quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

2009


AS COISAS SÃO COMO SÃO

As coisas são como são – umas sim,
outras sopa. Por acaso as moreias
não são cobras. Pescam-se no mar,
como as lulas. O camaleão é
um assombro: tem todas as cores
e não tem nenhuma. O helicóptero
e a borboleta não são aves.
O cisne é, mas não gosta de voar.

Algumas cobras têm veneno,
tal-qual o escorpião e a cicuta.
A girafa chega aos altos ramos,
a toupeira come no chão.
O Sol abrasa, a Lua não queima.
Uma circunferência é redonda,
um triângulo não é. Nenhum albino é preto,
todos os pigmeus são pequeninos.
Eu sei que geito se escreve
com jota, da esquerda para
a direita. Há quem dê erros
de ortografia, da direita para a
esquerda. Os pinguins do Pólo Sul
vivem de cabeça para cima,
tal-qual os esquimós,
que vivem no Pólo Norte.
As coisas são como são.


ARMÉNIO VIEIRA

5, 4, 3, 2, 1, 1, 0... 2009


Uma mulher manifesta-se contra os bombardeamentos de Israel na Faixa de Gaza, junto da embaixada israelita em Lima, no Peru.
Fotografia: Enrique Castro-Mendivil /Reuters.

NAS COLINAS DO DESTERRO


(APÓCRIFO DE MAHMOUD DARWICH
DIRIGINDO-SE A UM POETA JUDEU)

Matam e morrem — desde as alturas
de guedá que sabem que só o sangue
cheira a sangue. Mesmo com voz exangue,
louvam o porvir. Mesmo se pelas agruras

feridos. Mas porque nenhum destino se tece
com apenas uma meada, matam e morrem.
O fim dos tempos não temem, mas correm
com leves pés de potro ante o dia que fenece.

A rosa e o aço conhecem. A lisa geometria
e a áspera desmesura. Tão distantes do grego
legado, porém — aprender pelo sofrimento.

Do tempo conhecem o sulco e a estria.
E porque irmãos humanos essoutros, digo-
-lhe: nosso também o horror e o lamento.


JOSÉ LUIZ TAVARES

31 de Dezembro

Mona Lisa
Jean-Michel Basquiat

Kind of Blue

O dia 31 de Dezembro de 2008, último deste ano em que Baraka Obama ganhou a presidência dos EUA e os israelitas destroem a Faixa de Gaza, na cidade da Praia, o tempo amanhece nublado e a brisa é fresca. Escuto, ainda na cama, "Kind of Blue", de Miles Davis. Folheio um livro que conta as "travessuras" de Basquiat e Diaz. Uma vez, em Nova Iorque, deambulei pelas ruas com os graffites de SAMO. Ainda hoje procuro os poemas que escrevi sobre Village. Perdi-os nas andanças entre Boston e Providence. Doravante, farei sketchs humorísticos dos políticos locais. Deixar sair "em liberdade" os assassinos das duas italianas, por incompetência do STJ, é o fim da macacada. Pessoalmente, estou farto da incompetência assassina. Há aqui uma mecânica de lesa moral e sociedade, que nos permite viver entre assassinos e traficantes, alguns até mascarados de polícias. Que verguenza! Riscos? Corro tais riscos fazendo um documentário sobre Eugénio Tavares. Em Janeiro, irei a Santiago de Compostela, Espanha, acertar com os galegos essa possibilidade. Aproveitarei a viagem para também acertar a publicação do Li Cores & Ad Vinhos, em Lisboa. Outros riscos? Trabalhar nos meus projectos, fazer 48 anos aninhados em ti e olhar-me ao espelho demoradamente. O dia 31 de Dezembro de 2008 é um pouco esta loucura. Pedes a Deus que me abençoe. Mas nunca se pode banhar na mesma água desse rio. O tempo é um estuário, uma veia aberta, kind of blue...

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Mirror


Standing Nude
Joan Miró
1.
Queres que te conte histórias? Inventa-me aí uma soleira, sem porta que seja, e o teu regaço já me é de bom tamanho. Os bíblicos? Ou os para-bíblicos, que são os mais sensuais? Conta a lenda que, no século XVI, em Praga, um rabino-cabalista construiu um ser artificial, o Golem. Esse feito, às margens do rio Moldava, elevava o homem à condição do Criador. Através da areia e do barro, e com recurso à magia, a Criatura se tornava corpo e espírito. O poeta Jorge Luis Borges fizera uma grande homenagem a essa lenda judaica:
(...)
Si (como el griego afirma em ei Cratilo)
El nombre es arquétipo de la cosa
En las letras de rosa está la rosa
Y todo el Nílo en la palabra Nílo.
(...)
2.
Sim, quando morrer, queria morrer como Borges, à beira do rio Ródano.
3.
Li, às gargalhadas, com o Best Of, onde estrelas se fazem só porque nos comeram no calambeque preto. Insones madrugadas!Borboletas amarelas que se desmacham na violeta. Ou estarei a confundir as cores? Ou tudo não passa de um arco-íris, psicadélico e louco, e não se sabe de mais nada?

PORCO, CHAMPANHE & SERPENTINA



1.
O Ano Novo, por mais que não queiramos, é de um simbolismo que nos transcende. De um lado da fronteira temporal, o ano passado com as suas alegrias e tristezas. Quantas gargalhadas e quantas lágrimas. O peso insustentável das vitórias e das derrotas. Doutro lado da fronteira, o ano a começar, um rio de 12 meses, com margens ainda incertas, mas prometendo novas alegrias e novas tristezas. Chega-se a ficar filósofo neste período de balanço, em que nos obrigam a retrospectiva e a prospectiva de tudo e de nada. Pessoalmente, vivo sempre a percepção de um recomeço a cada Ano Novo. Não vou ao Reveillon me deliciar no cortejo das vaidades e ao baile das máscaras. Nem me perco no artifício dos fogos que engana a cidade à meia-noite. Quedo-me só, apartado de tudo e de todos, alheio ao turbilhão de convivas que trilha a orgia do porco, champanhe & serpentina, e silenciado dessa música de Boas Festas que não me galvaniza.

