sexta-feira, 31 de dezembro de 2004

Receita de Mulher

Vinícius de Moraes

As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental.
É preciso
Que haja qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível.
É preciso
Que tudo isso seja belo.
É preciso que súbito T
enha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche
No olhar dos homens.
É preciso, é absolutamente preciso
Que tudo seja belo e inesperado.
É preciso que umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Eluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como ao âmbar de uma tarde.
Ah, deixai-e dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas.
Nádegas é importantíssimo.
Olhos, então
Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente.
Uma boca
Fresca (nunca úmida!) e também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é, porém, o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras
É como um rio sem pontes.
Indispensável
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteie em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de 5 velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!)
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério.
Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos.
A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior
A 37° centígrados podendo eventualmente provocar queimaduras
Do 1° grau.
Os olhos, que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro da paixão
Que é preciso ultrapassar.
Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que, se se fechar os olhos
Ao abri-los ela não mais estará presente
Com seu sorriso e suas tramas.
Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
O fel da dúvida.
Oh, sobretudo
Que ele não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.

Blue skies smiling at me

Blue skies smiling at me
Nothing but blue skies do I see
Bluebirds singing a song
Nothing but bluebirds all day long
Never saw the sun shining so bright
Never saw things going so right
Noticing the days hurrying by
When you're in love, my, how they fly
Blue days, all of them gone
Nothing but blue skies from now on

terça-feira, 28 de dezembro de 2004

As palavras que me cercam

Filinto Elísio




Zero

Tem dias (seria verbo ter ou haver?) em que escrevo por uma afronta da alma – uma imperiosa necessidade de trazer para fora o que me vai cá dentro. E não venha algum leitor reclamar que isto é tribuna pública e não um muro das lamentações. Mas valha-nos Deus que tudo o vai na escrita, por mais colectiva que pareça, são interstícios existenciais. Depois, estamos às voltas com o fim-do-ano. É tempo de fazer balanços, reflexões, seminários da alma, coffee breaks das paixões, essas coisas. E, quem sabe, preparar o espírito para a cavalgadura de 2005, ora terna e cheia de crença, ora aziaga e tomada de oportunistas, como já se antevê deste computador.

Um


Olho para dentro de mim e sinto uma saudade inexplicável, uma lágrima que rola do nada e não sai aqui reflectida na solidão dos espelhos. Foguetes, buzinões, serpentinas, gargalhadas. Na televisão, o último despacho sobre a tragédia no sudoeste asiático. Pode ser um mau presságio? O que me deu agora para a fantasia de vidente? Leio uma crónica de Millôr Fernandes e desato numa grande gargalhada. Este país vai ser PDM e o Pranchinha mune-se de engenho e arte para escrever a grande saga. Este país é imparável, meu companheiro. Rumo às praias de um futuro aberto, como diria Gilberto Gil. Dentro de mim, há mais livros de poesia, palavras turbinadas e metáforas fervilhantes, textos e mais textos, nesta fuga substantiva. Uma musa, projectada desta saudade inexplicável, haverá de ler, mais sancionada pelo destino que impressionada com o desatino, os sonetos por vir. Os leitores (no arrasta-pé do fim-do-ano) que me perdoem a decadência…


Dois

Quer dizer que as idas às crónicas eram mais uma questão de exercício de ódio do que a higiénica leitura dos semanários à sexta-feira. A dita pegava nos jornais e folheava-os até à última página. Depois, Freud explica, confidenciava-se com a amiga: ei-lo, o atrevido, convencidíssimo da silva, armado em carapau de corrida, só pode. Está visto que ela – musa eterna ou feiticeira de cor morena – não morria de amores pelo colunista e declarara uma guerra-fria e surda ao coitado do Pranchinha que, alheio ao fastio que provocava, ia dizendo das suas sobre o país real. O Pranchinha, ó infeliz, foi formatado como um decalque de Sancho Pança, mas de tanto frequentar os cafés da capital, onde todos viram experts de qualquer coisa, arma-se vez por outra em Dom Quixote, o sonhador. E isso irritava a musa que o lia por toxicodependência, mas acto contínuo vomitava, pois, tirando o General Palanque, nas ilhas nada que reluz é ouro. E dizia, que ela ia às crónicas por uma questão de exercício de ódio. Entrementes, e agora a vender o peixe pelo preço que comprei, estou a escrever a tal crónica no jornal Horizonte em que a leitora procura odiar o cronista, porque no fundo, no inconsciente está apanhada na alma, e este sai da fotografia e dá-lhe um beijo de cinema. Amar é submeter-se ao êxtase do simples, ora. Um beijo daqueles, em que nos filmes de cowboys desemboca em The End!

