Ludgero Correia ganhou o Prémio Sonangol. Ou, quando há um ano, José Luís Tavares recebeu o Prémio Mário Cláudio, da Gulbenkian. Algo está a acontecer, enquanto o mundo é este paradoxo às voltas. Novos actores entram em cena e damos início a um novo acto. Estou mesmo eufórico. Novos paradigmas circulam no palco cultural cabo-verdiano, com causa e consequência. Os teus óculos não olham por essa perspectiva que eu sei. Viciosos esses óculos teus. Tão eufórico que estou. Luzes na ribalta. Música, maestro!
Noites grávidas de punhais
Pessoalmente achei de bonito gesto (já nem direi necessário) da verdade e da reconciliação. Todas as revoluções têm o seu residual de excesso e a nossa, por não ter sido à nossa medida, teve apenas travessuras acidentais. Havia que rever tudo, branquear o que for preciso, sublimar uma ou outra culpa e tocar o barco para a frente. O tempo é o grande moldador das vontades. E já faz algum tempo, diga-se de passagem. Isso lembra-me as amnistias depois das noites grávidas de punhais. Mas é preciso não inverter as coisas. É que, mau grado o vendilhão, a maioria quis e quer a Independência destas ilhas. As comemorações do 30º Aniversário são disso prova…
Ainda às escuras…
E, por falar nisso, está aí uma coisa que eu desconhecia: ninguém pode nada contra a Electra. Literalmente ninguém. Não me leves a mal, mas tu também, como eu, estás lébi-lébi. Isso nos ultrapassa. Assim, nesta impotência generalizada, que lembra ao sanatório geral, temos de esperar para ver o fim dessa história. Por estas e por outras que o falecido nunca acreditou nessa carochinha das privatizações…
À espera de Godot
Vi a tua lista e os magníficos nele alinhados. Uns, por mérito. Outros, por demérito. Direi mesmo, e sem papas na língua, por demagogia. Demonstrando em plena praça o teu mau gosto e o teu côvado afinal não sublimado. Senti pena, muita pena de ti, e estás perdoado por tudo. Pelo feito. E pelo não feito. Sem drama nenhum. Como escrevi numa crónica, não se deve fazer drama com a falta de sentido estético. O prezadíssimo Pranchinha morreu deveras e nada mais natural do que a morte. Morreu cá dentro, palavra. E não há grandes razões para os epitáfios. Nem para as caudalosas guisas. Ele apenas diria (se vivo estivesse) que é preciso partir como se chegou – sem alarde…
O rei e o poeta
O que Petronius não suportava mesmo nada era a prerrogativa de Nero de condenar ou de absolver os romanos. Era excessivo, pensava o filósofo ao esboçar Satiricom, o melhor dos textos. Reduzir Nero a nada seria sua secreta obsessão e, pensando bem, legitima obsessão de qualquer intelectual face a certos aparatos. Nessa linha de pensamento, o adágio de Chinua Achebe: o poeta que não tem problemas com o rei, terá problemas com a sua poesia. Lá estás tu, ó minha sombra, a dizer-me que não somos romanos! Enquanto, de lés a lés, percorremos a estrada, sei já do que não queria. Era ter problemas com a minha poesia…
Luzes na ribalta
Acaba de ganhar o Grande Prémio Cidade Velha, o académico Gabriel Fernandes. Estou eufórico. A mesma euforia sentida aquando Ludgero Correia ganhou o Prémio Sonangol. Ou, quando há um ano, José Luís Tavares recebeu o Prémio Mário Cláudio, da Gulbenkian. Algo está a acontecer, enquanto o mundo é este paradoxo às voltas. Novos actores entram em cena e damos início a um novo acto. Estou mesmo eufórico. Novos paradigmas circulam no palco cultural cabo-verdiano, com causa e consequência. Os teus óculos não olham por essa perspectiva que eu sei. Viciosos esses óculos teus. Tão eufórico que estou. Luzes na ribalta. Música, maestro!
Noites grávidas de punhais
Pessoalmente achei de bonito gesto (já nem direi necessário) da verdade e da reconciliação. Todas as revoluções têm o seu residual de excesso e a nossa, por não ter sido à nossa medida, teve apenas travessuras acidentais. Havia que rever tudo, branquear o que for preciso, sublimar uma ou outra culpa e tocar o barco para a frente. O tempo é o grande moldador das vontades. E já faz algum tempo, diga-se de passagem. Isso lembra-me as amnistias depois das noites grávidas de punhais. Mas é preciso não inverter as coisas. É que, mau grado o vendilhão, a maioria quis e quer a Independência destas ilhas. As comemorações do 30º Aniversário são disso prova…
Ainda às escuras…
E, por falar nisso, está aí uma coisa que eu desconhecia: ninguém pode nada contra a Electra. Literalmente ninguém. Não me leves a mal, mas tu também, como eu, estás lébi-lébi. Isso nos ultrapassa. Assim, nesta impotência generalizada, que lembra ao sanatório geral, temos de esperar para ver o fim dessa história. Por estas e por outras que o falecido nunca acreditou nessa carochinha das privatizações…
À espera de Godot
Vi a tua lista e os magníficos nele alinhados. Uns, por mérito. Outros, por demérito. Direi mesmo, e sem papas na língua, por demagogia. Demonstrando em plena praça o teu mau gosto e o teu côvado afinal não sublimado. Senti pena, muita pena de ti, e estás perdoado por tudo. Pelo feito. E pelo não feito. Sem drama nenhum. Como escrevi numa crónica, não se deve fazer drama com a falta de sentido estético. O prezadíssimo Pranchinha morreu deveras e nada mais natural do que a morte. Morreu cá dentro, palavra. E não há grandes razões para os epitáfios. Nem para as caudalosas guisas. Ele apenas diria (se vivo estivesse) que é preciso partir como se chegou – sem alarde…
domingo, 2 de outubro de 2005
Qualquer música e outras notas
No dia mundial da música
Só pode ser coincidência feliz que o Pablo, meu filho, tenha nascido no Dia Mundial da Música. Pablo Casales e Pablo Milanês me inspiraram na escolha do nome, quando o miúdo nascia há 3 anos, em Boston. Neruda também (outro Pablo!) serviu de mote, pois o que é a poesia senão música a determinada freqüência. Aliás, tanto Pablo como Denzel (meu filho mais velho) amam a música, inumerável, diversa e variável. Naturalmente que temos com a música uma relação meramente passional. Agora mesmo, o sol a pôr-se na praia, um repentista canta, em rima de “ena” decassílabas para o meu coração. Estou esotérico e hermético que eu sei. Deve ser da morte do Pranchinha. Aniversário do Pablo, será? Ou de eu ter saltado para o lado de lá. Peço desculpas, mas eu vou com a música...
Maskrinha
Não me alinho no pensamento ideológico, preferindo antes refletir por caminhos oblíquos, como diria Jean Baudrillard. As sondagens aparecidas ultimamente (por boca e por escrito) são pouco transparentes e nada respeitáveis. Não é assim, de modo rasca e sub-reptício, que se apresentam sondagens ao cidadão. Nós já passamos desta fase. As capelinhas, umas e outras, precisam ter uma visão mais apropriada das nossas demandas. As percentagens surgidas (para um espectáculo mais do que falacioso, diga-se) só irão enganar os incautos. O inusitado e o insólito é sermos ainda bombardeados por métodos arcaicos e fraudulentos em plena dinâmica do milênio. Maskinha djan konxebu...
A manifestação do Pró Praia
A manifestação dos praienses contra a Electra parece ser um acto refundador da cidadania municipal. Ausente do país, não poderei participar da passeata que, em boa verdade, merece a adesão de todos. Menos dos masoquistas que gostam de ficar no escuro. Ou daqueles que, tendo feito da situação um negócio da China, estão sem moral para dar a cara. Não podemos admitir crédito ilimitado às circunstâncias. Trata-se de uma questão política? É algo mais profundo. Tem a ver com a necessidade de transpolitização do cidadão. A electricidade de há muito que passou a ser produto de primeira necessidade. E, neste particular, a Electra tem sido o grau zero em matéria de respeito ao cliente. Trata-se de um abuso, de uma operação de chantagem. E isso não deve ficar impune. De maneira alguma, caríssimos praienses...
Pôr-do-sol em Fortaleza
Estou em Fortaleza. Diante do mar. No calçadão, uma bonita feira de artesanato. Alguém canta, no realejo, uma musica distante. De Gilberto Gil. Diante desta profusão de gente, coisas e lembranças, tudo começa a fazer sentido. Vou aproveitar para dar uma “revisada” na saúde. Percebe-se que o espaço é uma metáfora para a estrutura da nossa existência. Uma vez ouvi esta idéia da artista plástica francesa Louise Bourgois, outra que gostava de música. De resto, no Brasil, apesar de todos os problemas, vigora o charme, a sensualidade e a alegria de viver.
Só pode ser coincidência feliz que o Pablo, meu filho, tenha nascido no Dia Mundial da Música. Pablo Casales e Pablo Milanês me inspiraram na escolha do nome, quando o miúdo nascia há 3 anos, em Boston. Neruda também (outro Pablo!) serviu de mote, pois o que é a poesia senão música a determinada freqüência. Aliás, tanto Pablo como Denzel (meu filho mais velho) amam a música, inumerável, diversa e variável. Naturalmente que temos com a música uma relação meramente passional. Agora mesmo, o sol a pôr-se na praia, um repentista canta, em rima de “ena” decassílabas para o meu coração. Estou esotérico e hermético que eu sei. Deve ser da morte do Pranchinha. Aniversário do Pablo, será? Ou de eu ter saltado para o lado de lá. Peço desculpas, mas eu vou com a música...
Maskrinha
Não me alinho no pensamento ideológico, preferindo antes refletir por caminhos oblíquos, como diria Jean Baudrillard. As sondagens aparecidas ultimamente (por boca e por escrito) são pouco transparentes e nada respeitáveis. Não é assim, de modo rasca e sub-reptício, que se apresentam sondagens ao cidadão. Nós já passamos desta fase. As capelinhas, umas e outras, precisam ter uma visão mais apropriada das nossas demandas. As percentagens surgidas (para um espectáculo mais do que falacioso, diga-se) só irão enganar os incautos. O inusitado e o insólito é sermos ainda bombardeados por métodos arcaicos e fraudulentos em plena dinâmica do milênio. Maskinha djan konxebu...
A manifestação do Pró Praia
A manifestação dos praienses contra a Electra parece ser um acto refundador da cidadania municipal. Ausente do país, não poderei participar da passeata que, em boa verdade, merece a adesão de todos. Menos dos masoquistas que gostam de ficar no escuro. Ou daqueles que, tendo feito da situação um negócio da China, estão sem moral para dar a cara. Não podemos admitir crédito ilimitado às circunstâncias. Trata-se de uma questão política? É algo mais profundo. Tem a ver com a necessidade de transpolitização do cidadão. A electricidade de há muito que passou a ser produto de primeira necessidade. E, neste particular, a Electra tem sido o grau zero em matéria de respeito ao cliente. Trata-se de um abuso, de uma operação de chantagem. E isso não deve ficar impune. De maneira alguma, caríssimos praienses...
Pôr-do-sol em Fortaleza
Estou em Fortaleza. Diante do mar. No calçadão, uma bonita feira de artesanato. Alguém canta, no realejo, uma musica distante. De Gilberto Gil. Diante desta profusão de gente, coisas e lembranças, tudo começa a fazer sentido. Vou aproveitar para dar uma “revisada” na saúde. Percebe-se que o espaço é uma metáfora para a estrutura da nossa existência. Uma vez ouvi esta idéia da artista plástica francesa Louise Bourgois, outra que gostava de música. De resto, no Brasil, apesar de todos os problemas, vigora o charme, a sensualidade e a alegria de viver.
quarta-feira, 28 de setembro de 2005
Mil práticas alegres se tocavam
Mil práticas alegres se tocavam;
Risos doces, sutis e argutos ditos,
Que entre um e outro manjar se alevantavam,
Despertando os alegres apetitos;
Luis de Camões. Os Lusíadas. Canto X
Acto de Cultura
Milhares e milhares de estudantes retornam às escolas para o ano lectivo 2005/06. É impressionante o contingente de professores e alunos em Cabo Verde. A educação é o grande leitmotiv do desenvolvimento deste país. Desde sempre e, agora, mais do que nunca. Diante deste novo patamar, em que a quantidade fala alto e a bom som, importa pensar na qualidade da nossa educação. Por uma educação que articule os valores da Cultura e da Cidadania. O desafio que se coloca à educação para a cidadania consistirá em determinar quais as necessidades dos indivíduos em termos da informação, dos saberes, das competências e capacidades para que estes se tornem socialmente empenhados. Da pré-escola ao ensino superior, o desenvolvimento é uma problemática cabralista, pois a luta continua a ser um acto de Cultura.
Últimas Notícias da Solidão
Quando Omar Camilo me convidou a dizer estas palavras sobre «Últimas Notícias da Solidão». Confesso que não aceitei o desafio à primeira. A fotografia não é área que eu domine. Tão pouco tenho sido dono do meu próprio tempo. Só que a estética é um argumento forte. Tem a força de uma requisição civil, se me permitem. E, porque estamos em tempos de emergência da estética, aceitei apresentar o meu amigo Omar Camilo. É forçoso nestes tempos transformacionais que tenhamos, em cada reflexão e acto um sentido de estética, para não vivermos condicionados ao grotesco, ao tosco e ao rude, à ruína do mau gosto e da escuridão da Electra, e o seu blakout no espírito que ele provoca. São 23 trabalhos fotográficos que têm subjacentes, a captação de «pormenores esquecidos do quotidiano das cidades», onde o tempo e a solidão são o contexto temático, como aliás adiantou à imprensa o adido cultural da Embaixada de Portugal, o meu amigo João Neves. «Ultimas notícias da solidão» é a quarta mostra fotográfica que Omar Camilo realiza em Cabo Verde, onde reside desde 2002, desenvolvendo trabalho artístico e de colaboração com instituições cabo-verdianas. As primeiras exposições aconteceram em 2003, mais precisamente em Abril, no Palácio da Cultura, nomeadamente “Luz de Cabo Verde” e “Os barcos regressam em silêncio”. A última exposição, também aconteceu em Abril, mas desde ano. Intitulada “A la puerta de mis sueños”, ela foi apresentada no Centro Cultural Francês da Praia. Com estas palavras fica o meu testemunho sobre a iniciativa deste artista cubano de fino recorte estético.