2.
Maria Helena de Morais Sato, poeta cabo-verdiana que conheci há dias em São Paulo, escreveu o seguinte: Peço/estrelas/tão-somente…Constelações/eu mesma/traço! Não é bonito? Passar o tempo a lê-la ou a ver, pelo DVD, a série Prison Break (que também andam a dar na TCV), admirador que sou de Wentworth Miller. O leitor gosta de Lenny Kravitz? K, nome de código, gosta de grafite e desenha na parede um homem crucificado. Algures, dança-se Guantanamera. K é um exímio dançarino. Moi, non plus

3.
Uma senhora foi assaltada e violada na zona de Quebra-Canela. Esse tipo de crime violento e intolerável vem acontecendo de forma recorrente em Cabo Verde, sobretudo na cidade da Praia. Não nos furtamos de um olhar sociológico sobre a criminalidade e de reconhecer que nada acontece por acaso. Os criminosos, tal como as vítimas, são produtos de uma engrenagem social perversa. O sistema social, em seu reverso, gera a sua violência, bla-bla-bla. Aliado a isso, um Código Penal “bunda mole” (estou mesmo a ver a ira dos bundões!). Entretanto, não apenas por esse crime hediondo (não mais que os outros menos mediáticos por envolver vitimas menos socialites, diga-se), temos de produzir, antes que seja demasiado tarde, um discurso e uma acção mais veementes e mais indignados contra a insegurança. Não nos podemos quedar como “cordeiros silenciosos” à mercê do delírio dos criminosos.

4.
Na Califórnia, Estados Unidos, um assassino, disfarçado de Pai Natal, entra numa casa e dispara contra a família. É a grande tragédia natalícia. Vai se ver que o homem entrara em casa da ex-mulher e estava tresloucado com a separação. Crime passional, dirão alguns. Premeditado, é o que nos parece. Uma tragédia enorme, ao fim e ao cabo. Na África, milhões de pessoas morrem de fome, de doença e de violência. No mundo dito desenvolvido, os neoliberais dão o berro à banca e pedem ao Estado (outrora amaldiçoado pela teoria económica) que seja forte e lhes salve da bancarrota. Karl Marx, o Rimbaud da filosofia económica, dá uma gargalhada. O mundo não é plano, ó Thomas. É amarrotado.

5.
De repente, neste PDM, fala-se da língua. Da língua cabo-verdiana. Uma língua que é a cara mestiça dos cabo-verdianos. Do Alupec-se quem puder (e souber), como se a oficialização da língua cabo-verdiana tivesse que depender de uma ortografia acabada. O português foi oficializado no tempo em que física era “phisica” e farmácia era “pharmacia”. D. Diniz não esperou pela “ortografia” acabada para dar o mote oficial. Fê-lo com sentido de soberania e consciência cultural. É o mesmo espírito que nos desafia. JMN prometera a oficialização ainda no seu mandato governamental. A ver se é desta que me orgulharei dos deputados da Nação…

6.
K., nome de código, esperava pela madrugada a chegada dos quatro rapazes. Frio, muito frio, este amanhecer de Ano Novo. Esperava-os na moita da noite, que era esquina do bairro adormecido, com um revólver na mão. A intenção era fuzilar tais animais, regá-los com gasolina e jogar fogo na trouxa. Que linda fogueira na aurora de 2009. Feita a obra-prima, entraria no Toyota Prado, e seguiria para dançar as últimas do baile. Ou será que deveria castrar os filhos da mãe? Mas não. Um telefonema da companheira (preocupada com o sumiço depois das Boas Entradas) reclamava a sua presença. Ficção? Talvez seja. Depois de uns uísques, tudo se ficciona. Somos todos uns vampiros? E que País é este que não cabe num soneto? Um haicai desleixado e estaria tudo dito. Estou a ver daqui a cara das secretárias, dos burocratas, dos bloguistas, dos assessores, dos acessórios, dos filhos da pátria…

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Suástica, amor & novela


1.
Desde que Paraíso Tropical, a novela das oito da TCV, matou a personagem Edivaldo (pequena ousadia global de botar negro na tela) que fiquei zangado. Sem ser viciado, sou daqueles que assiste a TCV, das oito ao fim da edição. Nada religioso, diga-se de passagem. Mas, dizia, fiquei chateado, meio margoso, com a ideia de terem tirado o crioulo Edivaldo da cena, o único na trama que era Artista. A novela ficou sem artista e, de certa forma, sem Arte. Minto: ficou só um - Cássio, com as suas receitas pantagruélicas no restaurante Frigideira Carioca (motivo do meu interesse pela novela, confesso). Mas, sem Edivaldo não dá para ser feliz. E retalio contra tamanha desconsideração, contando o fim do mistério aos mais aficionados. Essa merda terminará assim: Olavo mata Taís. Olavo e Ivan se matam. Camila manda Fred levar na curva e reata namoro com Mateus. Iracema e Virginia, por causa da eleições, não atingem consenso. Dinorá e Gustavo se casam . Marion vira rabidante e é expulsa do Plateau. Bebel - que fruta! - posa nua. Para que o finzinho seja meloso, piroso e zouk, porra, Paula e Daniel são pais de gémeas. Quanta mediocridade! Estou vingado...
2.
Agora, a sério, que o amor é bonito. Aposto que metade do meu leitorado não conhece o poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade. É assim:
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para o Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
3.
Estou meio besta hoje. A escrever asneiras, a postar à-toa. O resto é um absurdo a nos ultrapassar as medidas. O raïd aéreo do exército israelita contra a Faixa de Gaza é um acto neo-nazi. A esses genocidas só falta a suástica...

dezembro

Foto: Reuters/Ammar Awad






Não esperes por dezembro
para que sejam felizes as festas
e prósperos os anos
que dezembro pode ser tarde
para quem se guarda até tão tarde.
Quero pertencer a um país de alegria
para que dezembro não seja hipocrisia
mas o que tiver que ser, chuva e vento
gelo e neve pelas ruas desertas,
mas não frio agreste a habitar
o desamparado coração dos homens.
Não esperes por dezembro
dezembro pode ser longe
dezembro pode ser tarde
dezembro, dizem, só é longe
para quem tarda o coração.





Alex
(José Cunha)
dez/08

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

EL ÁNGEL AVARO

Gentes de las esquinas
de pueblos y naciones que no están en el mapa
comentaban.
—Ese hombre está muerto
y no lo sabe.
Quiere asaltar la banca,
robar nubes, estrellas, cometas de oro,
comprar lo más difícil:
el cielo:
Y ese hombre está muerto.
Temblores subterráneos le sacuden la frente.
Tumbos de tierra desprendida,
ecos desvariados,
sones confusos de piquetas y azadas,
los oídos.
Los ojos, luces de acetileno,
húmedas, áureas galerías.
El corazón,
explosiones de piedras, júbilos, dinamita.
Sueña con las minas.