Três

Ás vezes, escrevo coisas que eu próprio não subscrevo, depois de as ler. Para quê tanto azedume, num mundo já de si pornográfico de guerra e miséria? Outras vezes, no esconderijo deste computador, reconstruo letras, sílabas, palavras, frases, a ver se me sai um texto de acariciar os espíritos. Al Berto, na tecitura da escrita, confessara que: aceito ainda o mistério das palavras que me cercam e não coincidem, em nada, com a realidade. Mas fiquemos, pelo menos agora, com este travo de realidade. Bonita é a abelha que rouba o pólen à flor. O resto…são as horas que desaguam, transbordantes, em 2005!

quinta-feira, 23 de dezembro de 2004

Guardanapos de Papel

por Filinto Elísio


Ceia

Estaremos todos, adultos, adolescentes e crianças, na noite da consoada que a dona Mindoca nos prepara. A tribo reunida (netos, filhos, pais, irmãos, tios, primos e amigos) a comemorar, sob o pretexto da natividade divina, o sermos uma família. Em certos momentos, tudo o que reluz é ouro. Os olhos das crianças diante das prendas, o sorriso dos mais velhos e a voz que vem de um silêncio que não conto. Estariam cá os que já partiram, mas que na moldura maior são parte da festa. Inevitável uma certa tristeza pelas crianças de Falluja. Por todas as crianças do mundo que, devido às circunstâncias, enfrentam a guerra, a miséria e a doença. Enquanto Santa (Pai Natal ou raio que o parta), escolhe uns poucos para a comédia do costume. Arrepia um bocado…e não é do friozinho que, do terraço da dona Mindoca, afirma estar o ano a dar o berro…

Ano – encontros e desencontros

Estiveram apenas por um lapso de tempo. Um ponto. Coisinha de nada. Não deu para falarem sobre os anos que, como as ondas, rolam ainda nas praias da memória. Nem deu para juntos olharem a lua e a sua esplêndida beleza. Os encontros são marcados pelos desencontros. Se alguém faz trocadilho dos termos, palavra que não é este que assina a crónica…

Se oriente, rapaz

2004 foi um ano daqueles (Simpósio Internacional Amílcar Cabral, MCA e PDM). A ventura de estar com Gilberto Gil. Eu o conhecia desde a infância. De nome, de estória e de música. A criançada a cantar Oriente: (…) Pela curiosidade de ver/Onde o sol se esconde/Vê se compreende/Pela simples razão de que tudo depende/De determinação (…). Ver Gil e Veiga (Manuel, naturalmente) a dançar na Praça Alexandre Albuquerque deixou cá dentro uma impressão bonita. Uma luzinha bonita acende-se no fundo do túnel. É pela cultura (deixemo-nos de tretas) que este país tem caminho para andar…

Revelados

Os Rabelados de Espinho Branco gravaram as suas ladainhas em CD, uma produção da Comissão para os Direitos Humanos e Cidadania. As ladainhas são rezas cantadas que os Rabelados entoam a pedir graça aos santos. Pela importância cultural da iniciativa, vale aqui dar os parabéns a duas amigas imprescindíveis: Mizá e Vera Duarte.


Mar & Luz, vidas paralelas

Quem somos senão vasculhadores das nossas partes deixadas aos lugares e aos tempos? O regresso é entrar num espelho e caminhar numa espiral inversa. O teu nome diz tudo, pré figura o instante que és e o resto é o resto. E nessa procura somos parte daquela música cantada por Milton Nascimento (Guardanapos de Papel): (…) Na minha cidade tem poetas, poetas/Que chegam sem tambores nem trombetas, trombetas/E sempre aparecem quando menos aguardados, guardados/Entre livros e sapatos, em baús empoeirados (…). O que sobra, Mário, são as notícias do bloqueio. Elas existem…