Na morte do Pranchinha
Acaba de morrer, de causa conhecida, mas mantida sob segredo, o parabólico Pranchinha, esse que, pelas mãos do colunista, dourava os leitores com ditos insubordinados, acto consagrado na própria Constituição quando a ordem vem aziaga e malparada. O defunto, que Deus o tenha, sabia destrinçar quem se governa de quem governa e o Momo, quase bobo, desse cortejo carnavalesco. Incomodativo, fazendo das tripas coração a ver se o bicho pega, ele era na verdade incapaz de matar uma mosca. A máxima do extinto: Deus há de me castigar pela soberba e a arrogância, mas ficar horas a fio a ruminar com o vulgo tamanha demagogia, isso nunca. Arre! Os seus detractores, um dia redimidos, hão de ter a cortesia de lhe visitar o epitáfio. Noblesse oblige…
Safiatu
O Mito, parabólico como sempre, manda-me uma selecção musical interessante. Safiatu, interpretado por Herbie Hancock, Angelique Kidjo e Santana. É tudo o que um pecador precisa para sublimar esta fina mediocridade dos dias. Excelente prenda para o Dia Mundial da Música, já a 1º de Outubro. Prometo fazer uma crónica sobre a música, a mãe de todas as artes. Entrementes, minha musa, deixo-te os versos de Camões que, às tantas pela rama, dizem assim:
Músicos instrumentos não faltavam
(Quais, no profundo Reino, os nus espritos
Fizeram descansar da eterna pena)
Cua voz dua angélica Sirena.
Risos doces, sutis e argutos ditos,
Que entre um e outro manjar se alevantavam,
Despertando os alegres apetitos;
Luis de Camões. Os Lusíadas. Canto X
Acto de Cultura
Milhares e milhares de estudantes retornam às escolas para o ano lectivo 2005/06. É impressionante o contingente de professores e alunos em Cabo Verde. A educação é o grande leitmotiv do desenvolvimento deste país. Desde sempre e, agora, mais do que nunca. Diante deste novo patamar, em que a quantidade fala alto e a bom som, importa pensar na qualidade da nossa educação. Por uma educação que articule os valores da Cultura e da Cidadania. O desafio que se coloca à educação para a cidadania consistirá em determinar quais as necessidades dos indivíduos em termos da informação, dos saberes, das competências e capacidades para que estes se tornem socialmente empenhados. Da pré-escola ao ensino superior, o desenvolvimento é uma problemática cabralista, pois a luta continua a ser um acto de Cultura.
Últimas Notícias da Solidão
Quando Omar Camilo me convidou a dizer estas palavras sobre «Últimas Notícias da Solidão». Confesso que não aceitei o desafio à primeira. A fotografia não é área que eu domine. Tão pouco tenho sido dono do meu próprio tempo. Só que a estética é um argumento forte. Tem a força de uma requisição civil, se me permitem. E, porque estamos em tempos de emergência da estética, aceitei apresentar o meu amigo Omar Camilo. É forçoso nestes tempos transformacionais que tenhamos, em cada reflexão e acto um sentido de estética, para não vivermos condicionados ao grotesco, ao tosco e ao rude, à ruína do mau gosto e da escuridão da Electra, e o seu blakout no espírito que ele provoca. São 23 trabalhos fotográficos que têm subjacentes, a captação de «pormenores esquecidos do quotidiano das cidades», onde o tempo e a solidão são o contexto temático, como aliás adiantou à imprensa o adido cultural da Embaixada de Portugal, o meu amigo João Neves. «Ultimas notícias da solidão» é a quarta mostra fotográfica que Omar Camilo realiza em Cabo Verde, onde reside desde 2002, desenvolvendo trabalho artístico e de colaboração com instituições cabo-verdianas. As primeiras exposições aconteceram em 2003, mais precisamente em Abril, no Palácio da Cultura, nomeadamente “Luz de Cabo Verde” e “Os barcos regressam em silêncio”. A última exposição, também aconteceu em Abril, mas desde ano. Intitulada “A la puerta de mis sueños”, ela foi apresentada no Centro Cultural Francês da Praia. Com estas palavras fica o meu testemunho sobre a iniciativa deste artista cubano de fino recorte estético.
Na morte do Pranchinha
Acaba de morrer, de causa conhecida, mas mantida sob segredo, o parabólico Pranchinha, esse que, pelas mãos do colunista, dourava os leitores com ditos insubordinados, acto consagrado na própria Constituição quando a ordem vem aziaga e malparada. O defunto, que Deus o tenha, sabia destrinçar quem se governa de quem governa e o Momo, quase bobo, desse cortejo carnavalesco. Incomodativo, fazendo das tripas coração a ver se o bicho pega, ele era na verdade incapaz de matar uma mosca. A máxima do extinto: Deus há de me castigar pela soberba e a arrogância, mas ficar horas a fio a ruminar com o vulgo tamanha demagogia, isso nunca. Arre! Os seus detractores, um dia redimidos, hão de ter a cortesia de lhe visitar o epitáfio. Noblesse oblige…
Safiatu
O Mito, parabólico como sempre, manda-me uma selecção musical interessante. Safiatu, interpretado por Herbie Hancock, Angelique Kidjo e Santana. É tudo o que um pecador precisa para sublimar esta fina mediocridade dos dias. Excelente prenda para o Dia Mundial da Música, já a 1º de Outubro. Prometo fazer uma crónica sobre a música, a mãe de todas as artes. Entrementes, minha musa, deixo-te os versos de Camões que, às tantas pela rama, dizem assim:
Músicos instrumentos não faltavam
(Quais, no profundo Reino, os nus espritos
Fizeram descansar da eterna pena)
Cua voz dua angélica Sirena.
sexta-feira, 9 de setembro de 2005
Soletrado vinho
Mote
Correndo riscos de um dia acabar debaixo da ponte, o escritor escreve, como diria Niechstch, para não morrer de excesso de realidade. Pessoalmente, sem nenhuma pretensão, nem pedantismo, questiono muito a razão por que escrevo. Se calhar, para não ficares impune desta grande tragédia, disse-me Pranchinha. Em verdade, não consigo descortinar de onde veio o meu texto nem para onde vai. Como os números, ele não tem princípio nem fim. Mas garanto-vos que não é um verbo à-toa. Hermético, eu? Ás vezes, com muito visualismo, outras vezes, cheio das zonas de sombra, quando não o fulgor dos instantes, tudo aqui é verdade. Até mesmo a fantasia. Por isso, estou ciente de haver química e cumplicidade com os leitores. Quem lê um texto não o faz impunemente, ora. O amor é o único elemento estruturante em tudo isso. Por sinal, leio, num extraordinário livro, de Ana Luísa Amaral, estes versos: "Talvez só este abismo/Interrompo no mapa o precipício?/No traço dos teus dedos,/rota onde quase cabem: sereia,/o alaúde, o tempo,/ Nessa rota/o suspendo". É que a boa poesia recusa linha programática ou ideológica. Ela é simplesmente (musas somente) o espaço das belas letras. Não há impunidade possível, ó gente amiga!
Soletrado nesse vinho
Impunemente, uma taça desse vinho para a festa do corpo. E o recriar de tantas almas pelos lagares. Muitos lugares de passagem, onde os teus pézinhos, imperceptíveis de tão ágeis, saltitam sobre as hordas das vindimas. No fascínio que seria o vir a melodia, o teu olhar que nem sabe quão de mim é paz, sina e salvação, essas coisas vagarosas que se instalam em nós como uma grude. E mais, esse lacre quente de puro chocolate, que é o meu desejo. Até nas pedras, nas mais puras e nas quase nuas, calhaus apenas que estiram os nossos corpos no tapete dos sonhos. Textura, nervura, o que mais queiras, nada que não roube no coração todo este silêncio que temos sido...
Nova Orleãns
Dá pena ver crianças e velhos a chorarem entre os escombros do que restou de Nova Orleãns, cidade de Louis Armstrong e de Wynton Marsalis, para falar de dois imortais da música americana. As vítimas do furacão Katrina são a fase visível da incompetência, da incúria e do racismo. Não foi o furacão que lhes trouxe a calema. Ele apenas pôs a nu algo que se escondia nos ghettos, numa cidade que se veste de música e de carnaval para o consumo dos turistas. A tragédia há muito que tinha chegado ao delta do Mississipi, desde o vergonhoso tempo da escravatura. E da subsequente segregação. E da actual proletarização do negro. A escravatura, pelo resquícios de hoje, continua pior, muito pior do que o holocausto e é preciso que alguém o diga, sem medo de desagradar os senhores deste mundo. Este inferno, mercê de uma negligência franciscana e ulterior, deve merecer o repúdio de todos. Até porque os furacões têm algo a ver com o aquecimento global e esta catástrofe há de nos lembrar que é preciso assinar o Protocolo de Quioto. Problema mais sério do que o descalabro no mercado petrolífero e na economia globalitária reinante. Haja Humanidade!
Porto da Praia e a segurança nacional
O Porto da Praia, de longe o mais vital do país, está bloqueado, mercê de um quiproquó laboral entre o patronato (Enapor) e o sindicato (SIACSA). Enquanto isso, a fazer jus à Comunidade Portuária da Praia, o país encontra-se à beira de uma ruptura. Os prejuízos são enormes e o cidadão começa a pagar na pele o desentendimento no cais da Praia. Uma crónica de Péricles Barros descreve o caso de um diabético em risco de vida, porque os trabalhadores não autorizam o embarque da carga (entre ela o remédio vital) para a Brava. Nesse excelente artigo, Barros escreveu o seguinte: Imaginem se o presidente do sindicato dos estivadores tivesse um pai a morrer na Brava hoje, por falta de um vaso dilatador? Aí os déreis ou mil-réis a mais, o raio do PCCS, o novo sistema de remuneração que reivindicam deixavam imediatamente de ser uma prioridade; este homem era capaz de matar para enviar as ampolas do medicamento que o pai carece. A par disso, os empresários estão desesperados. E os investidores começam a torcer o nariz. Fala-se em legitimidade dos trabalhadores. Fala-se também da coerência do patronato. Mas nada disso resolve o problema do cidadão contribuinte e eleitor (e muito menos do diabético na Brava). Muitas questões emergem desse cenário, a merecer cuidadoso inquérito sobre as razões e as causas, algumas muito obscuras. E a realidade vai sendo esta: muitos navios aguardam ao largo para a descarga. As ilhas do Fogo, Brava, Maio e Boavista estão desabastecidas e há ruptura de produtos. Alguns navios rumaram à Guiné-Bissau por não poderem fazer operações no porto da capital. Outros foram desviados para São Vicente. Estranhamente, apesar das regulamentações e das práticas serem as mesmas no Porto Grande, as reivindicações dos trabalhadores ali não têm sido paralisantes. Será que há lodo no cais da Praia? Razão para dizer, com o humor a doer, mandem o pai do desgraçado para a ilha da Brava a ver se dói, carago! Havendo esse lodo, seria mais do que hora de o Governo intervir. O Porto da Praia é, no mínimo, uma questão de segurança nacional!
Correndo riscos de um dia acabar debaixo da ponte, o escritor escreve, como diria Niechstch, para não morrer de excesso de realidade. Pessoalmente, sem nenhuma pretensão, nem pedantismo, questiono muito a razão por que escrevo. Se calhar, para não ficares impune desta grande tragédia, disse-me Pranchinha. Em verdade, não consigo descortinar de onde veio o meu texto nem para onde vai. Como os números, ele não tem princípio nem fim. Mas garanto-vos que não é um verbo à-toa. Hermético, eu? Ás vezes, com muito visualismo, outras vezes, cheio das zonas de sombra, quando não o fulgor dos instantes, tudo aqui é verdade. Até mesmo a fantasia. Por isso, estou ciente de haver química e cumplicidade com os leitores. Quem lê um texto não o faz impunemente, ora. O amor é o único elemento estruturante em tudo isso. Por sinal, leio, num extraordinário livro, de Ana Luísa Amaral, estes versos: "Talvez só este abismo/Interrompo no mapa o precipício?/No traço dos teus dedos,/rota onde quase cabem: sereia,/o alaúde, o tempo,/ Nessa rota/o suspendo". É que a boa poesia recusa linha programática ou ideológica. Ela é simplesmente (musas somente) o espaço das belas letras. Não há impunidade possível, ó gente amiga!
Soletrado nesse vinho
Impunemente, uma taça desse vinho para a festa do corpo. E o recriar de tantas almas pelos lagares. Muitos lugares de passagem, onde os teus pézinhos, imperceptíveis de tão ágeis, saltitam sobre as hordas das vindimas. No fascínio que seria o vir a melodia, o teu olhar que nem sabe quão de mim é paz, sina e salvação, essas coisas vagarosas que se instalam em nós como uma grude. E mais, esse lacre quente de puro chocolate, que é o meu desejo. Até nas pedras, nas mais puras e nas quase nuas, calhaus apenas que estiram os nossos corpos no tapete dos sonhos. Textura, nervura, o que mais queiras, nada que não roube no coração todo este silêncio que temos sido...
Nova Orleãns
Dá pena ver crianças e velhos a chorarem entre os escombros do que restou de Nova Orleãns, cidade de Louis Armstrong e de Wynton Marsalis, para falar de dois imortais da música americana. As vítimas do furacão Katrina são a fase visível da incompetência, da incúria e do racismo. Não foi o furacão que lhes trouxe a calema. Ele apenas pôs a nu algo que se escondia nos ghettos, numa cidade que se veste de música e de carnaval para o consumo dos turistas. A tragédia há muito que tinha chegado ao delta do Mississipi, desde o vergonhoso tempo da escravatura. E da subsequente segregação. E da actual proletarização do negro. A escravatura, pelo resquícios de hoje, continua pior, muito pior do que o holocausto e é preciso que alguém o diga, sem medo de desagradar os senhores deste mundo. Este inferno, mercê de uma negligência franciscana e ulterior, deve merecer o repúdio de todos. Até porque os furacões têm algo a ver com o aquecimento global e esta catástrofe há de nos lembrar que é preciso assinar o Protocolo de Quioto. Problema mais sério do que o descalabro no mercado petrolífero e na economia globalitária reinante. Haja Humanidade!