Praia, Natal & Naomi de presente



Ouso sair-te pelas ruas e vejo as pessoas na ferocidade das compras. Penso na bomba termo-nuclear dos versos de Arménio Vieira, poeta que joga xadrês no antigo Flor de Liz. Sou suspeito quando falo da Praia de Santa Maria, que a quero com amor uterino. Que lhe quero pessoanamente como "o rio que passa pela minha aldeia". E, repetindo à exaustão desejo-lhe "maior que o Tejo". Mas a cidade está feia e desfeita. Um Natal a cair aos pedaços e umas lojas chinesas a facturarem algum. Os ambulantes foram acontonados no largo dos rabidantes, mas o Plateau continua asfaltadamente absurdo: com menos árvores, com os mesmos lixos e, nesse reverso, os mesmos luxos. Este Plateau asfixiante, mas viciante que só! Habito-lhe todos os recônditos. Preencho-lhe os buracos todos. Acaricio-lhe a face, faço-lhe poemas, metaforizo-lhe realidades de pura pedra (vou ao ponto de amar suas ruas sem sentido). Às vezes, canto-lhe a partida, ou dela quero ser uma nau enlouquecida. Incendeio-lhe seus pequenos deuses. E, no começo das noites, esqueço-lhe as mágoas. Outras vezes, odeio-lhe o tempo monocórdico, o Cronos que devora seus filhos e limpa os beiços com guardanapos de cetim, o relógio que nos é interior neste lugar. Odeio-lhe o tempo e o vento, e onde pára este e quando acaba aquele. Tudo isso porque é Natal. Faz Natal na minha alma. E na tua , cidade. Querias Naomi Campbel de presente? Estás-te a rir, que eu te conheço. PRAIA. Por favor, não partas, deixa-te estar ao meu lado.

domingo, 21 de dezembro de 2008


Nu couché jouant avec un chat
Pablo Picasso

sábado, 20 de dezembro de 2008

Querubim ou lago sem cisnes



Faz frio. Ou venta apenas. Agora deu de ventar, Poeta. Não tenho paciência para as canções de Pedro Abrunhosa, mas guardo dele, como se fosse um talismã, aqueles versos que (me) dizem: Quero que saibas/Que sem ti não há lua,/Nem as árvores crescem,/Ou as mãos amanhecem/Entre as sombras da rua. Armando a Árvore, comprando as prendas, indo aos jantares profissionais e fazendo os cartões de Natal, tudo isso me desnorteia um bocado. Se calhar, isso me intertextualize (mas isto existe?) a cantarolar, quando o meu quarto amanhece, Vou ficar mais despido/Que um corpo vencido,/Perdido em desejo. Em tempos de Natal - e estou com Abraão Vicente quando suspira É Natal, fodas! -, estou mais triste, mais inho e mais "menino de sua mãe". Tempo que me enevoa, de uma neblina que me desce da montanha, como essa paisagem transalpina que desagua em Itália, e se acanha cá dentro, friorento, tictac de relógio sem cuco, baque de coração que verseja, em vate de Mário Fonseca, o Morrer Devagar. Sei de um amigo recém-falecido. Desancou-se de um oitavo andar e estatelou-se, exangue, no trottoir parisiense. Balbuciante, devo-lhe os poemas de Rui Reininho, em "líricas come on & anas", pedaços do vate, diga-se, A pena pequena é pena de morte/Que pena este grito não chegar a Marte. Quereria ele ver a baía da Gamboa, o arco de raro recife da Praia de Santa Maria, antes de partir desta? Ficarei sempre nesta dúvida atroz e incessante. Será que neva? Ou sou eu apenas? Sem ti, Poeta, não há lua...

ode doméstica

tudo no teu sorriso diz
que só te falta um pretexto
para seres feliz

uma querela talvez chegasse
ou um pequeno pastor que passasse
na estrada, com suas ovelhas

um riso, um pormenor
que no momento se pousasse
e o tornasse melhor

eu
vou pensando em coisas velhas
- sem sombra de desdém! -
na vida
naquele lampejo fugace
que o teu sorriso já não tem

e que é do passado
porque a nossa grande sabedoria
não soube tratar ente tão delicado

e declina, o dia

o pequeno pastor já não vem


(Mário Cesariny, manual de prestidigitação, Assírio & Alvim)

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Sapatear


Horn 2
Fumio Yamazaki
O sapato de Muntadar al-Zaidi continua a ser a grande estrela de 2008. Que Obama nos perdoe, mas certo sapato é fundamental. Merece capa da revista Time. Ou dessa revista, parte integrante do jornal A Semana, que não pode ser vendida separadamente. Uhau...sapato! Vote-se a lista dos parvinhos, com deuses locais à mistura, mas the price goes to...sapato. E al-Zaidi, tornando-se griffe, passará a ser marca de perfume, carteira, caneta, colar e charruto. De tanga, fio dental, imaginem. Artigo de boutique de moda e de Duty Free Shop. Alá pode ser grande, mas sapato cotado na bolsa é outra loiça. António Alçada Baptista foi a grande perda de 2008. E o maior mentiroso do ano é cabo-verdiano e político local. Não digo o nome do mentecapto. A maralha quer que eu seja apenas Poeta. Tapoé, companheiros. Poeta dos Pés Descalços: Petit Pays, je t´aime beaucoup, tralalá, tralalá. Só me faltava agora interiorizar essa merda de Morabeza. Fui...