Para o menino Tony

Há quem confunda alhos com bugalhos e tome nuvem por Juno. Há de tudo neste mundo de Deus: desde santo que não faz milagre a gente que queima santo. Há também gente que com o diabo fez contrato. Assessorou o demo nas suas travessuras e caboverduras. Isto é assim: ou dizemos «olá, como vai» e vamos à vida, ou nem todos são filhos da santa. Haja estômago! De resto, tudo não passa de fábula. Lobos, cabras, leões, tubarões, todos no palanque da brincadeira. E não faltam ratos, bodes e burros, gregos e troianos, arianos e plebeus, um grande Carnaval de generais, para a grande alegoria (direi mesmo ironia) que o destino nos reservou. E a raposa (o menino sabe), nas suas deambulações, topou um saboroso e abandonado cacho de uvas a cair da videira. Lobo armado em cordeiro, o gajo haveria de dizer «estão verdes». Era mais ou menos nesta linha a fábula de La Fontaine. Além do mais, tudo vale a pena quando a alma é pequena, dirá o menino Tony…

Resolução do Ano Novo

Ler a colecção completa de Eduardo Lourenço, que me ofereceram. Ser escandalosamente feliz. Reunir a tribo sempre que possível. Sentir Cabo Verde como parte do mundo. Ser tudo, menos claridoso. Escrever um ou dois livros. Continuar a dar mais, muito mais, do que a receber…

Boas Festas

E venha daí aquele abraço. O leitor tem sempre razão. É cliente, ao fim e ao cabo…




quarta-feira, 22 de dezembro de 2004

2 days to christmas.....
yesterday the weather was so damn hot can.
muahahahha yesterday carol came my house so early sia.
when she come my house i was still sleeping.
so nice of nat cause she make tang yuan for all of us.
at my house carol helped me to wrap my books and she helped me with my chinese and my accounts.
there is something which hit my mind after what she said.

after what she said.

oman Pro Football Player - Part III

Breeding got into professional football last August when she responded to an ad for try-outs and was selected as backup quarterback for the 38-woman team.

The job is truly professional. The players are paid according to ticket sales, plus shares of any net revenue surplus at the end of the season, although all the players still have to keep their day jobs.

"I know a lot of the other players from the other sports I play," Breeding said. "We all work during the day, so the hardest part is making practice every day while still playing other sports. Working here at Huntsville Center and having to travel so much also makes it difficult for me, but it's worth it!"


Football:

terça-feira, 21 de dezembro de 2004

O CAPTAIN! my Captain!

O CAPTAIN! my Captain! our fearful trip is done;

The ship has weather¿d every rack, the prize we sought is won;

The port is near, the bells I hear, the people all exulting,

While follow eyes the steady keel, the vessel grim and daring:

But O heart! heart! heart!

O the bleeding drops of red,

Where on the deck my Captain lies,

Fallen cold and dead.



O Captain! my Captain! rise up and hear the bells;

Rise up¿for you the flag is flung¿for you the bugle trills;

For you bouquets and ribbon¿d wreaths¿for you the shores a-crowding;

For you they call, the swaying mass, their eager faces turning;

Here Captain! dear father!

This arm beneath your head;

It is some dream that on the deck,

You¿ve fallen cold and dead.



My Captain does not answer, his lips are pale and still;

My father does not feel my arm, he has no pulse nor will;

The ship is anchor¿d safe and sound, its voyage closed and done;

From fearful trip, the victor ship, comes in with object won;

Exult, O shores, and ring, O bells!

But I, with mournful tread,

Walk the deck my Captain lies,

Fallen cold and dead.


terça-feira, 14 de dezembro de 2004

Santa´s

Santa´s coming to town

Em época natalícia, eu fico mais sensível. É algo que vem de trás, da infância mesmo. Encanta-me a orla marítima enfeitada de luzes, as bermas e as paredes caiadas. Vejo, com fina nostalgia, a azáfama das compras. É tempo em que abraçar os mais próximos ganha outra dimensão. E fico em dúvida se sou ateu ou devoto. E só não declamo versos de Fernando Pessoa pelas ruas, a medo de ser tachado de maluco. Valha-me Deus que homem também chora. Valha-lhe a mim próprio o dom de cantar, sem arrogância dos donos da verdade, estes dias que passam. E amar, sempre e de todas as formas, legitima o mistério de viver. Aproveito a quadra para desejar Boas Festas aos leitores do S/Cem Margens. Dizer-lhes que tem valido a pena o convívio, apesar dos riscos. Escrever nunca foi um acto inocente, mas uma afirmação existencial que tem peso e ocupa espaço. E esta hiper sensibilidade – que ora desagrada aos gregos, ora aos troianos – me dá gozo e responsabilidade. Ademais, será como cantar aos meus filhos (Denzel e Pablo): Santa´s coming…