Porto da Praia e a segurança nacional
O Porto da Praia, de longe o mais vital do país, está bloqueado, mercê de um quiproquó laboral entre o patronato (Enapor) e o sindicato (SIACSA). Enquanto isso, a fazer jus à Comunidade Portuária da Praia, o país encontra-se à beira de uma ruptura. Os prejuízos são enormes e o cidadão começa a pagar na pele o desentendimento no cais da Praia. Uma crónica de Péricles Barros descreve o caso de um diabético em risco de vida, porque os trabalhadores não autorizam o embarque da carga (entre ela o remédio vital) para a Brava. Nesse excelente artigo, Barros escreveu o seguinte: Imaginem se o presidente do sindicato dos estivadores tivesse um pai a morrer na Brava hoje, por falta de um vaso dilatador? Aí os déreis ou mil-réis a mais, o raio do PCCS, o novo sistema de remuneração que reivindicam deixavam imediatamente de ser uma prioridade; este homem era capaz de matar para enviar as ampolas do medicamento que o pai carece. A par disso, os empresários estão desesperados. E os investidores começam a torcer o nariz. Fala-se em legitimidade dos trabalhadores. Fala-se também da coerência do patronato. Mas nada disso resolve o problema do cidadão contribuinte e eleitor (e muito menos do diabético na Brava). Muitas questões emergem desse cenário, a merecer cuidadoso inquérito sobre as razões e as causas, algumas muito obscuras. E a realidade vai sendo esta: muitos navios aguardam ao largo para a descarga. As ilhas do Fogo, Brava, Maio e Boavista estão desabastecidas e há ruptura de produtos. Alguns navios rumaram à Guiné-Bissau por não poderem fazer operações no porto da capital. Outros foram desviados para São Vicente. Estranhamente, apesar das regulamentações e das práticas serem as mesmas no Porto Grande, as reivindicações dos trabalhadores ali não têm sido paralisantes. Será que há lodo no cais da Praia? Razão para dizer, com o humor a doer, mandem o pai do desgraçado para a ilha da Brava a ver se dói, carago! Havendo esse lodo, seria mais do que hora de o Governo intervir. O Porto da Praia é, no mínimo, uma questão de segurança nacional!
quarta-feira, 31 de agosto de 2005
Alta do petróleo, karma, mantra & etc
O dó das estrelas
Cansado de uma ronda de reuniões, queria lidar a esta hora com a poesia, as artes, coisas realmente mais sublimes e mais sintonizadas com a alma. Para alguns, este frenesim é excitante e, por isso, adrenalina pura. Para mim, o cargo tem a ver com o encargo. A pesada canga da responsabilidade, condicionada ao odor bafiento dos gabinetes. Queria, se me permites, ouvir agora As Quatro Estações, de Vivaldi (Primavera, sobretudo) e, de olhos cerrados, visualizar o Roger Williams Park com os seus cisnes a deslizar na água. Hás de perguntar o que se passa comigo. Às vezes, quero perceber os versos de Fernando Pessoa: tenho dó das estrelas, luzindo há tanto tempo. Outras vezes, vou à Ponta Temerosa, que é o extremo desta minha cidade, e olho, com neurastenia, para o vasto e azulado vão. É que cansa, cansa mesmo, não poder contemplar o mundo. Há dias, em São Vicente, passei horas esquecidas com o Vasco Martins e o Tchalé Figueira, dilectos amigos, na grandeza silenciosa do Monte Verde. Silenciosa vírgula, pois, vez por outra, a beleza do mundo era invadida pelo grasnar de um corvo ou pelo piar de um falcão. Tão bom ouvir, ante o grande silêncio que a montanha exala, o ciciar dos bichos no nosso cansaço! Dirás que é meu karma. Ou simples questão de mantra este meu lado espiritual que atenta à perfeita sintonia e à curiosa clave entre o cantar de galo e as peixeiras madrugadoras a pregoar “cavala fresta”. Sim, fiquemos por esses nadas que – fumo violeta deste incenso –, vagam o meu pensamento para o além. E, antes que tarde mais no meu coração, te suplico que sejas poesia …
A surfar pelos blogs
Roubo tempo à burocracia, arre, e navego um bocado pelos blogs. Ultimamente, andamos todos bissextos nesta praça. Leio algo sobre o Tcheka Andrade, outro que admiro, e me sinto apaziguado. Se isto tudo fosse padrão Mayra & Tcheka! Temos de pensar no grande salto de qualidade para a nossa Cultura. O by-pass para a excelência não se compadece com algum assistencialismo artístico, um tanto ao quanto difícil de se desacelerar. Tão pouco significa marcar passo no tosco, quando o segredo é o bom acabamento e a apresentação de marca. E muito menos ficarmos a repisar o já visto, numa hora de inovação e competição. Obviamente, mais alma, como diria o matricial Orlando Pantera. Mas falava dos blogs e, desta feita, vou deixar algumas opiniões. Modestíssimas e exclusivas opiniões, diga-se. Posições nada a ver, mas ditas ao sabor do tempo, que a crónica, ela sim, tem a ver com o cronos e o resto é história. A propósito, com respeito às susceptibilidades e trocadilhos rascas, as "Alegrias" trazidas para esta "Praça" foram-nos impostas pelo monstro da incompetência, que a todos domina. Se para o mau entendedor, meia palavra besta; para aquele que vê alguma graça na desgraça, este vaticínio de que humor é um acto de inteligência. Ou seja, tem de ser cultivado, ora…
The Big Easy
Não posso pensar em Nova Orleães sem ouvir, remotamente, a música de Sidney Bechet. La vie en rose, executado em clarinete. Uma vez, em pleno Carnaval da cidade – The Big Easy, diz-se –, alguém tocara essa música, que é um pouco a minha infância, e eu não posso deixar de ligar uma coisa com outra. Depois, vejo-te a comer, com tanta gana, o Cajun Combination (jambalaya, gumbo, ostras, you may name it…), nesse restaurante da Bourbon St. E a fazeres fila, por umas horinhas de blues e zydeco, na House of Blues. O que será feita da House of Blues, na Decatur St? Pois é, estou triste. Triste, triste, triste, como no poema de Valentinous Velhinho. Acompanhei, com consternação, os estragos que o Furacão Katrina fez à cidade de Nova Orleães. Gente morta, desalojada, desesperada. Os diques e as comportas já não resultam. O saque saiu à ordem do dia. E a pobreza, muitas vezes escondida pelas imagens fabricadas, grita alto para todo o mundo ouvir. A cidade histórica ficou submersa. Um grande património mundial em perigo. A crioulidade ficou ferida. Entrementes, as antenas internacionais dizem que o preço do barril de petróleo fechou terça-feira nos 70,45 dólares no mercado de Nova Iorque, mercê da quebra na produção de 1,4 milhões de barris de petróleo. La vie en rose, é melodia que não sai do meu pensamento. Antes que tarde mais, vem em poesia…
Li na lém di Mulato
Tempo apenas para repisar: o Aeroporto Internacional da Praia é para ontem. O Platô Digital é projecto que merece o nosso aplauso. A circular é obra com letras maiúsculas. A pavimentação do Platô – de asfalto ou de pedra, ou, mesmo, o misto destes dois elementos –, já tarda. A capital enlameada, sitiada de chuva, é feia e dá para esquecer. Di-lo, com propriedade, José António dos Reis. Vamos todos, ciosos dos nossos republicanos direitos, ficar atentos. Construtivamente, diga-se. Já dizia Nho Naxu: ka nu sunha kordadu, pa nu ka durmi na forma…
Cansado de uma ronda de reuniões, queria lidar a esta hora com a poesia, as artes, coisas realmente mais sublimes e mais sintonizadas com a alma. Para alguns, este frenesim é excitante e, por isso, adrenalina pura. Para mim, o cargo tem a ver com o encargo. A pesada canga da responsabilidade, condicionada ao odor bafiento dos gabinetes. Queria, se me permites, ouvir agora As Quatro Estações, de Vivaldi (Primavera, sobretudo) e, de olhos cerrados, visualizar o Roger Williams Park com os seus cisnes a deslizar na água. Hás de perguntar o que se passa comigo. Às vezes, quero perceber os versos de Fernando Pessoa: tenho dó das estrelas, luzindo há tanto tempo. Outras vezes, vou à Ponta Temerosa, que é o extremo desta minha cidade, e olho, com neurastenia, para o vasto e azulado vão. É que cansa, cansa mesmo, não poder contemplar o mundo. Há dias, em São Vicente, passei horas esquecidas com o Vasco Martins e o Tchalé Figueira, dilectos amigos, na grandeza silenciosa do Monte Verde. Silenciosa vírgula, pois, vez por outra, a beleza do mundo era invadida pelo grasnar de um corvo ou pelo piar de um falcão. Tão bom ouvir, ante o grande silêncio que a montanha exala, o ciciar dos bichos no nosso cansaço! Dirás que é meu karma. Ou simples questão de mantra este meu lado espiritual que atenta à perfeita sintonia e à curiosa clave entre o cantar de galo e as peixeiras madrugadoras a pregoar “cavala fresta”. Sim, fiquemos por esses nadas que – fumo violeta deste incenso –, vagam o meu pensamento para o além. E, antes que tarde mais no meu coração, te suplico que sejas poesia …
A surfar pelos blogs
Roubo tempo à burocracia, arre, e navego um bocado pelos blogs. Ultimamente, andamos todos bissextos nesta praça. Leio algo sobre o Tcheka Andrade, outro que admiro, e me sinto apaziguado. Se isto tudo fosse padrão Mayra & Tcheka! Temos de pensar no grande salto de qualidade para a nossa Cultura. O by-pass para a excelência não se compadece com algum assistencialismo artístico, um tanto ao quanto difícil de se desacelerar. Tão pouco significa marcar passo no tosco, quando o segredo é o bom acabamento e a apresentação de marca. E muito menos ficarmos a repisar o já visto, numa hora de inovação e competição. Obviamente, mais alma, como diria o matricial Orlando Pantera. Mas falava dos blogs e, desta feita, vou deixar algumas opiniões. Modestíssimas e exclusivas opiniões, diga-se. Posições nada a ver, mas ditas ao sabor do tempo, que a crónica, ela sim, tem a ver com o cronos e o resto é história. A propósito, com respeito às susceptibilidades e trocadilhos rascas, as "Alegrias" trazidas para esta "Praça" foram-nos impostas pelo monstro da incompetência, que a todos domina. Se para o mau entendedor, meia palavra besta; para aquele que vê alguma graça na desgraça, este vaticínio de que humor é um acto de inteligência. Ou seja, tem de ser cultivado, ora…
The Big Easy
Não posso pensar em Nova Orleães sem ouvir, remotamente, a música de Sidney Bechet. La vie en rose, executado em clarinete. Uma vez, em pleno Carnaval da cidade – The Big Easy, diz-se –, alguém tocara essa música, que é um pouco a minha infância, e eu não posso deixar de ligar uma coisa com outra. Depois, vejo-te a comer, com tanta gana, o Cajun Combination (jambalaya, gumbo, ostras, you may name it…), nesse restaurante da Bourbon St. E a fazeres fila, por umas horinhas de blues e zydeco, na House of Blues. O que será feita da House of Blues, na Decatur St? Pois é, estou triste. Triste, triste, triste, como no poema de Valentinous Velhinho. Acompanhei, com consternação, os estragos que o Furacão Katrina fez à cidade de Nova Orleães. Gente morta, desalojada, desesperada. Os diques e as comportas já não resultam. O saque saiu à ordem do dia. E a pobreza, muitas vezes escondida pelas imagens fabricadas, grita alto para todo o mundo ouvir. A cidade histórica ficou submersa. Um grande património mundial em perigo. A crioulidade ficou ferida. Entrementes, as antenas internacionais dizem que o preço do barril de petróleo fechou terça-feira nos 70,45 dólares no mercado de Nova Iorque, mercê da quebra na produção de 1,4 milhões de barris de petróleo. La vie en rose, é melodia que não sai do meu pensamento. Antes que tarde mais, vem em poesia…
Li na lém di Mulato
Tempo apenas para repisar: o Aeroporto Internacional da Praia é para ontem. O Platô Digital é projecto que merece o nosso aplauso. A circular é obra com letras maiúsculas. A pavimentação do Platô – de asfalto ou de pedra, ou, mesmo, o misto destes dois elementos –, já tarda. A capital enlameada, sitiada de chuva, é feia e dá para esquecer. Di-lo, com propriedade, José António dos Reis. Vamos todos, ciosos dos nossos republicanos direitos, ficar atentos. Construtivamente, diga-se. Já dizia Nho Naxu: ka nu sunha kordadu, pa nu ka durmi na forma…
sexta-feira, 26 de agosto de 2005
Viciosa chuva
O que à vigília cinzela o plúmbeo do céu,
Tu, e os outros, nesta acústica da pétala,
Só de saudades sois silêncio agora em mim
Ou de caos tão-somente no cosmos desta voz…
Todos os átomos e todas as poeiras giram
Suspensos no maluco carrossel das horas
E como relógios destravados de música
Soltam-se o alarme e o alarde na quietude…
Pura gota, minúscula que seja, de chuva
Que me desperta para o reencontro das coisas
E me olha das pedras que à vidraça soletra…
Escorrendo parte em meu corpo, de alma
Aqui liquefeita de uma viscosa boca tua
Que nos degusta o sal, fruto de poemas nós…
Filinto Elísio
Tu, e os outros, nesta acústica da pétala,
Só de saudades sois silêncio agora em mim
Ou de caos tão-somente no cosmos desta voz…
Todos os átomos e todas as poeiras giram
Suspensos no maluco carrossel das horas
E como relógios destravados de música
Soltam-se o alarme e o alarde na quietude…
Pura gota, minúscula que seja, de chuva
Que me desperta para o reencontro das coisas
E me olha das pedras que à vidraça soletra…
Escorrendo parte em meu corpo, de alma
Aqui liquefeita de uma viscosa boca tua
Que nos degusta o sal, fruto de poemas nós…
Filinto Elísio
quarta-feira, 24 de agosto de 2005
Insólitos ou nem isso
Fidalgo Preto
Fico feliz e eufórico, pois desta feita ganhou o Prémio Sonangol da Literatura – 2005, o amigo e confrade Álvaro Ludgero Correia, com o pseudónimo literário Fidalgo Preto. O romance intitula-se “Baban – O Ladino” e alarga a bibliografia cabo-verdiana com o romanesco. Ludgero Correia sabia-o bom cronista, dos que dizem as verdades com laivos de humor. Como intelectual que se preza provoca reacções mil, umas de amor, outras de ódio, mas nenhuma de indiferença. E como cidadão, ele faz presença, diria mesmo que é dos tais que tem peso e ocupa espaço. Espera-se que Cabo Verde se dê conta de quanto o prémio a todos prestigia. Ano do trigésimo, do milénio, do PDM, da universidade, do Grammy…palmas para Cabo Verde. Com perdão às vossas senhorias do Pró Praia (bem como da outra comandita mais estreita), palmas para Álvaro Ludgero Correia, nosso Fidalgo Preto!