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Com K & Batina


K & Batina
(Revista Fragmentos)
Mito

Luas de cada noite



Cabo-verdiano: uma questão de futuro

A língua cabo-verdiana, ainda chamada Crioulo de Cabo Verde, entra no “pole position” da sua oficialização. Tudo indicará que os nossos deputados conseguirão o consenso necessário para que o Artigo 9º da Constituição Nacional seja reescrito em termos de instituir “as línguas oficiais da República de Cabo Verde são o Cabo-verdiano e o Português”. Bilinguismo assumido. Soberania assumida. ALUPEC? Ou tão-somente, o alfabeto cabo-verdiano que, como o da língua portuguesa, se submeterá aos ajustes regionais e temporais. Estaremos, neste tempo histórico, a fazer a grande descolonização psíquica e cultural de que falava Darcy Ribeiro, o antropólogo brasileiro. É que, mais do que passado, o Cabo-verdiano é uma questão de futuro…

Amplexos da língua

As realidades linguísticas são complexas. É Natal, com o seu frufru, mas a coisa é mesmo complicada. Só de pensar que em cada 10 lusófonos, 9 são brasileiros, universo da língua no qual 0,22 cabo-verdiano e, mesmo este, mais lusógrafo que lusófono e, acima de tudo (quando ri e chora, odeia, ama ou mama), crioulófono. Curto e grosso, companheiro: será que somos realmente bilingues, porra? Eu acho que sim. Pessoalmente, as línguas de Camões e João Cabral de Melo Neto, e as de Pedro Cardoso e de Felisberto Vieira Lopes são minhas. Mas, às vezes neste destro, fico sinistro com a anarquia das vírgulas e companhia. Todos os santos dias (bem como os dias pagãos), acompanho a vianda dessa flor do lácio, tanto na escrita como na fala, dos nossos professores, deputados, funcionários e bloguistas (blogueiros também) em naipes repletas de “sapatadas”, das que mandam a ortografia, a pontuação, a sintaxe, o vocabulário, todo esse desassombro vocálico e verbal, tudo, tudinho - el amplejo todo al carajo, como diria o bolivarista Hugo Chávez.

Estatuto Administrativo Especial

Está ali na Constituição Nacional, mas nunca foi aplicado em virtude do laxismo, do desleixo e da irresponsabilidade do pessoal. A capital tem os seus custos e os seus fardos que não devem ser onerados apenas aos munícipes da Praia, mas a todos os cidadãos da República. Não apenas porque a “cidade de todos nós” alberga mais de ¼ dos residentes no Arquipélago, numa ilha que totaliza 53% do mapa demográfico de Cabo Verde, mas porque, numa convergência natural e que não se quer macrocéfala, acumula o grande potencial do (sub) desenvolvimento do País. Quais os argumentos fortes para a revisão constitucional nesta matéria? Sejamos coerentes. A Praia, não sendo dos praienses, nem dos praianos, mas de todos os cabo-verdianos, na sua dimensão capitalina, deverá ser assumida em toda a causa e consequência. Ou não será assim? Mesmo algum pessoal que costuma ser mais antenado, acertando sempre na medra e no bingo das ideias, no referente a este assunto anda a obrar fora do penico. Nem toda a escuridão é culpa da Electra, convenhamos. Há muito blackout mental por aí. Túnel…
Crise
A crise do neoliberalismo, que se deve a um verdadeiro assalto à mão armada para dentro do sistema, não significa desmercantelização. O capitalismo vai continuar sob novas máscaras e novos arreais para a dança dos vampiros e com esta mesma essência que reduz valor à mercadoria. É Natal, o dólar levando na peida, Bush esquivando sapato, o nascimento do Menino Jesus, coisa e tal, frufruzada pelas lojas chinesas do Plateau e, sejas tu a minha borboleta (de flor em flor venenosa), não será hora de gritar abaixo a riqueza não socializada!, que, neste turbilhão tomada de pequena burguesia burra, no bacanal dos deuses locais e eu lendo Tristes Trópicos, vivam, por isso, as luas de cada noite, arre...

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Outras sapatadas

1. Escreve Ludgero Correia:
(...) Vou querer para o Nhelas, para o Nhoné, e para o resto da malta, que a Constituição política da República de Cabo Verde apareça revista nos moldes seguintes, conforme os artigos abaixo:
1. Artigo 10º: que a Capital da República passe a ser a Cidade do Mindelo, na ilha de Sanvicente e que, em decorrência da nova função, passe a ter um estatuto político-administrativo especial, nos termos da lei;
2. Artigo 42º: que se possa invadir o domicílio de qualquer cidadão, a qualquer hora da noite ou do dia, sem mandato judicial. Excepção feita aos políticos profissionais, familiares e amásias; empresários que financiem os partidos; e traficantes;
3. Artigo 43º: fica permitido aos superiores hierárquicos, de qualquer nível, invadir as caixas de correio electrónico de seus subordinados, sempre que suspeitem que este não os tenha em grande conta...Leia mais no Blog http://ludgerocv.blogspot.com
2. Escreveu também Eileen Barbosa:
(...) Confesso que vingança é o que me ocorre primeiro à cabeça. Não essa do meu amigo que disse que pagaria uns tipos para lhes dar uns tiros. Nada disso. Eu pensei foi em tortura.Há que haver penas muito, muito pesadas para crimes como estes. Se só a razão não impede estes bandidos de actuar, então o medo de represálias devia fazer esse papel. Represálias que se sintam na pele, e não apenas ir comer de graça à custa no meu dinheiro, do teu dinheiro, e pior, do dinheiro da vítima... Mais sobre isso no http://www.soncent.blogspot.com/

Son of a shoe!!!


No SatisFashion

I Can't Get No SatisFashion
Mito






"O génio é um erro do sistema"
Paul Klee



Email para Crisô (I)

(...) As pessoas desenvolvem as suas capacidades de competência e criatividade se os factores endógenos e exógenos forem propícios. O Movimento Claridoso, por exemplo, não nasceu por geração espontânea. Nem foi algo tão isolado, só da idiossincrasia crioula. Ao contrário, foi um movimento histórico, contextual e transcultural da época. E do lugar. Não se pode pensar Claridade sem o Regionalismo Brasileiro, o Modernismo Português, o Pan-Africanismo, a Guerra Mundial e as Fomes nas Ilhas, entre suas várias outras influências. A intertextualidade do contexto histórico e conjuntural é o elemento afirmador de qualquer grande movimento cultural (...)


Email para Crisô (II)

(...) Sopinha do Alfabeto foi sim uma proposta inovadora. Estruturalmente diferente. Ao tempo, representava uma ousadia. Mito, além de artista plástico, apresentava-nos um discurso poético com logotopia, eivado de "semântica gráfica", não se lhe podendo chamar de concretista. Na altura, isso me encantara (...)