Grito, logo existo

O atentado contra o Procurador da República Arlindo Figueiredo e a sua família provoca a todos vivo repúdio e obriga-nos a pensar. Estamos em guerra? Em estado de sítio? Ou de medo? Quem ousa gritar contra o estado das coisas? Quem ousa existir? O Estado não pode ficar vulnerável face à criminalidade. A democracia, contrariamente ao vaticínio de alguma gente, não é o Estado frágil, banana e desautorizado. É antes um Estado ágil, bastião e autorizado. Em nome do cidadão. Em nome daquele que produz, vota e paga impostos. E exige o bem-estar e o estar bem. O atentado contra o magistrado e a sua família significa apenas e tão-só que a criminalidade foi longe de mais. E que declarou guerra ao Estado e ao cidadão. Obriga-nos a pensar no Estado da Nação. Na segurança colectiva. Nos nossos filhos. Neste país que queremos todos ver transformado para melhor. Tomemos a capital por exemplo. Praia é hoje uma cidade a pedir medidas urgentes. Vende-se tudo e mais alguma coisa nas ruas: alimentos, animais, remédios e CD piratas. A população alivia-se em qualquer lugar e os becos fedem a urina e fezes. Os arruaceiros brigam pelas ruas e as prostitutas vendem o corpo à porta dos hotéis e das boates. Na calada da noite, os impiedosos assaltam os transeuntes; os veículos são saqueados à porta de casa. As moradias são fortificadas e as empresas cercadas de guardas-nocturnos. E o quadro completa-se com a apatia do cidadão: olha, dá em doido e cumpre o seu destino de pagar o IVA. E o criminoso tenta impor um way of life. Ora, isto está tomado de jeep em pó. Está cheio de miudagem que, como quem não quer a coisa, deposita milhares de contos nos bancos sem verificação de origem. Está abarrotado da basófia dos homens da farinha que fazem e desfazem, ante à impotência colectiva. Está assim de gente que mata por dar aqui aquela palha. Mas importa quebrar o silêncio. Gritar para poder existir. Contra o estado das coisas. O cidadão que conhece o drama da toxicodependência a cada esquina tem de legitimar e dar «carta branca» às autoridades para um combate radical e sem misericórdia ao narcotráfico. Em nenhum lugar se combate a droga com indiferença, paninhos quentes ou morabeza! Há que declarar guerra…no mínimo!

Nanda na varanda

Na varanda do meu apartamento, releio Antes que anoiteça, de Reinaldo Arenas. Antes havíamos discutido (eu, tu e o Pranchinha) as questões políticas em Portugal, país que não nos é tão distante. Há dias, falando com Casimiro de Pina, tive a grata impressão de que uma geração já encara a democracia a partir da perspectiva cultural. Democracia como processo de civilidade. Os Estados Gerais dos partidos que enformam a nossa constitucionalidade, nem sempre rompem em nós a primordial liberdade. Releio Arenas e penso na homossexualidade reprimida na nossa sociedade. Somos capazes de deflagrar problemas noutras paragens do mundo, mas não conseguimos enxergar a ignomínia que bate às nossas portas. Ora, isto está tomado ainda de alguma mediocridade. Lá longe, o barulho, piroso e encardido, de um colazouk.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2004

Divagações

Filinto Elísio
Campo de Concentração

Prometi ficar atento ao Tarrafal, de Santiago, graças à Festa da Juventude Graciosa, causa próxima. Convencido de que se torna preciso e urgente um outro olhar sobre esse Concelho, vou escrevendo, de forma bissexta, mas resoluta, sobre as realidades que importam (do meu ponto de vista, naturalmente) mudar. Sem entrar no âmago das turras políticas que fazem o nosso quotidiano neste país e têm especial tempero nos meios pequenos, terei sobre o Tarrafal um olhar amigo, solidário e crítico. Deu-me para pensar no Campo de Concentração, em Chão Bom, criado há mais de 70 anos e que conta muito da história colonial de Cabo Verde. Das outras ex colónias portuguesas e de Portugal. Olho para o Campo de Concentração e para o seu grito – ainda silencioso – de reinvenção do real. Importava perceber (mas com acções concretas, minha gente) que o Tarrafal é também espaço de lembranças, quinquilharias e reminiscências. Coisas que não cabem senão no velho baú da memória. Incomodam? Que incomodem! O grande capital do futuro é o homem…