Livro e festival
Olha, terminei o último verso do livro Das Frutas Serenadas. Fiquei mais leve, quase a flutuar. Ou a levitar. Escrever um livro tão íntimo que, já feito, nos fica este travo de melancolia. O mundo é um grande leviatã, sabes. Uma antropofagia que nos engole lentamente. Depois passei horas esquecidas a ver, pela televisão, o directo do Festival da Baía das Gatas. Boa moldura humana, excelente civismo e homenagem merecida. Luís Morais, a quem tive o privilégio de apresentar no Fesquintal de Jazz, na cidade da Praia, é um instrumentista que transcende. Voltando à Baía das Gatas, gostei demais de Dulce Pontes e os rappers vindos da França detestei. Já, ao amanhecer, reli os manuscritos do meu livro e revi as ilustrações do Mito que irão também separar os respectivos cadernos internos. Não sei se por urgência desta vigília, ou se por insónia mesmo
Pedrada no charco
Uma pedrada inconsequente, de pura rebeldia ou perturbação juvenil, contra as vidraças da Câmara Municipal de São Vicente quase roubou o show da Baía das Gatas, não fosse a providencial Dulce Pontes, e já o feito levava o arzinho de mais um quiproquó político entre a edilidade e o governo. Ai, o peso das pedras! Enquanto o circo recolhe a sua tenda e a procissão regressa ao adro, há alguma gente – aquela que Arménio Vieira caracterizaria de “gente oca, cabecinha de alfinete” – pronta para do insólito tirar um bocado de partido. Em verdade, esse quase incidente, lamentável, diga-se de passagem, servirá (já agora) como uma chamada de atenção, uma pedrada no charco de todos nós. O que o insólito não provoca! Agora, devagar, devagarinho, à maneira do samba, não seria outra loisa, uns e outros, nos olharmos todos de frente, olhos nos olhos…sem pedra na mão?
Despertar
Acordo indisposto. Alguém pragueja e esconjura a madrugada. Já não suporto tamanha ignomínia. Apetece-me gritar, voar, fugir. Apetece-me desaparecer do mapa. Andar noutra geografia. Ouvir som de flauta, beber água pura, ter paz. Choveu toda a noite. Ainda quis ver algo na televisão, mas a emissão foi-se. Isto é muito precário. Uma boa pancada de chuva e não há emissão televisiva. O jeito é ouvir música. Não na rádio que, a esta hora, se ajeita a programação com zoukada e o barulho afim. Pode? Adiante que a canalha dá cartas…
Mindelact
O 11º Festival Internacional de Teatro do Mindelo estará em cena de 8 a 18 de Setembro e não participar dele, mesmo como mero espectador, é perder. Quando digo perder, estarei a querer dizer o perder a oportunidade de ver as obras em desfile, o ambiente festivo e a organização que nos diz a todos de que a qualidade, mais do que uma porrada de patrocínios, tem a ver com engajamento e inovação. Mais do que teatro em si, o Mindelact é excelência de organização. O resto será este depois da chuva. O céu, em cambiantes ainda de cinzento, anuncia o fim da tarde. Na fímbria desta hora, entre a luzinha da alba e a minha solidão, alguém assobia ao longe uma velha melodia. A crónica da cidade fica para depois. Nunca é tarde, nunca é demais…
Fico feliz e eufórico, pois desta feita ganhou o Prémio Sonangol da Literatura – 2005, o amigo e confrade Álvaro Ludgero Correia, com o pseudónimo literário Fidalgo Preto. O romance intitula-se “Baban – O Ladino” e alarga a bibliografia cabo-verdiana com o romanesco. Ludgero Correia sabia-o bom cronista, dos que dizem as verdades com laivos de humor. Como intelectual que se preza provoca reacções mil, umas de amor, outras de ódio, mas nenhuma de indiferença. E como cidadão, ele faz presença, diria mesmo que é dos tais que tem peso e ocupa espaço. Espera-se que Cabo Verde se dê conta de quanto o prémio a todos prestigia. Ano do trigésimo, do milénio, do PDM, da universidade, do Grammy…palmas para Cabo Verde. Com perdão às vossas senhorias do Pró Praia (bem como da outra comandita mais estreita), palmas para Álvaro Ludgero Correia, nosso Fidalgo Preto!
Livro e festival
Olha, terminei o último verso do livro Das Frutas Serenadas. Fiquei mais leve, quase a flutuar. Ou a levitar. Escrever um livro tão íntimo que, já feito, nos fica este travo de melancolia. O mundo é um grande leviatã, sabes. Uma antropofagia que nos engole lentamente. Depois passei horas esquecidas a ver, pela televisão, o directo do Festival da Baía das Gatas. Boa moldura humana, excelente civismo e homenagem merecida. Luís Morais, a quem tive o privilégio de apresentar no Fesquintal de Jazz, na cidade da Praia, é um instrumentista que transcende. Voltando à Baía das Gatas, gostei demais de Dulce Pontes e os rappers vindos da França detestei. Já, ao amanhecer, reli os manuscritos do meu livro e revi as ilustrações do Mito que irão também separar os respectivos cadernos internos. Não sei se por urgência desta vigília, ou se por insónia mesmo
Pedrada no charco
Uma pedrada inconsequente, de pura rebeldia ou perturbação juvenil, contra as vidraças da Câmara Municipal de São Vicente quase roubou o show da Baía das Gatas, não fosse a providencial Dulce Pontes, e já o feito levava o arzinho de mais um quiproquó político entre a edilidade e o governo. Ai, o peso das pedras! Enquanto o circo recolhe a sua tenda e a procissão regressa ao adro, há alguma gente – aquela que Arménio Vieira caracterizaria de “gente oca, cabecinha de alfinete” – pronta para do insólito tirar um bocado de partido. Em verdade, esse quase incidente, lamentável, diga-se de passagem, servirá (já agora) como uma chamada de atenção, uma pedrada no charco de todos nós. O que o insólito não provoca! Agora, devagar, devagarinho, à maneira do samba, não seria outra loisa, uns e outros, nos olharmos todos de frente, olhos nos olhos…sem pedra na mão?
Despertar
Acordo indisposto. Alguém pragueja e esconjura a madrugada. Já não suporto tamanha ignomínia. Apetece-me gritar, voar, fugir. Apetece-me desaparecer do mapa. Andar noutra geografia. Ouvir som de flauta, beber água pura, ter paz. Choveu toda a noite. Ainda quis ver algo na televisão, mas a emissão foi-se. Isto é muito precário. Uma boa pancada de chuva e não há emissão televisiva. O jeito é ouvir música. Não na rádio que, a esta hora, se ajeita a programação com zoukada e o barulho afim. Pode? Adiante que a canalha dá cartas…
Mindelact
O 11º Festival Internacional de Teatro do Mindelo estará em cena de 8 a 18 de Setembro e não participar dele, mesmo como mero espectador, é perder. Quando digo perder, estarei a querer dizer o perder a oportunidade de ver as obras em desfile, o ambiente festivo e a organização que nos diz a todos de que a qualidade, mais do que uma porrada de patrocínios, tem a ver com engajamento e inovação. Mais do que teatro em si, o Mindelact é excelência de organização. O resto será este depois da chuva. O céu, em cambiantes ainda de cinzento, anuncia o fim da tarde. Na fímbria desta hora, entre a luzinha da alba e a minha solidão, alguém assobia ao longe uma velha melodia. A crónica da cidade fica para depois. Nunca é tarde, nunca é demais…
quarta-feira, 17 de agosto de 2005
Monumenta
Monumenta
O Memorial à Fome e às Vítimas da Tragédia da Assistência, a ser construído na rotunda de São Januário, orla marítima da cidade da Praia, é um monumento que fazia falta a Cabo Verde. A Fome (com letra bem maiúscula) é algo que deve ser sublimado e exorcizado, não a através do esquecimento, mas pela via da memória. Tal como os judeus fazem com o Holocausto. E os africanos (e sua diáspora) pretendem fazer com a Escravatura. Um obelisco, em tríade multidimensional, dirá sempre aos cabo-verdianos de que a tragédia pode ser a alavanca de um grande futuro. Vimo-lo há dias nas cerimónias do 60º aniversário da bomba atómica (inédita selvajaria humana, diga-se de passagem) sobre Hiroshima. Haveremos de correr a marginal e problematizar a Fome como um recurso para o futuro. Esta também é uma grande contribuição do 30º aniversário da Independência Nacional…
Nós e a cidade
Deixa andar, que a cidade não há de notar a nossa ausência. Tudo corre, como tem mesmo de correr, sem nós. Ou apesar de nós. E, se somos importantes – ainda que a enorme cloaca urbana isso desconheça –, somo-lo no remanso de que uma simples borboleta também o seja. Deixa andar e canta-me nesta caminhada aquela quadra já liberta das palavras. Ser cronista é ser deste tempo testemunha e deste lugar narrador da acta. O que sobra é ledo engano e o sol, por mais que os deuses pequenos esbracejem, nascerá sempre no mesmo lugar. Não te preocupes se A, B ou C, veja nestas linhas um puro cantar de galo. Em democracia, cada um tem direito a seu delírio e, se não está constitucionalizado, chamam ao intelectocrata para que introduza mais este disparate. Quanto à estética, bem isso exige cuidado adicional. A Poesis não surge por acaso. Mas, deixa andar… a cidade não há de notar a nossa ausência.
Do grande Pranchinha
Arguto e desperto, parecendo sempre de vigília, ei-lo o grande Pranchinha que a canalha julga de somenos importância. Mas haverá gente tão essencial quão nossa própria sombra? Aquela assaz interior que, perdidos no labirinto da vida, nos apresenta o fio de Ariadne? Claro está que a personagem estará pintada de fresco. Uma primeira demão para animar a malta, pois sob a resina da comédia inventaram gregos antigos a tragédia. Dizia, é o Pranchinha sempre atento que dá prumo às minhas vertigens e, quando me sente D. Quixote, se arma comigo em Sancho Pança. Por isso, vossas senhorias perdoem-me este à parte, mas falar deste meu alter-ego, como do vosso uso dizer, é condição sine qua non…
Promessa
Jamais deixarei morrer cá dentro o viés que transforma esta amargura em poesia. O grito que me teima, mas que tu guardas no instante dos sentidos, saberá sempre em mim como um sopro de vida. E, se não vou à noite como quem vai à maresia, começarás tu a dissipar a neblina no horizonte dos caminhos por andar. É-nos pouco o tempo, mas naveguemos numa alegria sem demora. Diante do mundo, algo mais do que esta enseada de águas mansas, não quererá a eternidade ser parte do abalo ou do desvario. Simplicidade apenas, de remanso com que as horas são batidas monocórdicas no relógio. E todos os fados são universos de cada transeunte.
Mas poeta és tu
Não te posso dizer que nesta estação somos felizes. Nem que, ao espectáculo do mundo, temos razões para aplaudir. A cada dia, nessa idade de Cristo em que tu andas, fazes melopeia à vileza do quotidiano. Poeta és tu e o resto é treta. A palavra disposta em fila, rima e métrica. Verso saído do quadrado aceite pela praça. Metáforas de acordo com a Constituição. Ingénuo quem pense com o verbo tão-somente sanear a alfurja dessa gente. A mediocridade que se obstina, querendo seja esta uma hora minguada, demanda aqui ingente luta e o poeta, de solilóquio como estás apanhada, nada pode contra a língua vesícula de peçonha, que era como o grande Eugénio Tavares retratava os burocratas. Poeta és tu que não abres mão à beleza de um sol a pôr-se…
O Memorial à Fome e às Vítimas da Tragédia da Assistência, a ser construído na rotunda de São Januário, orla marítima da cidade da Praia, é um monumento que fazia falta a Cabo Verde. A Fome (com letra bem maiúscula) é algo que deve ser sublimado e exorcizado, não a através do esquecimento, mas pela via da memória. Tal como os judeus fazem com o Holocausto. E os africanos (e sua diáspora) pretendem fazer com a Escravatura. Um obelisco, em tríade multidimensional, dirá sempre aos cabo-verdianos de que a tragédia pode ser a alavanca de um grande futuro. Vimo-lo há dias nas cerimónias do 60º aniversário da bomba atómica (inédita selvajaria humana, diga-se de passagem) sobre Hiroshima. Haveremos de correr a marginal e problematizar a Fome como um recurso para o futuro. Esta também é uma grande contribuição do 30º aniversário da Independência Nacional…
Nós e a cidade
Deixa andar, que a cidade não há de notar a nossa ausência. Tudo corre, como tem mesmo de correr, sem nós. Ou apesar de nós. E, se somos importantes – ainda que a enorme cloaca urbana isso desconheça –, somo-lo no remanso de que uma simples borboleta também o seja. Deixa andar e canta-me nesta caminhada aquela quadra já liberta das palavras. Ser cronista é ser deste tempo testemunha e deste lugar narrador da acta. O que sobra é ledo engano e o sol, por mais que os deuses pequenos esbracejem, nascerá sempre no mesmo lugar. Não te preocupes se A, B ou C, veja nestas linhas um puro cantar de galo. Em democracia, cada um tem direito a seu delírio e, se não está constitucionalizado, chamam ao intelectocrata para que introduza mais este disparate. Quanto à estética, bem isso exige cuidado adicional. A Poesis não surge por acaso. Mas, deixa andar… a cidade não há de notar a nossa ausência.
Do grande Pranchinha
Arguto e desperto, parecendo sempre de vigília, ei-lo o grande Pranchinha que a canalha julga de somenos importância. Mas haverá gente tão essencial quão nossa própria sombra? Aquela assaz interior que, perdidos no labirinto da vida, nos apresenta o fio de Ariadne? Claro está que a personagem estará pintada de fresco. Uma primeira demão para animar a malta, pois sob a resina da comédia inventaram gregos antigos a tragédia. Dizia, é o Pranchinha sempre atento que dá prumo às minhas vertigens e, quando me sente D. Quixote, se arma comigo em Sancho Pança. Por isso, vossas senhorias perdoem-me este à parte, mas falar deste meu alter-ego, como do vosso uso dizer, é condição sine qua non…
Promessa
Jamais deixarei morrer cá dentro o viés que transforma esta amargura em poesia. O grito que me teima, mas que tu guardas no instante dos sentidos, saberá sempre em mim como um sopro de vida. E, se não vou à noite como quem vai à maresia, começarás tu a dissipar a neblina no horizonte dos caminhos por andar. É-nos pouco o tempo, mas naveguemos numa alegria sem demora. Diante do mundo, algo mais do que esta enseada de águas mansas, não quererá a eternidade ser parte do abalo ou do desvario. Simplicidade apenas, de remanso com que as horas são batidas monocórdicas no relógio. E todos os fados são universos de cada transeunte.