Email para Crisô (III)

(...) O levantamento crítico da produção cultural do Movimento Pró Cultura está por ser feito. O enorme papel de José Luis Hopffer Almada. Os anos 80 não eram fáceis. Eram tempos obtusos, esdruxulos, de Partido-Estado. Creio que até esta os estudiosos e os críticos não se evoluiram diante do susto apocalíptico do acontecido (...)

Email para Crisô (IV)
(...) Mando-te I Can't Get No SatisFashion, de Mito. E desejo-te um Feliz Natal...em contexto de crise (...)

Tiananmen # 1






Pela televisão, víamos ao longe a êxtase dos carros blindados. Não serias daquelas a crepitar pelas borbulhas de um champanhe. Nem entregavas a alma porque, na bandeja de prata, se te ofereciam caviar, queijos e morangos. Preferias estar, assim nua nesse quarto, a discorrer sobre os signos de Pablo Neruda e de Herberto Helder. E declamavas, só para me convencer, os versos de Helder: Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,/casa de madeira do planalto,/rios imaginados,/espadas, danças, superstições, cânticos, coisas/maravilhosas da noite.//Ó meu amor,/em cada espasmo eu morrerei contigo. A êxtase dos carros blindados, dizia-te. Naturalmente que eu poderia escrever sobre os nossos momentos. Mas não. Viste uma borboleta na China e pensaste em mim. Fiquei emocionado quando mo disseste. Uma borboleta de todas as cores na Praça Tiananmen. Sei que também pensaste ser eu o "Rebelde Anónimo" de 4 de Junho de 1989. E nada te direi sobre isso, senão estes versos de Helberto Helder: Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo eu morrerei contigo...


segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Luar


"Uma vez que é feito só para ser visto / Se a gente não vê, não há"
A Gente Precisa Ver o Luar
Gilberto Gil

Dono da bota

Gostaria de saber o nome do jornalista iraquiano que atirou a bota contra o Presidente George Bush (felizmente, cessante), durante a viagem de despedida que este fez ao Iraque. O dono da bota merece o nosso post. Primeiro, pelo simbolismo do seu acto. Segundo, pela dignidade da sua atitude. E depois, pela ternura das suas palavras: “É o beijo de despedida”…

Português com kapa e tudo

O livro "Escrevendo Pela Nova Ortografia" , de António Houaiss e de José Carlos Santos de Azeredo, ensina-nos a escrever pelos cânones do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. A obra esclarece sobre as principais dúvidas no tocante à acentuação, trema, hífenes, usos do "h" e do “c”, grafia de nomes próprios estrangeiros, entre outras coisas. Com este acordo, o alfabeto passa a ter 26 letras, com a inclusão de "k", "y" e "w". “K”? Para os reticentes do ALUPEK, introduzir o kapa na língua portuguesa também será kafkiano? A ver vamos…

Bocas

Faço uma tão rápida quão diagonal leitura pelos Blogs. Os "alupekadores" têm cabeças a prémio! É preciso qualificar a própria crítica. Apontar o erro, o mal e o desvio, se os há, de uma perspectiva coerente e consistente. Falar por falar é puro acto de masturbação. O antikapismo puro parece materialismo histérico. Não que eu seja contra, pois cada um é livre para acabar de vez com o seu universo (inclusive linguístico) e para fazer, aqui e agora, o seu fim da história. Mas assim é fruto sem suco. É muita treta. Com ou sem kapa, não vale a pena deslocarmos as questões para a periferia dos argumentos.

Kriolu

Uma língua é como a lua. A gente precisa ver o luar

INCONGRUÊNCIAS

(POEMA DE ERASMO CABRAL D’ALMADA)

I
as palavras fecham-se
numa cápsula cinzenta
sobre a cabeça de scharansky

e contudo
o ar que expira txibita
não tem química particular nenhuma
e é incolor e dolorido

por isso
txibita deixou
de aspirar a brisa da beira-mar,
o seu azul rumoroso

por isso
txibita deixou
de respirar as palavras dos outros
e os seus alaridos
entre as flores da praça grande

por isso
txibita deixou
de conversar com o alcatrão das ruas
de conspirar com a esquizofrenia da cidade
de cativar-se com a intimidade do fedor circundante
de apiedar-se dos gestos compassivos das pessoas honradas
de envaidecer-se com os risos trocistas das beatas e dos passantes
de deslumbrar-se com os olhares circunspectos dos circunstantes


por isso
txibita deixou
de inspirar quaisquer noites
de serenatas de musas ao luar
ou de revoltas de mendigos

por isso
txibita mais não faz
do que afagar deleitado os cabelos crespos
do seu crânio e do seu turbilhão de ideias
de acariciar o seu corpo
sem fronteiras sem limites
sem margens sem dimensões

por isso
txibita mais não faz
do que suster-se
na trôpega dimensão
da miséria

e txibita
é apátrida na sua pátria c.v.

II

o amor enclausura-se
num tempo exausto
em torno de scharansky e avital
e dos seus lábios lacrados
com nove anos de espera e de esperança

e txibita
com a sua vívida ternura
com a sua lívida carícia
nem sabe das pontes
que podem estender-se
entre a agonia e o abraço
de kiev a tel-aviv

e txibita
com os seus alvoroçados gestos
com os seus precários monólogos
nem sabe das labaredas
que se ateiam
do gulague ao colonato

e txibita
com a sua diária e introspectiva estupefacção
nem sabe das vozes dissidentes
que se extenuam em incendiários clamores
de aguerridos inventores de povos eleitos
e devastam o silêncio as oliveiras as almas
as profecias inúmeras e férteis de terra prometida
e conspurcam o mel e o leite
da terra santa e do seu mar morto
e das águas exíguas do chão dividido
das pátrias ensanguentadas da palestina
alimentadas a holocausto nakba e jihad
endurecidas pela intifada dos corpos
interpeladas pela incandescência dos corações
na busca do afago materno dos lares antiquíssimos
inscritos nas pedras sagradas
do muro das lamentações
da esplanada das mesquitas
e das suas memórias indeléveis assassinas…

Lisboa, 2003/Agosto e Setembro de 2008

(versão reformulada do poema com o mesmo título constante do volume I de À Sombra do Sol, Praia, 1990)

MargosaMente



Rua Nho Mozart
(Bairro da Fazenda, Praia)
Mito



1.