Kafuka – Cine-clube da Praia

Os amantes do cinema já podem ver, mais do que olhar, para a tela. Um grupo de jovens quadros cria um Cineclube, na cidade da Praia. Algo alternativo ao cinema dos circuitos comerciais e das videotecas da capital. Seja esta iniciativa uma antevisão da cultura cinemateca. A importância de um clube de cinema na formação de plateias, de um núcleo difusor da cultura cinematográfica e na deflagração de uma geração cinemateca é inquestionável. Em verdade, precisamos reinventar uma geração capaz de pressentir cinema como um veículo de expressão artística. Vivemos, aqui e agora, sem a possibilidade de contemplação de outras linguagens cinematográficas, porque este nosso mercado, cifronista e medíocre, não oferece outra opção senão o espectáculo narrativo simplista, imperando a idolatria do mau com efeitos especiais. Precisamos reinventar uma geração capaz de ver Ford, Kurosawa, Buñuel, Eisenstein, Resnais, Fellini, De Sicca, Pasolini, Scolla, Welles, Wilder, Truffaut, Renoir, Bergman, Allen, Almodôvar e outros cineastas de fina estampa. Como diria José Lino Grünewald, «Cinema se aprende indo ao cinema». Agora ou nunca. Numa época em que a indústria do vídeo (e os seus cânones narrativos), qual metástase doentia, tenta estrangular a estética do cinema, há que reinventar espaços e ambientes para se ver filmes de qualidade. Por isso, palmas para essa juventude que ousa dar uma pedrada no charco. E eis que o cineclubismo reentra para a vida da cidade. Já não era sem tempo…


Frank

Encontrava-se, aqui há dias, em visita privada, Francisco L. Borges, mais conhecido nos Estados Unidos, por Frank L. Borges. Figura proeminente nas esferas académicas, políticas e financeiras, Borges é secretário-geral de uma das grandes empresas imobiliárias americanas, a Landmark Partners. Especialista em finanças, mais precisamente nas estratégias, nos investimentos e no desenvolvimento do capital aplicado, Frank deveria ser paradigma, não apenas em Wall Street, mas neste Cabo Verde de esperança e a querer Millenniun. Mas Frank, vê-se logo que a nossa imprensa estava desatenta, pautou a sua trajectória em defesa de causas civis e políticas, não só como tesoureiro da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP), maior associação americana para a defesa das minorias raciais, como na direcção da Hartford Foundation for Public Giving, da University of Connecticut Foundation e da companhia Highland Hospitality. Borges serviu, por dois mandados, como o Secretário de Tesouro do Estado de Connecticut (de 1986 a 1993), antes de ser apontado como director e membro do conselho da administração do poderoso grupo financeiro e segurador GE Capital’s Financial Guaranty Insurance Corporation, em Nova Iorque. Ele também já foi vice-presidente da câmara de Hartford, capital do estado de Connecticut, perto de onde nasceu o pianista Horace Silver, outro ilustre de origem cabo-verdiana. Esta aparente resenha biográfica pretende apenas chamar atenção aos incautos e repetir que o grande capital do futuro é o homem…

Pinceladas do Natal

por Filinto Elísio


Mote

Escrevesse sobre o Natal na Praia de Santa Maria da Vitória. Mais precisamente, a natividade doutros tempos em que a cidade era uma urbe deste tamanho e eu, criança de esventrar suas ruelas, achava conhecer todos os seus moradores. Contasse a azáfama que era o mercado municipal na antevéspera da festa: os grunhidos dos leitões, os pregões das vendedeiras e o movimento perpétuo das compras. Retratasse o cheiro às fornadas, as montras luminosas e os coros ensaiados nas igrejas. E segredasse (aqui entre nós, ó pessoal) que o Natal do meu tempo era mais sabe, um presépio instalado na memória, quase um beijo furtado à inocência. E a cidade não tinha via rápida, centros comerciais, lojas chinesas, Sucupira, urbanizações modernas, essas coisas. Nem tinha a ambição de abraçar a Cidade Velha. Ou de fugir para o interior da ilha de Santiago. A Praia que cabia, pitoresca e no seu canto, nesta palma da mão…

Introduzindo a dúvida

E este desafio de escrever algo que não seja piegas, nem alienado. Ciente de que os tempos não são positivos: abusos, corrupção desenfreada, crises, violência, doenças, analfabetismo...o diabo? Sem muito Pai Natal, Reis Magos e veados na manjedoura, burrinhos romantizados remoendo palha, Estrela de Belém e quadros afins. Uma escrita na viagem da alma, se der....