Mas poeta és tu
Não te posso dizer que nesta estação somos felizes. Nem que, ao espectáculo do mundo, temos razões para aplaudir. A cada dia, nessa idade de Cristo em que tu andas, fazes melopeia à vileza do quotidiano. Poeta és tu e o resto é treta. A palavra disposta em fila, rima e métrica. Verso saído do quadrado aceite pela praça. Metáforas de acordo com a Constituição. Ingénuo quem pense com o verbo tão-somente sanear a alfurja dessa gente. A mediocridade que se obstina, querendo seja esta uma hora minguada, demanda aqui ingente luta e o poeta, de solilóquio como estás apanhada, nada pode contra a língua vesícula de peçonha, que era como o grande Eugénio Tavares retratava os burocratas. Poeta és tu que não abres mão à beleza de um sol a pôr-se…
sexta-feira, 12 de agosto de 2005
Viagem
Em torno da odisseia das ilhas, creio levar
Neste puro desejo que me transcende, a senha
E a palavra-chave de os labirintos serem aqui
Simples lugares de passagem, apenas paisagem…
O andarilho palmilha todas as dunas, areias
De intermináveis desertos e todas as ondas
Que os oceanos concedem, quando furibundas
Ou, mesmo, serenadas e das praias acariciadas…
Sem culpa, nem sina – ou de Job puro devedor –,
Percorro de lés a lés o mapa que é de ti e do mundo
Como quem responde à morte o saldo estival…
Como quem salta para a eterna idade da vida
E fica suspenso entre a estrela e sua cadência
A riscar, de viajar tão-somente, o céu da noite…
Filinto Elísio
Neste puro desejo que me transcende, a senha
E a palavra-chave de os labirintos serem aqui
Simples lugares de passagem, apenas paisagem…
O andarilho palmilha todas as dunas, areias
De intermináveis desertos e todas as ondas
Que os oceanos concedem, quando furibundas
Ou, mesmo, serenadas e das praias acariciadas…
Sem culpa, nem sina – ou de Job puro devedor –,
Percorro de lés a lés o mapa que é de ti e do mundo
Como quem responde à morte o saldo estival…
Como quem salta para a eterna idade da vida
E fica suspenso entre a estrela e sua cadência
A riscar, de viajar tão-somente, o céu da noite…
Filinto Elísio
Côdea de sal
A José Luís Tavares
Corpo áspero de sal que aos meus dedos crispa
Cada cristal e, quase que nuvem feita pedra,
Brilha qual diamante ao sol, e, do seu zénite,
Deixo transcorrer o sonho pela água…
Saberás sempre que, em mim, se resume
À poesia esta motriz do vento e do moinho,
E a matriz que alinha, no mais puro linho,
O fiar das palavras no pano das metáforas…
Hás de me ver passar, em sepulcral silêncio,
Onde os ruídos e as ruínas quedam-se inertes,
Mister do Verbo ou de quão soberbo apanágio…
E deste simples ritual – dedos na côdea de sal –,
Aprenderemos nele o siso e o cisco das pedras,
Corpos das musas, errantes nós das geografias…
Filinto Elísio
Corpo áspero de sal que aos meus dedos crispa
Cada cristal e, quase que nuvem feita pedra,
Brilha qual diamante ao sol, e, do seu zénite,
Deixo transcorrer o sonho pela água…
Saberás sempre que, em mim, se resume
À poesia esta motriz do vento e do moinho,
E a matriz que alinha, no mais puro linho,
O fiar das palavras no pano das metáforas…
Hás de me ver passar, em sepulcral silêncio,
Onde os ruídos e as ruínas quedam-se inertes,
Mister do Verbo ou de quão soberbo apanágio…
E deste simples ritual – dedos na côdea de sal –,
Aprenderemos nele o siso e o cisco das pedras,
Corpos das musas, errantes nós das geografias…
Filinto Elísio
quinta-feira, 11 de agosto de 2005
Correspondências
Podia escrever sobre as ilhas e o cosmos. Mas hoje, dou-vos um cheirinho das minhas correspondências – três enviadas por mim e uma recebida do Luís Araújo. São milhares de cartas, round trip, a cronicar a vida, quase sempre de forma não autorizada e não publicável. Não é segredo do Estado, mas é o estado do segredo, o que dá às coisas mais recato e parcimónia. Uma ressalva apenas: não será por falta de assunto que deito mão às correspondências. Será por excesso dele. E uma estranha saudade do futuro. Ou, tão-só ganas de regressar à “estrada”. Vamos, então, a isso:
A. Flashes de três enviadas:
1. Caríssima Ambi,
(…) Pois é, continuo a escrever crónicas. Sem alguma pretensão de imparcialidade. Antes pelo contrário, não me concedo aqui à hipocrisia. Liberdade total. Não confundir com totalitária, pleaaaaase. Comentário e crítica são bem-vindos. Mas que o pessoal não exagere. Sou neto de António Leão Correia e Silva (o pai e não o filho do meu pai, entendes) e de João Henriques de Almeida Cardoso (pelo lado da mãe), razão bastante para ter nervos, fibra, ganas e raiva. A par deste muito amor aquariano. Para o que der e vier (…)
2. Prezado Crisolino,
(…) Neoliberal eu? Às tantas, hás de indagar se ajoelho e rezo diante dos altares. A riqueza é feita por todos. Cada um à sua maneira. Mas ela é distribuída só para alguns e aí o busílis. Alinho-me com Jorge Luís Borges quando afirma que é uma “irreligiosidade” crer no inferno. Infelizmente, eu acredito em duendes, mas não tenho ganho nada com isso. Pode? O Pranchinha diz que não. Mas para o Pranchinha, a humanidade só existe como pano de fundo longínquo, evanescente e irreal. Arre…(…)
3. Baixinha
Manhã azul, Baixinha. Como um peixinho mágico de riscas verdes, ele dá voltas no teu aquário. Sei que gostas do luar e das praias. Aposto mesmo que saibas cantar ao silêncio das noites caladas. Dizes que sou maluco. Meio real e meio ficção. Podes dizer que ando repetitivo, mas hoje estou com ganas de balbuciar o famoso poema de Vinícius de Moraes:
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
B. Flash da recebida de Luís Araújo
1. Caro amigo Filinto,
(…) Adoro a alegoria do David e Golias de que te serviste para chamar a atenção sobre os perigos que me espreitam. Desde que, ainda criança, a ouvi pela primeira vez a minha simpatia pelos Davids deste mundo foi imediata e, convocado pelo fantástico da proeza de David, tratei logo de arranjar também uma fisga para abater o primeiro Golias que me aparecesse. Já adulto, alguns foram os "meus Golias" que, também, consegui "arrumar", e tu os conheces bem (…)
(…) Realmente feijão com arroz hoje e arroz com feijão amanhã, outra vez, mesmo que servido com outras cores e odores em outra mesa, presidida por outro senhor, como resultado da alternância dos cozinheiros e príncipes da corte, torna-se um exercício semelhante ao do marcar passo da tropa na parada e a sociedade não é propriamente uma tropa subordinada a clubs de generais (…)
(…) Por isso, a mudança tem que ser sempre , essencialmente, o resultado criativo dum processo sistemático de rupturas culturais consecutivas que, com maior ou menor velocidade e grau de alteridade, irreversivelmente transforme a situação institucionalizando uma nova estética geradora duma norma que consiga fazer dos valores que a constituem as fundações dum universo institucional que a sustente e reproduza (…)
A. Flashes de três enviadas:
1. Caríssima Ambi,
(…) Pois é, continuo a escrever crónicas. Sem alguma pretensão de imparcialidade. Antes pelo contrário, não me concedo aqui à hipocrisia. Liberdade total. Não confundir com totalitária, pleaaaaase. Comentário e crítica são bem-vindos. Mas que o pessoal não exagere. Sou neto de António Leão Correia e Silva (o pai e não o filho do meu pai, entendes) e de João Henriques de Almeida Cardoso (pelo lado da mãe), razão bastante para ter nervos, fibra, ganas e raiva. A par deste muito amor aquariano. Para o que der e vier (…)
2. Prezado Crisolino,
(…) Neoliberal eu? Às tantas, hás de indagar se ajoelho e rezo diante dos altares. A riqueza é feita por todos. Cada um à sua maneira. Mas ela é distribuída só para alguns e aí o busílis. Alinho-me com Jorge Luís Borges quando afirma que é uma “irreligiosidade” crer no inferno. Infelizmente, eu acredito em duendes, mas não tenho ganho nada com isso. Pode? O Pranchinha diz que não. Mas para o Pranchinha, a humanidade só existe como pano de fundo longínquo, evanescente e irreal. Arre…(…)
3. Baixinha
Manhã azul, Baixinha. Como um peixinho mágico de riscas verdes, ele dá voltas no teu aquário. Sei que gostas do luar e das praias. Aposto mesmo que saibas cantar ao silêncio das noites caladas. Dizes que sou maluco. Meio real e meio ficção. Podes dizer que ando repetitivo, mas hoje estou com ganas de balbuciar o famoso poema de Vinícius de Moraes:
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
B. Flash da recebida de Luís Araújo
1. Caro amigo Filinto,
(…) Adoro a alegoria do David e Golias de que te serviste para chamar a atenção sobre os perigos que me espreitam. Desde que, ainda criança, a ouvi pela primeira vez a minha simpatia pelos Davids deste mundo foi imediata e, convocado pelo fantástico da proeza de David, tratei logo de arranjar também uma fisga para abater o primeiro Golias que me aparecesse. Já adulto, alguns foram os "meus Golias" que, também, consegui "arrumar", e tu os conheces bem (…)
(…) Realmente feijão com arroz hoje e arroz com feijão amanhã, outra vez, mesmo que servido com outras cores e odores em outra mesa, presidida por outro senhor, como resultado da alternância dos cozinheiros e príncipes da corte, torna-se um exercício semelhante ao do marcar passo da tropa na parada e a sociedade não é propriamente uma tropa subordinada a clubs de generais (…)
(…) Por isso, a mudança tem que ser sempre , essencialmente, o resultado criativo dum processo sistemático de rupturas culturais consecutivas que, com maior ou menor velocidade e grau de alteridade, irreversivelmente transforme a situação institucionalizando uma nova estética geradora duma norma que consiga fazer dos valores que a constituem as fundações dum universo institucional que a sustente e reproduza (…)
quarta-feira, 3 de agosto de 2005
Angelus Novus
1.
Gosto de passear pela orla marítima da cidade da Praia. Ver a baía, o apelo uterino da paisagem, o seu abrigo que antevê o mundo com um certo vagar. Ando pela calçada da marginal, os transeuntes circulam em azáfama de fim do dia e um bando de aves pousa na areia da Praia da Gambôa. Gosto de passear, assim sozinho, pela orla marítima e é quase certo que andamos sempre em espiral.
2.
De repente, percebe-se que a identidade existe não só pela origem comum, mas pelo destino comum. O vivermos colectivamente como destino é o grande leimotiv do desenvolvimento. E esta consciência interpela a todos e, no âmago, a cada um particular, para a saga colectiva. Tudo não passa de um grande périplo rumo ao infinito afinal. Entrementes, o tempo existencial do indivíduo pode ajustar-se ao percurso épico de um povo. Senti isso, na pele, ao participar nas comemorações do 30º Aniversário da Independência Nacional. Parafraseando Padre António Vieira: a festa mais de todos e a festa mais de cada um. Dir-se-ia que o vento trans-histórico bafejou a minha face e me deixou marcas por fora. Já nem direi do que me vai cá dentro. O tempo, que nasce com o homem, não pode ser compreendido de molde apenas objectivo. Deve ser visto crítica e historicamente no modo como ele é vivido pela complexidade do sujeito. Há um quadro de Paul Klee intitulado Angelus Novus. Vale a pena conhecê-lo. Ele representa um anjo a afastar-se de algo que encara fixamente. Os vários elementos desse quadro dão a ideia da Fortuna, mas o Anjo encara-os como uma catástrofe única, à qual é preciso fixar os olhos com consciência de que toda a construção carrega a sua própria ruína. Assim, estes foram dias reais, mas com quê de metafísico. E, como diria Jorge Luís Borges, em El Aleph, o final da história só se pode contar em metáforas pois passa-se no Reino dos Céus, onde o tempo não existe…
3.
Escuto, com causa, o último disco de Tcheka Andrade. Este entendeu que a diversidade cultural é preciso. Cabo Verde só chegará à internacionalização e à globalização se conseguir apresentar, com qualidade e excelência, a sua Cultura. Isso de forma mais diversa possível. A sociedade cabo-verdiana reflecte, em sua própria génese, o pluralismo cultural. Somos uma síntese inter cultural e não apenas um mosaico de culturas. A nossa idiossincrasia está no aceitar a diversidade e transformá-la em matriz da nossa identidade cultural. Esta realidade intrínseca é a verdadeira teia que mantém a rede da nação cabo-verdiana, cerzida na sua geografia insular e da diáspora. Tcheka Andrade entendeu-o como poucos. Já agora, seria importante que a sociedade cabo-verdiana se inteirasse dos debates em curso sobre a diversidade cultural.
Gosto de passear pela orla marítima da cidade da Praia. Ver a baía, o apelo uterino da paisagem, o seu abrigo que antevê o mundo com um certo vagar. Ando pela calçada da marginal, os transeuntes circulam em azáfama de fim do dia e um bando de aves pousa na areia da Praia da Gambôa. Gosto de passear, assim sozinho, pela orla marítima e é quase certo que andamos sempre em espiral.
2.
De repente, percebe-se que a identidade existe não só pela origem comum, mas pelo destino comum. O vivermos colectivamente como destino é o grande leimotiv do desenvolvimento. E esta consciência interpela a todos e, no âmago, a cada um particular, para a saga colectiva. Tudo não passa de um grande périplo rumo ao infinito afinal. Entrementes, o tempo existencial do indivíduo pode ajustar-se ao percurso épico de um povo. Senti isso, na pele, ao participar nas comemorações do 30º Aniversário da Independência Nacional. Parafraseando Padre António Vieira: a festa mais de todos e a festa mais de cada um. Dir-se-ia que o vento trans-histórico bafejou a minha face e me deixou marcas por fora. Já nem direi do que me vai cá dentro. O tempo, que nasce com o homem, não pode ser compreendido de molde apenas objectivo. Deve ser visto crítica e historicamente no modo como ele é vivido pela complexidade do sujeito. Há um quadro de Paul Klee intitulado Angelus Novus. Vale a pena conhecê-lo. Ele representa um anjo a afastar-se de algo que encara fixamente. Os vários elementos desse quadro dão a ideia da Fortuna, mas o Anjo encara-os como uma catástrofe única, à qual é preciso fixar os olhos com consciência de que toda a construção carrega a sua própria ruína. Assim, estes foram dias reais, mas com quê de metafísico. E, como diria Jorge Luís Borges, em El Aleph, o final da história só se pode contar em metáforas pois passa-se no Reino dos Céus, onde o tempo não existe…
3.