Prometi (e promessa sendo dívida) a João Branco uma crónica sobre o Café Margoso, Blog que é menino dos anos por estes dias. Em verdade, apanhado pela síndrome da página branca (digo do Word 2007 branco), fui pensando, com as dores da insónia, no começo de tal crónica. Diga-se que o café, adocicado ou amargo, margoso para me “aggiornar” mais, literalmente me tira sono, mas nem por isso me torna mais excitado. De modo que, nesse branco que me deu, fui esboçando frases triviais e pensamentos fúteis, na certeza de que a eternidade, como diria Valentinous Velhinho, não passa à soleira da nossa porta

2.


Tentei, numa “das desaforadas”, escrever em defesa da Economia da Cultura, da Oficialização da Língua Crioula, da ancestralidade (ao tempo escravocrata) da Nação Cabo-verdiana e da (assumida e consequente) Regionalização do País, bem como da redefinição (diria até radicalização) da Política Ambiental. Vendo que a minha vara curta não enervava as novas feras, me aquiesci diante da inutilidade das opiniões valentes. Já nem os cristãos acreditam que a fé de um grão de areia irá mover montanhas, quanto mais este agnóstico, para não dizer ateu graças a Deus, que fui sendo nestes 40 e tal anos. Céptico, o Albatroz não escreveu assaz desaforos para desassossegar os nossos deuses de esquina…

3.


Teimosa e recorrentemente, esbocei uns rabiscos gráficos e inventei-os, feiosos quê bê, pós-modernos, Dada e conceptualistas, tudo para a efeméride, mas, lembrando do que recomendava um paredão em São Paulo – “Não piche este grafite!” -, amachuquei meu Basquiat e joguei-o no caixote do lixo. Porra, és poeta e tua deriva pela plástica parece uma tragicomédia. Da Vinci era polivalente e paneleiro, mas génios dessa verve só de raro em raro ressurgem e, me perdoem os Claridosos e os caridosos, não me parece que tais duendes revisitem as nossas ilhas pdm. Descrente? Nem flaça, ó João. Apenas acordado. E, já agora, lúcido…

4.


Música, hélas. Todos os cabo-verdianos são músicos, ora. Inclusive a malta do zouk-love, não te rias. Desde que li a obra magistral de Mário Fonseca, Mon Pays Est Une Musique, ficou claro no meu espírito que Mozart foi crioulo. Antes do tempo e do lugar. Eugénio Tavares pode até ser galego, mas Mozart, o Wolfie, é pó di terra. E Horace Silver é americano, tanto que ninguém o condecora, mas Amadeus é cá do bairro, saiba-se. Por isso, ritmo e melodia, letra ainda por riba, compus uma sinfonia para o Café Margoso. Procuro-a agora para mandar a JB, mas nada, rien de rien, acordado do sonho, a minha partitura onírica desapareceu. Seria por causa da valente e acertada entrevista de Hernani? Quiet magic, brother

5.


Ensaiei mandar uns comentários para a Blogsfera Crioula (essa nova Diáspora Cabo-verdiana), mas, com o ego deste tamanho, não consigo ser anónimo. Anonimato passou a ser a suprema condição da liberdade de expressão do pessoalzinho, pois que mascarados nos atrevemos a peidar na catedral, sem riscos de pecar. Inferno é fogo, companheiro. Gulag, pior ainda. Mascarados nos agigantamos como os novos adamastores e instauramos o terrorismo das nossas razões e dos nossos anátemas. Comentários, definitivamente, amofinam aos que não se alinham no “Carnaval dos napoleões retintos”, que nem o samba de Chico Buarque. Et pour cause, também não mandei os comentários pensados…

6.


Entre Outono e Inverno, pelos aeroportos, hotéis e reuniões (sobretudo, intermináveis reuniões que a profissão ainda obriga), fui engendrando algo sobre a crónica prometida. Fazia ou não as loas merecidas ao Mindelact e ao activismo teatral do CCPM? Recordava ou não que João Branco, mais que ninguém, declama com entoação (e rara emoção) os meus despretensiosos versos? Assumia ou não que sou visitante diário do Café Margoso, às vezes, para aplaudir, outras vezes, para vaiar? Rematava ou não que, aos amigos, não temos de ser complacentes, manteigueiros e filhos da mãe, prevalecendo nessa vela da amizade a chama incandescente da sinceridade?

7.


E como Sete é dos Cabalísticos. E como os pecados, se não mortais, não merecem estar na Bíblia, confesso que, perante tamanho dilema, não consegui me acertar na crónica prometida, devida para ser mais exacto. Não valerá a pena discorrer mais, pois overdose de masturbação tem os seus males, nem terei de fazer, como já se usa pela net, mais adição que redunde em zero. Direi que também, invadindo a área de JB, tentara uma peça de teatro, súmula miudinha do Das Frutas Serenadas, em cujo hiper e inter texto havia a rábola fabulosa das circum-navegações de Plotlomeu (eia, Tchalé Figueira!). JB, ao entabular as cenas de Plotlomeu pelo porto de Odessa, já ia sendo linchado no palco do Mindel Hotel. Artista sooooooofre…e não se fala mais nesse margoso!

sábado, 13 de dezembro de 2008

Escrever de pulso aberto

Será de tudo como um suicídio escrever de pulso aberto.
Sanguinolento, mandando rosas à vida, as letras,
as sílabas, o frenesim dos olhares, o inventário dos verbos,
o próprio começo de tudo. És tu…

Da música que tua retina guarda
no vagar do trânsito ou na pressa da cidade, no simples frio
que intervala o corpo do espírito; do silêncio que te crepita
como o silício que se estala no aglomerado, os suores
das noites arfantes, as viagens que nem nuvens,
com as estrelas a nada serem. Tão sem cotovias…

(O que são teus esteios, teus filamentos de lembrar em feições que, do espelho,
se desvanecem. Esta voragem, frutos à mercê dos seios. Porventura sejas tu, mesmo
sem feições, o fogo que tosta o pão das coisas que sinto)...

Ao fim de tudo (trazendo um verso roto), hás de dizer loas
das esteiras; poesia de pedra que és tu, o sol a pôr-se
nos teus olhos onde pousam, ainda, tais metáforas.



Li Cores & Ad Vinhos
Filinto Elísio

Rinocerontes


Penelope Cruz

Vicky Cristina Barcelona (Woody Allen)



1.