Coda 1

Não queria também escrever de molde nostálgico e desanimado que o sentido do Natal está quebrado. Dizer-vos que tudo ficou hoje tão comercializado e calculista que já são inaudíveis os sinos a badalar na minha infância. Antes, ponho os olhos no telescópico de brinquedo e revejo, em caleidoscópio, o Natal de outros tempos. A Praia do antigamente! Prendas, cartões, bolos, decorações, festas, reuniões de família e Missa do Galo – ora, na Igreja Matriz, onde a liturgia era mais intensa; ora, na Igreja Nazarena, onde os cânticos tinham mais a ver com a alegria. Aliás, os Evangelhos rezam que o Nascimento de Cristo, cujo aniversário se comemora no Natal como nova de grande alegria…

Reverso

O peru, matava-se o gajo às bofetadas, depois de embriagado a vinho branco. Até certo ponto, e considerando o etílico, era morte desejada por muitos vagabundos da cidade. A meninada, porém, ficava horrorizada. O mesmo horror diante do leitão, assadíssimo da silva, com duas azeitonas nos olhos e umas salsas no colorau lodoso. E, para quem morava como eu na Rua do Hospital, o pior eram os gritos dos cabritos, arrastados pelas cordas na Rua da Horta, que pareciam crianças agonizantes. Como um gemido de escravo, sei lá, que por estas ruas aconteceu. Ou uma virgem, que nunca celebrou, a ver o poente em que o sol se torna regaço. Em Serpi, contou-me alguém, havia a tradição de sacrificar uma pessoa a cada festa (de preferência uma mulher). Mas antes do sacrifício, purificavam-na! E, de certa forma, escrever isto exorciza as súplicas que atravessam o passado…

Noite de Paz

Noite de Amor. E do Vinho do Porto. Das rabanadas, das azevias, dos filhoses de abóbora, ou das broas de mel. Os frutos. Entrementes, no gira-discos, Nat King Cole canta uma música natalícia. O bacalhau à Gomes de Sá, o leitão assado e o peru recheado eram a ementa preferida na noite da consoada. E à mesa, salpicada de rebuçados, eram as aletrias, nozes, figos, broas, amêndoas, castanhas e passas que faziam crescer água na boca dos convivas. Pais, irmãos, avós, tios, amigos, vizinhos, Noite de Paz num disco de vynil…

Luzes de néon

Tal qual o crepon dos papeis. A seda viscosa da solidão antiga. Pelas fraldas, como quem deambula pelas empenas da cidade, alguém está sozinho. Um belo dia, anos depois, uma grande avenida haveria de rasgar a noite mais fria. E tudo seria ornamentado de luzes de néon, com dizeres natalícios e cores alusivas. Alguém está perdido na cidade e no mundo. E come o pão que o diabo amassou. Dissonante da música e do júbilo pelo nascimento de Cristo. Distante dos jovens que tiram as Boas Festas. Estes dançam, pulam, rodopiam e fazem algazarra. Nho San José, Sagrada da Maria, tralalá e etc…Anos depois, a cidade haveria de cortar as amarras para se assumir metrópole, disforme, conforme o figurino da polis. E a solidão acentuada desse homem permaneceria numa estátua de pedra, absurda e feia, à beira dos dias!


Bedjo Natal ou tão-somente sonho

É claro que as crianças sonhavam com o Bedjo Natal. O Pai Natal, velhote, boémio, alegre de barba branca, associado a São Nicolau, bispo turco. Este, segundo a lenda, ajudava os pobres e as crianças, oferecendo-lhes presentes e dinheiro. A sua generosidade deu origem ao sonho segundo o qual visitaria a casa das crianças no dia do Natal para lhes deixar prendas. E um outro mote diz:

(…) Cantam anjos lá nos céus; trazem novas de perdão, graça eterna, salvação (…)

Coda 2

Para alguns, não há Natal sem prendas aos pés do pinheiro. É um culto comercial que rende muito dinheiro. Mas para a maioria, prendas é algo surrealista. Mais da metade do mundo vive na pobreza. E no nosso mundo, nesta nossa cidade queria dizer, também a pobreza grassa. De modo que o Natal tem de ser visto noutro prisma. Com óculos da realidade. O Natal, digam o que disserem, é um ritual do amor. A centralidade da vivência cristã está na festa da Ressurreição, Páscoa, mas é no Natal que o ar fica mais leve, as ruas ganham outras cores e as pessoas que se amam se tornam mais lindas. Os Evangelhos relatam que anjo anunciara: Não temais, porquanto vos trago novas de grande alegria. Nada está quebrado na Praia de Santa Maria da Vitória. Por isso, Boas festas, pessoal! Pois ainda há sempre o que comemorar…