Escuto, com causa, o último disco de Tcheka Andrade. Este entendeu que a diversidade cultural é preciso. Cabo Verde só chegará à internacionalização e à globalização se conseguir apresentar, com qualidade e excelência, a sua Cultura. Isso de forma mais diversa possível. A sociedade cabo-verdiana reflecte, em sua própria génese, o pluralismo cultural. Somos uma síntese inter cultural e não apenas um mosaico de culturas. A nossa idiossincrasia está no aceitar a diversidade e transformá-la em matriz da nossa identidade cultural. Esta realidade intrínseca é a verdadeira teia que mantém a rede da nação cabo-verdiana, cerzida na sua geografia insular e da diáspora. Tcheka Andrade entendeu-o como poucos. Já agora, seria importante que a sociedade cabo-verdiana se inteirasse dos debates em curso sobre a diversidade cultural.
quinta-feira, 28 de julho de 2005
O estado da nação
Depois de tanta insistência do Pranchinha, eis que faço um texto político. Ou, melhor dito, um texto sobre a política. Ou, com mais aggiornamento, um texto sobre o Estado da Nação. O Pranchinha mete-me em cada alheada! Todavia, pensando bem, cada um de nós tem a sua percepção sobre o Estado da Nação e dizê-lo, nestas linhas, no café ou no raio que o parta, é a sagrada prerrogativa que nos assiste. Afinal, hoje já somos o Estado da Nação e não, como aliás fomos, a Nação do Estado…
E, fazendo vontade ao Pranchinha (o amor tem destas coisas), direi que esta Nação, cada vez percebida de forma mais lacta e complexa (insularizada, diasporizada, globalizada, enfim), ganhou dimensão irreversível e que ela não se compadece hoje com a pequena política. Não que se dispense o bate-boca das esquinas, pois isso é terapêutico, mas os tempos exigem de nós mais responsabilidade de análise. Mesmo quando aplaudimos. Ou vaiamos…
Não sou dado à premonição nem à adivinhação, mas, nas minhas crónicas eu sempre demonstrei confiança na governação de José Maria Neves. Quem me leu, deve lembrar-se da minha coluna “Prato do Dia”, na qual escrevera sobre a necessidade de dar o voto de confiança a este Governo. Não por seguidismo político, afã partidário, descrença nos demais, essas coisas que não me roçam a alma, mas por conhecer a dimensão humana do homem. Desde os bancos da escola. Neves dedicou os três primeiros anos da sua governação ao controlo do défice do Estado, pois entendeu que a economia teria de esperar pelo restauro das finanças. Isso correndo sérios riscos de popularidade. Admirei-o por isso também. Anos depois, o MCA confirma essa confiança, o Banco Mundial diz mais que eu algum dia diria e o confrade Manuel Delgado, homem de coragem, laureia-o com um acto de contrição.
Mas nem tudo são rosas. Apesar dos ganhos, Cabo Verde é ainda um país de produto nacional bruto inferior a mil e quinhentos dólares por habitante e com quase 500 mil habitantes, onde 173 mil são pobres, para não falar dos 93 mil que são muito pobres. Não estaremos a pedir, em vez de uma lógica de combate à pobreza, a da promoção e a do alargamento da riqueza tendente à redução da insatisfação social? Que medidas de políticas são agora necessárias para energizar uma população cuja taxa de desemprego se situa em 17% entre a juventude? O que se poderá fazer para perspectivar o bem-estar social e da qualidade de vida nos rincões encravados de Santiago, Santo Antão e Fogo? Ou para dar centralidade às ilhas periféricas como a Brava, São Nicolau ou Maio? Como descortinar condições humanas decentes para as nossas bolsas comunitárias em São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique, ou mesmo nos ghettos das cidades do Norte, como Lisboa, Bóston e Paris?
Quer me parecer que uma nova mentalidade de trabalho, de produção, de investimento e de inserção nos seria mister a esta hora. A tal atitude transformacional, já ventilada um pouco pela imprensa, mas ainda não de todo interiorizada pelos cidadãos. Cruzar as vantagens todas – das comparativas às competitivas – e recriar o ideário da riqueza. A ter que escolher uma atitude, entre as muitas necessárias, importaria saber optar pelo “fogo” da riqueza, afinal o que garantirá a glória, segundo o sábio vaticínio de Deng Xiaoping.
Fogo? Indagará o Pranchinha pronto para duvidar dos meus rasgos estilísticos. Conheces aquela do fogo e do poeta francês Jean Cocteau? A sua casa era um verdadeiro museu de relíquias: estatuetas africanas, quadros de artistas famosos, livros raros. E Cocteau guardava tudo, e tinha um profundo amor por cada peça dessa esplendorosa casa. Numa entrevista, a jornalista lhe perguntou: "Se esta casa se incendiasse e o senhor só pudesse levar uma coisa consigo, o que escolheria?". Cocteau respondeu, com sentido de riqueza: "Eu levaria o fogo".
E o Pranchinha bem sabe que, dito isto, regresso aos meus textos sobre os insólitos. A minha praia não é escrever sobre a política, quando há a luz e a sombra, a vida e a morte, enfim. De resto, o Poder tem o seu lado perverso. É uma questão estrutural, note-se. Quem se esqueceu de Calígula, aquele que nomeou o seu cavalo a senador do Império Romano? Pode? O meu herói mesmo era Prometeu que se revoltou contra os deuses e lhes roubou o fogo para ofertá-lo aos homens.
Não sou dado à premonição nem à adivinhação, mas, nesta hora do Estado da Nação, me apraz antever que JMN mantém o ideário do fogo que se destina aos homens. Adiante…
E, fazendo vontade ao Pranchinha (o amor tem destas coisas), direi que esta Nação, cada vez percebida de forma mais lacta e complexa (insularizada, diasporizada, globalizada, enfim), ganhou dimensão irreversível e que ela não se compadece hoje com a pequena política. Não que se dispense o bate-boca das esquinas, pois isso é terapêutico, mas os tempos exigem de nós mais responsabilidade de análise. Mesmo quando aplaudimos. Ou vaiamos…
Não sou dado à premonição nem à adivinhação, mas, nas minhas crónicas eu sempre demonstrei confiança na governação de José Maria Neves. Quem me leu, deve lembrar-se da minha coluna “Prato do Dia”, na qual escrevera sobre a necessidade de dar o voto de confiança a este Governo. Não por seguidismo político, afã partidário, descrença nos demais, essas coisas que não me roçam a alma, mas por conhecer a dimensão humana do homem. Desde os bancos da escola. Neves dedicou os três primeiros anos da sua governação ao controlo do défice do Estado, pois entendeu que a economia teria de esperar pelo restauro das finanças. Isso correndo sérios riscos de popularidade. Admirei-o por isso também. Anos depois, o MCA confirma essa confiança, o Banco Mundial diz mais que eu algum dia diria e o confrade Manuel Delgado, homem de coragem, laureia-o com um acto de contrição.
Mas nem tudo são rosas. Apesar dos ganhos, Cabo Verde é ainda um país de produto nacional bruto inferior a mil e quinhentos dólares por habitante e com quase 500 mil habitantes, onde 173 mil são pobres, para não falar dos 93 mil que são muito pobres. Não estaremos a pedir, em vez de uma lógica de combate à pobreza, a da promoção e a do alargamento da riqueza tendente à redução da insatisfação social? Que medidas de políticas são agora necessárias para energizar uma população cuja taxa de desemprego se situa em 17% entre a juventude? O que se poderá fazer para perspectivar o bem-estar social e da qualidade de vida nos rincões encravados de Santiago, Santo Antão e Fogo? Ou para dar centralidade às ilhas periféricas como a Brava, São Nicolau ou Maio? Como descortinar condições humanas decentes para as nossas bolsas comunitárias em São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique, ou mesmo nos ghettos das cidades do Norte, como Lisboa, Bóston e Paris?
Quer me parecer que uma nova mentalidade de trabalho, de produção, de investimento e de inserção nos seria mister a esta hora. A tal atitude transformacional, já ventilada um pouco pela imprensa, mas ainda não de todo interiorizada pelos cidadãos. Cruzar as vantagens todas – das comparativas às competitivas – e recriar o ideário da riqueza. A ter que escolher uma atitude, entre as muitas necessárias, importaria saber optar pelo “fogo” da riqueza, afinal o que garantirá a glória, segundo o sábio vaticínio de Deng Xiaoping.
Fogo? Indagará o Pranchinha pronto para duvidar dos meus rasgos estilísticos. Conheces aquela do fogo e do poeta francês Jean Cocteau? A sua casa era um verdadeiro museu de relíquias: estatuetas africanas, quadros de artistas famosos, livros raros. E Cocteau guardava tudo, e tinha um profundo amor por cada peça dessa esplendorosa casa. Numa entrevista, a jornalista lhe perguntou: "Se esta casa se incendiasse e o senhor só pudesse levar uma coisa consigo, o que escolheria?". Cocteau respondeu, com sentido de riqueza: "Eu levaria o fogo".
E o Pranchinha bem sabe que, dito isto, regresso aos meus textos sobre os insólitos. A minha praia não é escrever sobre a política, quando há a luz e a sombra, a vida e a morte, enfim. De resto, o Poder tem o seu lado perverso. É uma questão estrutural, note-se. Quem se esqueceu de Calígula, aquele que nomeou o seu cavalo a senador do Império Romano? Pode? O meu herói mesmo era Prometeu que se revoltou contra os deuses e lhes roubou o fogo para ofertá-lo aos homens.
Não sou dado à premonição nem à adivinhação, mas, nesta hora do Estado da Nação, me apraz antever que JMN mantém o ideário do fogo que se destina aos homens. Adiante…
Catedra
por Filinto Elísio
Algo, quem sabe uma melodia, teria um dia
Fazer da vida uma grande catedral, vitral
Ou algo como uma nogueira, coisa da infância
Tipo de música que dá lágrima e alegria...
Uma grande catedral seria o teu sorriso,
Flor surgida no esquecimento dos pedregais,
Onda levantada e depois estendida na praia
E estarão os teus pézinhos à beira de água...
Seria também fina neblina que nos enovela
Desaparece para os umbrais a portentosa águia
E deixa-nos assim entre a pedra e o mundo...
Algo mais zen do que o próprio silencio, faria
Deste momento mais sublime que a morte
Quem sabe um fumo breve, eterna...de catedral!
Algo, quem sabe uma melodia, teria um dia
Fazer da vida uma grande catedral, vitral
Ou algo como uma nogueira, coisa da infância
Tipo de música que dá lágrima e alegria...
Uma grande catedral seria o teu sorriso,
Flor surgida no esquecimento dos pedregais,
Onda levantada e depois estendida na praia
E estarão os teus pézinhos à beira de água...
Seria também fina neblina que nos enovela
Desaparece para os umbrais a portentosa águia
E deixa-nos assim entre a pedra e o mundo...
Algo mais zen do que o próprio silencio, faria
Deste momento mais sublime que a morte
Quem sabe um fumo breve, eterna...de catedral!
Em olhares de torpor
Em olhares de torpor, onde deambulei perdido,
Quis como quem, de talhante, a carne corta, romper
Os nervos e os músculos, e a revestir os ossos todos
O peso dos verdes musgos pela greta das pedras...
Quis, quase de sina e de seno, o alarde de te viajar
E ter levado a tristeza que me sombreia a tarde
Ou, então, fugir dos cárceres impostas em nós
Como deuses incessantes a cercear-nos a crença...
E o que arde ainda e não se evade do coração,
Assaz quente lacre derretido, tão vazante
Quão segredo no curso obrigatório de um rio
És como eu viagem que jamais se estanca
No estuário do imenso oceano, és como eu
Talhante desta carne enquanto não putrefaça...
Quis como quem, de talhante, a carne corta, romper
Os nervos e os músculos, e a revestir os ossos todos
O peso dos verdes musgos pela greta das pedras...
Quis, quase de sina e de seno, o alarde de te viajar
E ter levado a tristeza que me sombreia a tarde
Ou, então, fugir dos cárceres impostas em nós
Como deuses incessantes a cercear-nos a crença...
E o que arde ainda e não se evade do coração,
Assaz quente lacre derretido, tão vazante
Quão segredo no curso obrigatório de um rio
És como eu viagem que jamais se estanca
No estuário do imenso oceano, és como eu
Talhante desta carne enquanto não putrefaça...
quarta-feira, 20 de julho de 2005
Desejo e sina lapidando o sonho
Ao amigo Zezito de Araújo
Na minha imaginação, apenas uma rede parada, à espera que alguém a balance. Uma rede, aparentemente absurda, como Rosebud, o trenó do Cidadão Kane. Uma rede, envolta de mistério e de silencio ulterior a tudo que a consciência explica. Quem balançaria essa rede? Seria a Nega Fulô, seria?
Do Estado de Alagoas, no Brasil, eu guardava mais pressentimento do que conhecimento. Um pressentimento bom, em combustão interior. Sentimento quase de paixão. O que lateja, mas não descortina. Sabia de Djavan, das suas músicas e poemas. Mostrou-mo um amigo, do tempo do liceu. Sabia-o alagoano, apanhando em toda a rama o meu pressentimento. Tenho acompanhado a frondosa floração da sua carreira artística, com alguma frustração de não o poder trazer para um espectáculo em Cabo Verde. Ver Djavan, na Cidade Velha, partida de muitos escravos para o Brasil, alguns dos quais para Alagoas, seria desejo e sina lapidando o sonho. A mesma comoção de participar, no Fesquintal de Jazz, e de assistir ao concêntrico encontro de Rhoda Scott com a Cidade Velha. E repito o dito em 2003: cruzar gente nossa e gente outra no palco das ilhas realiza a vocação real deste país, que é a de ser o palco do Cosmos. O Fesquintal de Jazz foi, nesse sentido e modéstia à parte, a segunda maior operação triunfo da história de Cabo Verde. A primeira está sendo o 30º Aniversário da Independência Nacional.
Mas, dizia, eu não conhecia o Estado de Alagoas da perspectiva tão afilada e aprofundada quanto desejaria. E reconheço esta falha, se não mesmo esta falência, agora que o governador Ronaldo Lessa e os seus secretários de governo visitam Cabo Verde, num reencontro esperado há séculos. Do Quilombo dos Palmares, a primeira república negra do mundo, eu não sabia quase nada. De Zumbi dos Palmares, uma ou outra leitura bissexta, desaconselhando qualquer discussão sobre a problemática.
Mais pressentimento do que conhecimento, fui me apercebendo que Alagoas tem muito a ver connosco, com a nossa identidade matricial e relacional. É o próprio governador alagoano que o reconhece quando afirma “É o resgate da nossa história e precisamos resgatá-la para dar sentido ao nosso projecto de vida”. É a gente de Jorge de Lima, poeta cujos versos meu pai recitava assim à mesa:
Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Este mesmo que vem infatigavelmente,
Parodiar o sol e associar à lua
Quando a sombra da noite enegrece o poente!
E que o actor Chico Assis recria, sem neurastenia, mas com recitado balanço, a poética do grande mestre. Apetece até retribuir com Jorge Barbosa, nosso poeta:
Nem sinal de planta
Nem restos de árvore
No cenário ressequido
Da planície…
O casebre apenas
De pedra solta
E uma lembrança aflitiva.