Tenho por mim que vivemos tempos históricos. Estamos a ajustar o ALUPEC e, depois de tanto silêncio esquivo, estamos a admitir a oficialização do crioulo. Do Cabo-verdiano, como disse (e bem) Schofield. O pessoal do Pró Praia lida agora com teses novas: retirar da Constituição a figura de Estatuto Administrativo Especial para a cidade da Praia. Pode? Tanto os que o defendem, como os que o questionam, não trazem argumentos fortes. Queremos que, sem crise, mas com crítica, tudo seja reflectido na praça pública. Na praça virtual, pelo menos. Tempos históricos, pois, mal ou bem, começam a emergir novas sociabilidades de pensamento e de acção nos campos da Estética e da Ética, do Pathos e do Ethos


2.


Tudo é relativo. Einstein e Sartre, se cruzados, dariam o suco de tudo ser relativamente existencialista. Mas há coisas piores que outras. Pior que uma pedra no sapato só um grão de areia no preservativo, já dizia o outro. Estarmos com menos 10% de pobres é sempre menos mau que há seis anos. Não será para dar foguetes e alvíssaras, pois há uma multidão a lidar com a pobreza franciscana. Pedra a pedra, este País vai desacelerando os espectros da escravatura, da fome e do êxodo, e se afirmará no ideário dos versos de Mário Fonseca – Quando a vida nascer -, atrevimento de almejar o infinito…


3.


Romântico? Ledo engano. Estou farto das bestas-quadradas, da maioria silenciosa e da Morabeza. Dos betinhos acéfalos. Dos rinocerontes kafkianos. Naturalmente que entendo que há mudanças que se fazem de forma incrementada e que o tempo não tem de ser encarado com ansiedade. Há que evitar ejaculação precoce com a História. Ademais, camião cheio, sobretudo de carga inflamável, não faz tanto ruído. É preciso que impludamos contra o instituto do feio, do grotesco e do óbvio. Toda e re-evolução germina de um ovo que se subverte…a seu tempo.
Nota: Agradeço a M.J.M., do Blog http://teatro-anatomico.blogspot.com/, a "mudança" da fotografia. Mande sempre...

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Artigo 9º


Camouflage
Andy Warhol


Tal como outrora foi necessária a queda do Artigo 4º da antiga Constituição, torna-se hoje imperioso retocar o Artigo 9º da actual Constituição, a que ainda reza:




1. É língua oficial o Português.




2. O Estado promove as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa.




3. Todos os cidadãos nacionais têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direitos de usá-las.




Este Artigo 9º poderia ser com parágrafo único e mais "aggiornato": São línguas oficiais o Português e o Cabo-verdiano.

Kriolo

Kriolo
Mito


Singularidades de uma Rapariga Loira

O cineasta português Manoel de Oliveira, a cumprir hoje 100 anos, é um elogio à Arte e à Vida. Em verdade, a relação entre esta e aquela é tão simbiótica e fisiológica que se torna difícil, se não mesmo impossível, delas fazer destrinça. Manoel de Oliveira prova que a Vida é uma Arte e vice-versa. "Se me perguntarem porque faço cinema,/Logo penso: não perguntam antes se respiro?", respondera ao Jornal Libération, quesito que era "Porque filma?". Sabedoria do cineasta mais velho (e mais eclético) do mundo...

Alupec
Começa hoje, na cidade da Praia, a Mesa-Redonda sobre o Alupec (Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-verdiano), projecto experimental aprovado pela Resolução nº 67/98, de 31 de Dezembro, mas até esta na indecisão sobre sua massificação e aplicação por parte das autoridades. A Administração e o Ensino, salvando actuações pontuais, diria até acidentais, não fizeram o suficiente para tematizar, debater e socializar a introdução do Alupec para que, a estas alturas, fosse o elemento dorsal para a mais que premente Oficialização da Língua Cabo-verdiana. No referente a este particular, submetido ainda a falsas questões e as fabricadas pelos "desviados" da autonomização cultural, exorta-se aos deputados da Assembleia Nacional a encararem a Ofilialização do Bilinguismo Cabo-verdiano como a maior e a mais estruturante "questão constitucional". É o que me soe dizer no 10º aniversário da aprovação do Alupec...
Kriolo
Este álbum “Crioulo” com que Antero Simas prestigia a nossa condição de amantes da música cabo-verdiana, é, de primeiro, o apreender de uma realidade multidimensional que nos é caldeada e plasmada – a Caboverdianidade, corte que se emerge na fímbria desta nossa crioulidade intrínseca. Em verdade, este álbum (de vinte faixas musicais ecléticas) reafirma que a Caboverdianidade não nos é acessível sem uma visão ancestral, interior e artística. Nós nos declaramos Crioulos! Depois da escravatura, da fome e das vicissitudes de um passado histórico, paradoxalmente fundacional, impende sobre nós o repto de mergulharmos na nossa singularidade, investirmos nela de maneira projectiva e aprofundar o que somos – connosco e com os outros, em nós e no mundo. Em segundo, este álbum nos revela a multiplicidade de claves e chaves, ritmos e melodias – um verdadeiro agregado interacional ou transacional dos elementos musicais que o jugo da história reuniu sobre o palcos das ilhas de Cabo Verde. Também na música (e Antero Simas o atesta), Cabo Verde é forja de uma humanidade nova, onde formas de ser e de estar, bem como todas as faces do mundo, encontram-se no terreiro da reinvenção da vida. A morna, a coladeira, o funaná, o batuque e outros sons transplantados, mas reapropriados em mestiçagem, perfazem a formidável mirabilis para a dança (de perfeitíssima Doce Guerra) entre Caliban e Próspero.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

SALVADOR DA BAÍA — VISTA AÉREA




(Esboço de um poema a vir)


E vi um soluçante rio buscando o mar

— prodigioso mundo onde um homem

pudesse descansar por sobre as suas

intermináveis atribulações — e alimárias

ruminando na tarde de verde e calma.


E fui então altivo escravo na eira do pelourinho,

mercadejado para engenhos e cobrições,

e forro nos terreiros enlouquecidos

já a cidade se acendia em seu rumor de febre&farra.


E, como numa tela de Caribé,

baianas de rotundo porte também vi

em requebros que enlanguesciam tanto

o sol-pôr, e longe adivinhei o olor

de sonhadas áfricas no mercado que não vi

quando a rouca vibração

das turbinas era já música que me dessem

na tarde com deliberação de cinzas.


