quarta-feira, 20 de julho de 2005

Desejo e sina lapidando o sonho

Ao amigo Zezito de Araújo


Na minha imaginação, apenas uma rede parada, à espera que alguém a balance. Uma rede, aparentemente absurda, como Rosebud, o trenó do Cidadão Kane. Uma rede, envolta de mistério e de silencio ulterior a tudo que a consciência explica. Quem balançaria essa rede? Seria a Nega Fulô, seria?

Do Estado de Alagoas, no Brasil, eu guardava mais pressentimento do que conhecimento. Um pressentimento bom, em combustão interior. Sentimento quase de paixão. O que lateja, mas não descortina. Sabia de Djavan, das suas músicas e poemas. Mostrou-mo um amigo, do tempo do liceu. Sabia-o alagoano, apanhando em toda a rama o meu pressentimento. Tenho acompanhado a frondosa floração da sua carreira artística, com alguma frustração de não o poder trazer para um espectáculo em Cabo Verde. Ver Djavan, na Cidade Velha, partida de muitos escravos para o Brasil, alguns dos quais para Alagoas, seria desejo e sina lapidando o sonho. A mesma comoção de participar, no Fesquintal de Jazz, e de assistir ao concêntrico encontro de Rhoda Scott com a Cidade Velha. E repito o dito em 2003: cruzar gente nossa e gente outra no palco das ilhas realiza a vocação real deste país, que é a de ser o palco do Cosmos. O Fesquintal de Jazz foi, nesse sentido e modéstia à parte, a segunda maior operação triunfo da história de Cabo Verde. A primeira está sendo o 30º Aniversário da Independência Nacional.

Mas, dizia, eu não conhecia o Estado de Alagoas da perspectiva tão afilada e aprofundada quanto desejaria. E reconheço esta falha, se não mesmo esta falência, agora que o governador Ronaldo Lessa e os seus secretários de governo visitam Cabo Verde, num reencontro esperado há séculos. Do Quilombo dos Palmares, a primeira república negra do mundo, eu não sabia quase nada. De Zumbi dos Palmares, uma ou outra leitura bissexta, desaconselhando qualquer discussão sobre a problemática.

Mais pressentimento do que conhecimento, fui me apercebendo que Alagoas tem muito a ver connosco, com a nossa identidade matricial e relacional. É o próprio governador alagoano que o reconhece quando afirma “É o resgate da nossa história e precisamos resgatá-la para dar sentido ao nosso projecto de vida”. É a gente de Jorge de Lima, poeta cujos versos meu pai recitava assim à mesa:

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Este mesmo que vem infatigavelmente,
Parodiar o sol e associar à lua
Quando a sombra da noite enegrece o poente!

E que o actor Chico Assis recria, sem neurastenia, mas com recitado balanço, a poética do grande mestre. Apetece até retribuir com Jorge Barbosa, nosso poeta:

Nem sinal de planta
Nem restos de árvore
No cenário ressequido
Da planície…

O casebre apenas
De pedra solta
E uma lembrança aflitiva.

Neste momento em que os alagoanos chegam a Cabo Verde, será mais do que ocasião para nos revelarmos. Para que possamos fazer coisas em comum, numa cooperação muito digna, entre escravos hoje libertos. Será tempo, já que o espaço nos concede a oportunidade, para fazer cultura, negócios, amizade, amor, essas coisas todas, havendo o céu por limite. Assim, quem sabe o conhecimento se torne primado onde era pressentimento em mim. E já com menos mistério e silêncio ulterior, saio da imaginação para fazer da rede uma realidade. O resto a balançá-la (só poderia) a Nega Fulô…

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