Neste momento em que os alagoanos chegam a Cabo Verde, será mais do que ocasião para nos revelarmos. Para que possamos fazer coisas em comum, numa cooperação muito digna, entre escravos hoje libertos. Será tempo, já que o espaço nos concede a oportunidade, para fazer cultura, negócios, amizade, amor, essas coisas todas, havendo o céu por limite. Assim, quem sabe o conhecimento se torne primado onde era pressentimento em mim. E já com menos mistério e silêncio ulterior, saio da imaginação para fazer da rede uma realidade. O resto a balançá-la (só poderia) a Nega Fulô…
Na minha imaginação, apenas uma rede parada, à espera que alguém a balance. Uma rede, aparentemente absurda, como Rosebud, o trenó do Cidadão Kane. Uma rede, envolta de mistério e de silencio ulterior a tudo que a consciência explica. Quem balançaria essa rede? Seria a Nega Fulô, seria?
Do Estado de Alagoas, no Brasil, eu guardava mais pressentimento do que conhecimento. Um pressentimento bom, em combustão interior. Sentimento quase de paixão. O que lateja, mas não descortina. Sabia de Djavan, das suas músicas e poemas. Mostrou-mo um amigo, do tempo do liceu. Sabia-o alagoano, apanhando em toda a rama o meu pressentimento. Tenho acompanhado a frondosa floração da sua carreira artística, com alguma frustração de não o poder trazer para um espectáculo em Cabo Verde. Ver Djavan, na Cidade Velha, partida de muitos escravos para o Brasil, alguns dos quais para Alagoas, seria desejo e sina lapidando o sonho. A mesma comoção de participar, no Fesquintal de Jazz, e de assistir ao concêntrico encontro de Rhoda Scott com a Cidade Velha. E repito o dito em 2003: cruzar gente nossa e gente outra no palco das ilhas realiza a vocação real deste país, que é a de ser o palco do Cosmos. O Fesquintal de Jazz foi, nesse sentido e modéstia à parte, a segunda maior operação triunfo da história de Cabo Verde. A primeira está sendo o 30º Aniversário da Independência Nacional.
Mas, dizia, eu não conhecia o Estado de Alagoas da perspectiva tão afilada e aprofundada quanto desejaria. E reconheço esta falha, se não mesmo esta falência, agora que o governador Ronaldo Lessa e os seus secretários de governo visitam Cabo Verde, num reencontro esperado há séculos. Do Quilombo dos Palmares, a primeira república negra do mundo, eu não sabia quase nada. De Zumbi dos Palmares, uma ou outra leitura bissexta, desaconselhando qualquer discussão sobre a problemática.
Mais pressentimento do que conhecimento, fui me apercebendo que Alagoas tem muito a ver connosco, com a nossa identidade matricial e relacional. É o próprio governador alagoano que o reconhece quando afirma “É o resgate da nossa história e precisamos resgatá-la para dar sentido ao nosso projecto de vida”. É a gente de Jorge de Lima, poeta cujos versos meu pai recitava assim à mesa:
Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Este mesmo que vem infatigavelmente,
Parodiar o sol e associar à lua
Quando a sombra da noite enegrece o poente!
E que o actor Chico Assis recria, sem neurastenia, mas com recitado balanço, a poética do grande mestre. Apetece até retribuir com Jorge Barbosa, nosso poeta:
Nem sinal de planta
Nem restos de árvore
No cenário ressequido
Da planície…
O casebre apenas
De pedra solta
E uma lembrança aflitiva.
Neste momento em que os alagoanos chegam a Cabo Verde, será mais do que ocasião para nos revelarmos. Para que possamos fazer coisas em comum, numa cooperação muito digna, entre escravos hoje libertos. Será tempo, já que o espaço nos concede a oportunidade, para fazer cultura, negócios, amizade, amor, essas coisas todas, havendo o céu por limite. Assim, quem sabe o conhecimento se torne primado onde era pressentimento em mim. E já com menos mistério e silêncio ulterior, saio da imaginação para fazer da rede uma realidade. O resto a balançá-la (só poderia) a Nega Fulô…
segunda-feira, 18 de julho de 2005
DAS FRUTAS EM 5 TEMPOS
1.
Direi destes dias os momentos de prumo,
As nuvens que passam e deixam aqui travo,
Os olhares, uns de soslaio, outros de frémito,
Que serenam bem ao viés suas dilectas frutas.
Das metáforas direi o crepitar dos fogos,
Ora de águas, ora de ventos, quando não dos ares,
Pequenos nadas, somatizando febres, reversos,
Destroçadas vidas, fonemas, chispas e poemas.
E de os dizer hás de escutar tu, minha fome,
Aroma das ervas, temperos esquecidos, sais
Na boca de comer tudo, ó meu tanto pecado.
Sangue das trevas tu, ácidos e salivas, halos de ti,
Onde a borbulha das espumas sabe a frutas,
Furtivos beijos, e por dar-te o trevo destes dias...
2.
Todos os poemas são de amor na estação das frutas
Se, da minha gula, de apenas um gole te sorvesse
São tácteis desejos de chuva, outrora vidraças de ver
Tua espraiada partida, mesmo quando versos de solidão.
Todos os poemas são de outra música assim cantada
Em pertinazes versos, palavras quase ondas, viagens,
Chinas por aí, longe de nós a fímbria dos invernos
E estarei bem à porta – direi sempre - de chegada tua.
Os poemas são desenhos largados nas longas estradas
Errantes dos desertos, horas, dias, anos a fio, palavras
Pelas dunas – também direi sempre – do teu corpo.
Navegantes dos oásis, soletradas florestas de sermos,
Na noite e no dia, o esvoaçar das areias em rara clepsidra
De ti, porque doutra glosa não, serei neste silencio cativo...
3.
As frutas, uma a uma, darão suas entranhas à boca,
O roçar leve de língua ao gosto de todas as coisas,
As frutas saberão trazer do antanho nossas memórias
Em paraísos de proibir nas árvores todo o proibido.
Uma a uma, não nos poderemos delas jamais apartar,
Silabas poderosas no ulterior dos verbos acamados
Nos leitos de horizontes surgidos do útero da baía
E nas janelas abertas para o império dos sentidos.
De quantas frutas somos benditos no ventre das vontades,
Quantas lágrimas, suores e sémens, vagidos de nada,
A esventrar a espessura de tudo ser mais prima matéria.
Ajoelhados ante o silêncio, soletraremos ao infinito
O que desta idade temos ainda de eterna saudade
E entoaremos, de sussurros tão-somente, o hino às frutas.
4.
Tempos houve em que foste meu riso e meu siso,
Meu travesso sonho, de coisa alada, foste meu tudo,
Transeunte em cidade grande, eras meu néon,
À beira mar, a neblina para lá da tarde eras tu.
Também tu eras a réstia do crepúsculo e quase noite
Estrelavas a primeira estrela d´alva pela manhã
Pássaro que voa grande e redondo em torno do mundo
Cântico guardado no baú das lembranças circulares.
Eras sim tu na minha mão de apertar ninguém,
Outro alento quando arfavas à moribunda leoa
Animal caído em descanso, de qualquer remanso.
Eras e não eras nesses tempos tu, minha deusa,
No espelho transfigurado de algum reflexo,
Diletante água, meu sorriso, de coisa alada...
5.
O travo das nuvens que passam, o frenesim
Que somos à batuta dos momentos, na retina
Dá-me conta de bocados de nós, retirantes da vida,
Somente louvados daqueles que se amam.
Entrelinhas salpicadas de folhas, silvestres
Quadras impregnadas de calor e halo, incenso
Incendiado nos seios e nas coxas das flores,
Exalados aromas de quando esfíngica és tu.
Não só de palavras, das belas letras vivemos
Nós os de boca esventrada aos teoremas
Que refazem escalas das fórmulas soltas.
Mas de gestos e actos, de cujas pirâmides somos
Quais vértices onde nelas faz o sol zénite
E não terei outra eternidade senão teu olhar…
FILINTO ELÍSIO
Direi destes dias os momentos de prumo,
As nuvens que passam e deixam aqui travo,
Os olhares, uns de soslaio, outros de frémito,
Que serenam bem ao viés suas dilectas frutas.
Das metáforas direi o crepitar dos fogos,
Ora de águas, ora de ventos, quando não dos ares,
Pequenos nadas, somatizando febres, reversos,
Destroçadas vidas, fonemas, chispas e poemas.
E de os dizer hás de escutar tu, minha fome,
Aroma das ervas, temperos esquecidos, sais
Na boca de comer tudo, ó meu tanto pecado.
Sangue das trevas tu, ácidos e salivas, halos de ti,
Onde a borbulha das espumas sabe a frutas,
Furtivos beijos, e por dar-te o trevo destes dias...
2.
Todos os poemas são de amor na estação das frutas
Se, da minha gula, de apenas um gole te sorvesse
São tácteis desejos de chuva, outrora vidraças de ver
Tua espraiada partida, mesmo quando versos de solidão.
Todos os poemas são de outra música assim cantada
Em pertinazes versos, palavras quase ondas, viagens,
Chinas por aí, longe de nós a fímbria dos invernos
E estarei bem à porta – direi sempre - de chegada tua.
Os poemas são desenhos largados nas longas estradas
Errantes dos desertos, horas, dias, anos a fio, palavras
Pelas dunas – também direi sempre – do teu corpo.
Navegantes dos oásis, soletradas florestas de sermos,
Na noite e no dia, o esvoaçar das areias em rara clepsidra
De ti, porque doutra glosa não, serei neste silencio cativo...
3.
As frutas, uma a uma, darão suas entranhas à boca,
O roçar leve de língua ao gosto de todas as coisas,
As frutas saberão trazer do antanho nossas memórias
Em paraísos de proibir nas árvores todo o proibido.
Uma a uma, não nos poderemos delas jamais apartar,
Silabas poderosas no ulterior dos verbos acamados
Nos leitos de horizontes surgidos do útero da baía
E nas janelas abertas para o império dos sentidos.
De quantas frutas somos benditos no ventre das vontades,
Quantas lágrimas, suores e sémens, vagidos de nada,
A esventrar a espessura de tudo ser mais prima matéria.
Ajoelhados ante o silêncio, soletraremos ao infinito
O que desta idade temos ainda de eterna saudade
E entoaremos, de sussurros tão-somente, o hino às frutas.
4.
Tempos houve em que foste meu riso e meu siso,
Meu travesso sonho, de coisa alada, foste meu tudo,
Transeunte em cidade grande, eras meu néon,
À beira mar, a neblina para lá da tarde eras tu.
Também tu eras a réstia do crepúsculo e quase noite
Estrelavas a primeira estrela d´alva pela manhã
Pássaro que voa grande e redondo em torno do mundo
Cântico guardado no baú das lembranças circulares.
Eras sim tu na minha mão de apertar ninguém,
Outro alento quando arfavas à moribunda leoa
Animal caído em descanso, de qualquer remanso.
Eras e não eras nesses tempos tu, minha deusa,
No espelho transfigurado de algum reflexo,
Diletante água, meu sorriso, de coisa alada...
5.
O travo das nuvens que passam, o frenesim
Que somos à batuta dos momentos, na retina
Dá-me conta de bocados de nós, retirantes da vida,
Somente louvados daqueles que se amam.
Entrelinhas salpicadas de folhas, silvestres
Quadras impregnadas de calor e halo, incenso
Incendiado nos seios e nas coxas das flores,
Exalados aromas de quando esfíngica és tu.
Não só de palavras, das belas letras vivemos
Nós os de boca esventrada aos teoremas
Que refazem escalas das fórmulas soltas.
Mas de gestos e actos, de cujas pirâmides somos
Quais vértices onde nelas faz o sol zénite
E não terei outra eternidade senão teu olhar…
FILINTO ELÍSIO
quarta-feira, 15 de junho de 2005
Coisas e Causas
Aeroporto da Praia
Pediram-me, de joelhos, que (não) escrevesse sobre o Aeroporto da Praia. Para uns, Novo Aeroporto da Praia (NAP, de feia sigla). Para outros, Aeroporto Internacional da Praia (AIP, sem comentários). É que depois de muito (não) dito, estava assente que o Aeroporto da Praia seria inaugurado a 4 de Julho de 2005, data emblemática para se inaugurar qualquer coisa, mormente algo assaz importante (não apenas para a Praia, mas para o país todo). Só que de repente, não mais do que de repente, estará alguém a dizer que talvez não. Faltam alguns requisitos técnicos, entendem? Procedimentos a ultimar, sabem como são essas coisas. Documentos em língua inglesa, por exemplo. O parque automóvel, imaginem só. Os tais constrangimentos, pelo que se pede a santa (santíssima, diga-se de passagem) paciência dos cabo-verdianos, em geral, e dos praienses, em particular. À pergunta, o que tem a ver a inauguração (acto simbólico) com a abertura ao tráfego (acto de gestão), ninguém responde. Em verdade, sem querer pressionar além do normal e do razoável, começa a passar do tempo para se inaugurar o Aeroporto da Praia. Para uns, Novo Aeroporto da Praia (NAP, de feia sigla). Para outros, Aeroporto Internacional da Praia (AIP, sem comentários). Por uma questão de causa. Quando não...de consequência!
Porto da Praia
Leio, com regozijo, que se prevê um grande desenvolvimento do Porto da Praia, de longe o mais movimentado e rentável do país. No quadro do Millenniun Challenge Account (MCA), fundo americano para alavancar o desenvolvimento dos países considerados da boa governança, dos Direitos Humanos e da economia aberta. O facto de Cabo Verde ter ganho o MCA prova, no mínimo, mérito e credibilidade. Cabo Verde vai dispor, nos próximos três anos, de 117,8 milhões de dólares. Mas dizia (com orgulho, verdade seja dita) que, em boa hora, se resolveu investir pesado no Porto da Praia. Fazer dele um dos portos mais apetrechados, seguros e competitivos da África Ocidental é uma decisão estratégica, a merecer o aplauso de todos. Bem, de todos nem por isso, já que o ratio do descontentamento é higiénico em democracia. Temos de ter, e de potenciar, uma opinião pública crítica capaz de analisar os grandes investimentos à luz dos custos/benefícios e das oportunidades multiplicadoras do desenvolvimento. É que a lucidez crítica, além de também higiénica, acabará por ser um grande factor do desenvolvimento...
