quinta-feira, 10 de novembro de 2005

Crónica tardia ou versos de estradas

(Lia-se Fernando Pessoa e a noite estava cálida, mas havia vento, um ventar que sabia à música, fiozinho de nada por onde as palavras navegam. Tirando o relógio, tudo era um conversar ao sabor dos momentos. O autor, serenado de tantas uvas, dirá que o vinho é tinto e que tudo é o que vem depois do Verbo. Assim diz o Livro, sabias?)



Estradas

Mas devo? Já estradas andado, começar a minha crónica tardia assim:

(…)
Alcantilado amarelo,
crua miragem, passei
crente do amor e alma
que haviam de jorrar
para os inocentes.
Mas quem me dava
inocência ou magia?
(…)

Não apenas pelos versos, estes últimos de Fiama Hasse Pais Brandão. Mas há estradas que marcam. O perder lugares tão-somente. E as paragens. Em momentos onde a lua se deleita na noite. Ou apenas suscitam madrugadas a desaguar em sol. É que há lugares parecidos connosco. Estradas andado, reparo que as tuas mãos seriam de atar pela jornada. E, quem sabe a dois (ou a sós, como tu dizes), eu sentisse menos náusea em tudo que seja vida. Mas adiante que há reaccionários reabilitados…


Os ditos reaccionários e as ditosas rosas

Ricardo Reis, dos muitos versos imortais, escreveu estes que são da minha cabeceira: Prefiro rosas, meu amor, à pátria/ E antes magnólias amo/ Que a glória e a virtude. Ora, isto é redutor, meus caros. Chegará a hora de zerar a dinâmica binária dos ditos e entender o mundo na sua complexidade reconciliadora. Os causídicos perdoem esta minha incursão por seara alheia, mas, convenhamos, que céu é grandi, mundu é largu. Este desabafo nada tem a ver com a nossa reconciliação, a desmerecer alguma verdade. Os heróis não se decretam. De resto, os reaccionários saíram mesmo de moda. E não se confunda mátria com pátria. Mas nem por isso deixarei eu de preferir as rosas. Quão ditosas. E de amar as magnólias…

Último acto

O velho continuava enfim o solilóquio. Agora saíste da varanda e entras no quarto. Não queres que te repita como foi, como não foi. Dizes que estou obcecado com isto. Talvez esteja, na minha pobre dimensão humana. Somos tão frágeis! Do pó viemos e ao pó iremos, inexoravelmente. Mas adiante. Resumia-se aquilo ao vemo-nos por aí. Uma frase sem grandeza para o adeus de qualquer coisa. E a foto de um farol. Mais precisamente do Farol D. Maria Pia. E seria preciso colocar as fichas sobre a mesa e estar na vida com alguma poesia. Não poderia ter sido apenas frisson, essa coisa na pele, o arrepio na espinha. Teria de ser mais compromisso. Com a vida. Naturalmente…

Mensagem II

Mas antes do encerrar da cortina, um intervalo para te contar do álbum Mensagem II, agora editado no Brasil, com os versos de Fernando Pessoa. Ao Mário Lúcio, músico nosso celebrado pela crítica internacional e, em paradoxo, apedrejado pela mediocridade caseira, coube a faixa D. Diniz, musicada pelo artista brasileiro, André Luis Oliveira. Pessoa escrevia, em Mensagem, e Mário Lúcio canta-o nessa linha:

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
o plantador de naus a haver,
e ouve um silêncio múrmuro comsigo:
é o rumor dos pinhaes que, como um trigo
de Império, ondulam sem se poder ver.

Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar,
e a falla dos pinhaes, marulho obscuro,
é o som presente desse mar futuro,
é a voz da terra anciando pelo mar.

E porque já estamos mesmo no fim desta crónica tardia, queria inaugurar daqui uma nova fase de escrita. Corpo e alma renovados pelo sopro da poesia. Ou da Arte, que é a melhor forma de amor. A melhor forma de achar um oceano qualquer…

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