Turismo e Cultura
Um grande fórum sobre o Turismo tem lugar no Mindelo, nos dias 17 e 18 de Junho. O II Encontro Internacional de Turismo, se não me engano, a envolver a Associação Nacional dos Municípios de Cabo Verde (ANMCV) e a União Nacional dos Operadores Turísticos (UNOTUR). Os painéis cobrem temas interessantes, diria mesmo fundamentais, como formação, transportes, marketing e financiamento. Só que nesta hora de se questionar - Que futuro para o turismo de Cabo Verde? -, importaria trazer para a ordem do dia a questão da Cultura. O Ambiente e a Cultura são hoje elementos essenciais em quaisquer debates de fundo sobre o Turismo. Temas como a bio-diversidade, a diversidade cultural, o eco-turismo e o turismo cultural, deviam ser transversais e permanentes nos fora de tamanha magnitude. Entretanto, saindo um tanto do cenário, numa praia da ilha do Sal um oeste-africano vende a um europeu um jacarézinho como Souvenir du Cap-Vert e, noutra aldeia, em Boa Vista um brasileiro apresenta uma rede índia como Made in Cape Verde. Pode? Isso, para não falar da Cidade Velha, da Cidade de São Filipe, do Ex Campo de Concentração do Tarrafal, das Salinas do Sal, do Maio e da Boa Vista, do Mindelo do Tempo d´Canequinha, enfim...valores fundamentais e de sustentabilidade.
Pediram-me, de joelhos, que (não) escrevesse sobre o Aeroporto da Praia. Para uns, Novo Aeroporto da Praia (NAP, de feia sigla). Para outros, Aeroporto Internacional da Praia (AIP, sem comentários). É que depois de muito (não) dito, estava assente que o Aeroporto da Praia seria inaugurado a 4 de Julho de 2005, data emblemática para se inaugurar qualquer coisa, mormente algo assaz importante (não apenas para a Praia, mas para o país todo). Só que de repente, não mais do que de repente, estará alguém a dizer que talvez não. Faltam alguns requisitos técnicos, entendem? Procedimentos a ultimar, sabem como são essas coisas. Documentos em língua inglesa, por exemplo. O parque automóvel, imaginem só. Os tais constrangimentos, pelo que se pede a santa (santíssima, diga-se de passagem) paciência dos cabo-verdianos, em geral, e dos praienses, em particular. À pergunta, o que tem a ver a inauguração (acto simbólico) com a abertura ao tráfego (acto de gestão), ninguém responde. Em verdade, sem querer pressionar além do normal e do razoável, começa a passar do tempo para se inaugurar o Aeroporto da Praia. Para uns, Novo Aeroporto da Praia (NAP, de feia sigla). Para outros, Aeroporto Internacional da Praia (AIP, sem comentários). Por uma questão de causa. Quando não...de consequência!
Porto da Praia
Leio, com regozijo, que se prevê um grande desenvolvimento do Porto da Praia, de longe o mais movimentado e rentável do país. No quadro do Millenniun Challenge Account (MCA), fundo americano para alavancar o desenvolvimento dos países considerados da boa governança, dos Direitos Humanos e da economia aberta. O facto de Cabo Verde ter ganho o MCA prova, no mínimo, mérito e credibilidade. Cabo Verde vai dispor, nos próximos três anos, de 117,8 milhões de dólares. Mas dizia (com orgulho, verdade seja dita) que, em boa hora, se resolveu investir pesado no Porto da Praia. Fazer dele um dos portos mais apetrechados, seguros e competitivos da África Ocidental é uma decisão estratégica, a merecer o aplauso de todos. Bem, de todos nem por isso, já que o ratio do descontentamento é higiénico em democracia. Temos de ter, e de potenciar, uma opinião pública crítica capaz de analisar os grandes investimentos à luz dos custos/benefícios e das oportunidades multiplicadoras do desenvolvimento. É que a lucidez crítica, além de também higiénica, acabará por ser um grande factor do desenvolvimento...
Turismo e Cultura
Um grande fórum sobre o Turismo tem lugar no Mindelo, nos dias 17 e 18 de Junho. O II Encontro Internacional de Turismo, se não me engano, a envolver a Associação Nacional dos Municípios de Cabo Verde (ANMCV) e a União Nacional dos Operadores Turísticos (UNOTUR). Os painéis cobrem temas interessantes, diria mesmo fundamentais, como formação, transportes, marketing e financiamento. Só que nesta hora de se questionar - Que futuro para o turismo de Cabo Verde? -, importaria trazer para a ordem do dia a questão da Cultura. O Ambiente e a Cultura são hoje elementos essenciais em quaisquer debates de fundo sobre o Turismo. Temas como a bio-diversidade, a diversidade cultural, o eco-turismo e o turismo cultural, deviam ser transversais e permanentes nos fora de tamanha magnitude. Entretanto, saindo um tanto do cenário, numa praia da ilha do Sal um oeste-africano vende a um europeu um jacarézinho como Souvenir du Cap-Vert e, noutra aldeia, em Boa Vista um brasileiro apresenta uma rede índia como Made in Cape Verde. Pode? Isso, para não falar da Cidade Velha, da Cidade de São Filipe, do Ex Campo de Concentração do Tarrafal, das Salinas do Sal, do Maio e da Boa Vista, do Mindelo do Tempo d´Canequinha, enfim...valores fundamentais e de sustentabilidade.
quarta-feira, 8 de junho de 2005
As cidades e os versos
Gás lacrimogéneo
Nessa altura, a cidade cheirava a laranja azeda. Talvez não seja curial, nem romântico, falar desse cheiro nauseabundo que, pressentido assim à distância, sempre dá alguma saudade. De qualquer forma, eram tempos mais heróicos de que hoje e os amigos - tão diferentes outrora!, carregavam em simples gestos a dimensão da aurora. Mas não pretendo aqui falar do perfume daqueles dias sobressaltados, às vezes, de prisões na calada da noite, outras vezes, de amigos evadidos. Nessa infância (sim, porque tive aquela entre tantas outras), eu gostava muito dos versos de Ovídio Martins que os meus pais, insidiosos no educar com a necessária subversão, declamavam à mesa:
Mordaças a um poeta? Impossível!
Seria esta uma excelente ocasião para homenagear o grande poeta da resistência cabo-verdiana. É que a história não se compadece com o esquecimento. E a memória é, no mínimo, um acto de justiça. Acto de justiça. Nessa altura, nós estávamos sob bloqueios e só os homens maiúsculos ousavam ser poetas. Tempos depois, soube que a laranja azeda, pressentida numa manifestação em Belo Horizonte, era o cheiro de gás lacrimogéneo. E, ainda que soe paradoxal, sempre deu alguma saudade...
Fenway Blues
Soubeste dos tempos de Fenway Blues, do imenso parque vis-a-vis Queenbury Street. Os amigos ensaiavam na sala e queriam ser, à força e a eito, um quarteto a tocar no Wally´s . O Ney nos seus intermináveis acordes de Charlie Parker. O nosso apartamento era o Birdland. Quando cheguei a Boston, não tinha sobre a cidade uma opinião propriamente simpática. Só mais tarde, depois de a deambular de fio a pavio, é que me aquiesci de que ali estava a minha segunda cidade. A primeira era – e continua a ser - a Praia. Não por ser a mais limpa, nem a mais bonita. Apenas por ser, nas cem razões do amor, a mais querida. A mais limpa, parecia-me Genebra que conhecera num memorável Natal, e a mais bonita, me perdoem as outras, era Rio de Janeiro que amedrontava ao mesmo tempo que encantava. Mas Boston, dizia-vos, era uma cidade demorada de se amar. Ela deixava-se envolver, a princípio, puritana e austera, depois, comedida e mais solta, e, finalmente, alegremente culta. Por isso, fiz nascer os meus dois filhos – big boys, indeed – nessa cidade: o Denzel, em St Margareth Hospital, e o Pablo, em Beth Israel Hospital. De repente, estou na beirada do Charles River. Para ser mais preciso, do lado de Cambridge, onde a cidade de Boston parece de um dourado singular dos fins da tarde. Canoas a remo e pequenos veleiros passam por mim. E tu, se tanto, ficas agora mais aninhada no meu pensamento. Birdland, não me faças rir. Digo-te Birdland, neste vagar das ondas, como se declamasse os versos de T.S. Eliot:
Não sei muito acerca dos deuses
Mas creio que o rio é um deus castanho...
Livros destes últimos dias
O livro 1421: O Ano em que a China Descobriu o Mundo, de Gavin Manzies, diz que uma grande armada chinesa, constituída por 300 navios e 30 mil homens, partira do Porto de Tanggu, a 5 de Março de 1421 e descobriram as Américas e a África Ocidental, inclusive Cabo Verde, antes dos portugueses. Segundo esse autor, em Santo Antão, há uma pedra de estrutura octagonal, datado de 1421, com caracteres hieroglíficos chineses. Baseando em antigas cartas náuticas e em datas astronómicas, bem como nos despojos de navios nas ilhas atlânticas, ele defende que foram os chineses os primeiros a atingir a Cabo Verde, nessa primeira viagem completa à volta do mundo. Não comento certas “verdades” que desconheço, repto para os historiadores claro está, mas recomendo a leitura, quanto mais não seja ficcional, da obra. E por falar nisso...Não sou um fanático pela Teoria da Conspiração, mas o livro O Código de Da Vinci, de Dan Brown, proporcionou-me uma interessante leitura. Um jogo de chaves escondidas, revelações surpreendentes, enigmas complicados, realidades e fantasias históricas, tudo narrado a um ritmo que leva o leitor ao enigma mais fechado da nossa era. Li-o com prazer e curiosidade...
Hermético
Hermético, quem sabe, se influenciado pelas leituras acima descritas. Deixo-vos a chave dos meus enigmas, que os tenho por dever e direito. Há dias estava feliz por ter visto um passarinho verde e parece que um deus castanho não gostou. Do volante do seu jeep, tentou uma, duas e três voltas, a ver se Alonjo Quijano esquecia a sua Dulcineia. Mas quixotesco da silva, já velho demais para saber tanto acerca desses deuses. Enfim, tudo em horas de conhecer alguém, numa casa não se sabe de quem. Ela olha-o de modo tão uterino que outra melodia aquele encontro não poderia ter tido. E dito isto, meus caros, passem o pudor e a prudência, as mesuras todas da escrita e o que mais queiram, a história vos fica neste ponto final.
Nessa altura, a cidade cheirava a laranja azeda. Talvez não seja curial, nem romântico, falar desse cheiro nauseabundo que, pressentido assim à distância, sempre dá alguma saudade. De qualquer forma, eram tempos mais heróicos de que hoje e os amigos - tão diferentes outrora!, carregavam em simples gestos a dimensão da aurora. Mas não pretendo aqui falar do perfume daqueles dias sobressaltados, às vezes, de prisões na calada da noite, outras vezes, de amigos evadidos. Nessa infância (sim, porque tive aquela entre tantas outras), eu gostava muito dos versos de Ovídio Martins que os meus pais, insidiosos no educar com a necessária subversão, declamavam à mesa:
Mordaças a um poeta? Impossível!
Seria esta uma excelente ocasião para homenagear o grande poeta da resistência cabo-verdiana. É que a história não se compadece com o esquecimento. E a memória é, no mínimo, um acto de justiça. Acto de justiça. Nessa altura, nós estávamos sob bloqueios e só os homens maiúsculos ousavam ser poetas. Tempos depois, soube que a laranja azeda, pressentida numa manifestação em Belo Horizonte, era o cheiro de gás lacrimogéneo. E, ainda que soe paradoxal, sempre deu alguma saudade...
Fenway Blues
Soubeste dos tempos de Fenway Blues, do imenso parque vis-a-vis Queenbury Street. Os amigos ensaiavam na sala e queriam ser, à força e a eito, um quarteto a tocar no Wally´s . O Ney nos seus intermináveis acordes de Charlie Parker. O nosso apartamento era o Birdland. Quando cheguei a Boston, não tinha sobre a cidade uma opinião propriamente simpática. Só mais tarde, depois de a deambular de fio a pavio, é que me aquiesci de que ali estava a minha segunda cidade. A primeira era – e continua a ser - a Praia. Não por ser a mais limpa, nem a mais bonita. Apenas por ser, nas cem razões do amor, a mais querida. A mais limpa, parecia-me Genebra que conhecera num memorável Natal, e a mais bonita, me perdoem as outras, era Rio de Janeiro que amedrontava ao mesmo tempo que encantava. Mas Boston, dizia-vos, era uma cidade demorada de se amar. Ela deixava-se envolver, a princípio, puritana e austera, depois, comedida e mais solta, e, finalmente, alegremente culta. Por isso, fiz nascer os meus dois filhos – big boys, indeed – nessa cidade: o Denzel, em St Margareth Hospital, e o Pablo, em Beth Israel Hospital. De repente, estou na beirada do Charles River. Para ser mais preciso, do lado de Cambridge, onde a cidade de Boston parece de um dourado singular dos fins da tarde. Canoas a remo e pequenos veleiros passam por mim. E tu, se tanto, ficas agora mais aninhada no meu pensamento. Birdland, não me faças rir. Digo-te Birdland, neste vagar das ondas, como se declamasse os versos de T.S. Eliot:
Não sei muito acerca dos deuses
Mas creio que o rio é um deus castanho...
Livros destes últimos dias
O livro 1421: O Ano em que a China Descobriu o Mundo, de Gavin Manzies, diz que uma grande armada chinesa, constituída por 300 navios e 30 mil homens, partira do Porto de Tanggu, a 5 de Março de 1421 e descobriram as Américas e a África Ocidental, inclusive Cabo Verde, antes dos portugueses. Segundo esse autor, em Santo Antão, há uma pedra de estrutura octagonal, datado de 1421, com caracteres hieroglíficos chineses. Baseando em antigas cartas náuticas e em datas astronómicas, bem como nos despojos de navios nas ilhas atlânticas, ele defende que foram os chineses os primeiros a atingir a Cabo Verde, nessa primeira viagem completa à volta do mundo. Não comento certas “verdades” que desconheço, repto para os historiadores claro está, mas recomendo a leitura, quanto mais não seja ficcional, da obra. E por falar nisso...Não sou um fanático pela Teoria da Conspiração, mas o livro O Código de Da Vinci, de Dan Brown, proporcionou-me uma interessante leitura. Um jogo de chaves escondidas, revelações surpreendentes, enigmas complicados, realidades e fantasias históricas, tudo narrado a um ritmo que leva o leitor ao enigma mais fechado da nossa era. Li-o com prazer e curiosidade...
Hermético
Hermético, quem sabe, se influenciado pelas leituras acima descritas. Deixo-vos a chave dos meus enigmas, que os tenho por dever e direito. Há dias estava feliz por ter visto um passarinho verde e parece que um deus castanho não gostou. Do volante do seu jeep, tentou uma, duas e três voltas, a ver se Alonjo Quijano esquecia a sua Dulcineia. Mas quixotesco da silva, já velho demais para saber tanto acerca desses deuses. Enfim, tudo em horas de conhecer alguém, numa casa não se sabe de quem. Ela olha-o de modo tão uterino que outra melodia aquele encontro não poderia ter tido. E dito isto, meus caros, passem o pudor e a prudência, as mesuras todas da escrita e o que mais queiram, a história vos fica neste ponto final.
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