E fui assim aéreo sofrível cronista

de um morno dezembro arroteado à mão da bruma,

baixando desde um vago céu azul estreme

por sobre campos avenidas, e arrabaldes de fumo

denso tão para sempre escutados na voz desse

negro cantor, adorador das antigas divindades.



José Luis Tavares

Salvador da Baía, 9 de Dezembro de 2008

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Mis libros


Mis libros (que no saben que yo existo)
son tan parte de mí como este rostro
de sienes grises y de grises ojos
que vanamente busco en los cristales
y que recorro con la mano cóncava.
No sin alguna lógica amargura
pienso que las palabras esenciales
que me expresan están en esas hojas
que no saben quién soy, no en las que he escrito.
Mejor así. Las voces de los muertos
me dirán para siempre.
Jorge Luis Borges

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

GIVE PEACE A CHANCE

Sopinha do Alfabeto, 1986
Mito

AO MITO...(de) clamando-o

aquela do coveiro boa gente que a Deus pede mais morte
e o recurso de mais pão
aquela do artista travestido de absurdo
e subversivo mefisto das horas substantivas
aquela da mulher náufraga e sem rumo
que como as ondas do mar vem dar às nossas praias íntimas
aquela que nos abre a flor e nos fecunda a alma
aquela do cão vadio que ninguém dá a mínima
mas que o menino triste acompanha e quer adoptar
aquela da estrela cadente na qual "o da passiva"
viaja na ponta do charro
aquela da "luamito" da metalinguagem futurista
aquela da boca do lixo engolindo os nossos titãs
aquela do sol com vergonha de aquecer corações
aquela do coveiro boa gente e etc
aquela cena da vida para ser vivida...


Filinto Elísio
Sopinha do Alfabeto, 1986

Terra pia com música

Auto-Retrato na Fronteira do México
Frida Khalo



Wake-up call

Acordar tem de ser com música. Cama revolta, óculos caídos e o livro de Cesário Verde, aberto a estes versos: Nas nossas ruas, ao anoitecer,/Há tal soturnidade, há tal melancolia,/Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia/Despertam-me um desejo absurdo de sofrer...Penso que o período natalício se presta a melancolias. Quando me fragilizo (no mais íntimo da alma), a música é a minha única terapia.


Petite Sirene

Enquanto faço a barba, vou cantando com Francis Cabrel: Pleure pas petite sirène,la ville dort encore. Ton histoire commence à peine. Pleure pas petite sirène,le jour attend dehors, dans les brumes des fontaines.

I Shall Not Walk Alone

Hoje, tenho duas reuniões, uma crónica para o jornal A Nação, as provas para mandar ao editor e pareceres sobre um projecto. Gostas de Ben Harper? Hope is alive while we're apart. Only tears speak for my heart. Break the chains that hold us downand we shall be forever bound.

C'est Ecrit

Tudo está escrito. Não sou determinista, mas levo a sério o existencialismo sartreano. A propósito, José Cunha encontra-se de novo na cidade da Praia. Assim como Dulce Almada. Há gente, de si, enriquecedora. De novo, Cabrel: Mais y a pas d'amours sans histoires. Oh tu rêves, tu rêves... Elle n'en sort plus de ta mémoire.Elle danse derrière les brouillards. Et moi j'ai vécu la même histoire Depuis je compte les jours...Músicas para ensolarar o dia!

Bilinguismo

O linguísta francês Nicolas Quint, numa entrevista ao jornal A Semana, disse o seguinte: Uma língua que não se ensina de todas as formas está condenada no mundo de hoje. Os cabo-verdianos devem aproveitar as duas línguas que fazem parte do seu património cultural. Acho que não há nenhum impedimento de se optar a aprendizagem paralela das duas línguas. Um ensino bem construído e bem programado do crioulo ajudaria a tornar as crianças e o resto da população conscientes de que estão a lidar com duas línguas diferentes e provavelmente ajudaria muita gente a falar melhor o português pois teriam uma base sólida para depois se abrirem para outras línguas. Opinião interessante, abalizada e imperiosa. É agora ou nunca, companheiros...

COUNTDOWN TO BASIE'S BLUES


1, 2, 3,...1, 2, 3, 4, olho para o cuco e fico à espera que o maestro, de batuta em riste, encontre o atalho certo para One O'clock jump.
Mito

domingo, 7 de dezembro de 2008

Arquipélago

Dez lágrimas,
únicas,
transbordam.
As demais
Cabem nos mapas.


Maria Helena Sato

sábado, 6 de dezembro de 2008

Figurinos



Estudos Cabo-verdianos


Recebo um email de José Luís Hopffer Almada, que regala este Blog com um lindo poema (ver post anterior) e diz ter tido boa nova sobre o Seminário CONTRAVENTO, PEDRA-A-PEDRA , ocorrido na cidade de São Paulo. O evento foi 5 estrelasEm verdade, ressenti a ausência de José Luís Hopffer Almada, de Jorge Carlos Fonseca, de Manuel Veiga, de Pires Laranjeira, de António Correia e Silva, de Jorge Tolentino, de Leão Lopes, de Elsa Rodrigues, de Luís Silva, de José Cunha e de José Luís Tavares, entre tantos outros dedicados à problemática. Faltava-nos ainda, no amanho existencial dos nossos quereres, a presença saudosa de Michel Laban...



A César o que é de César


Ninguém tem feito o que Simone Caputo Gomes vem fazendo pelos Estudos Cabo-verdianos. Não só na Universidade de São Paulo (USP), mas em todo o Brasil e (porque não o dizer) em todo o Mundo. Naturalmente que estudar Cabo Verde e, sobretudo, a Caboverdianidade, remonta a tempos mais recuados e a espaços geográficos outros. Mas a sistematicidade académica e epistimológica de tais estudos devemo-la, sim, a Caputo Gomes. Sem excluir alguns outros que, isolada ou associadamente, têm estado na coisa e na causa da Cultura de Cabo Verde - certos, como eu, de maneira não escolástica, nem ortodoxa -, creio ser de aproveitar o momento para se atribuir a César o que lhe é devido...



Email à Simone


(...) Queria saudar e felicitar você, minha amiga, pela excelência e pela importância do evento de São Paulo que alargará o horizonte dos Estudos Cabo-verdianos, não apenas no foro académico, mas no debate at-large para a reinvenção permanente da Caboverdianidade. Pessoalmente, gostei do que vi e ouvi, tendo aprendido muito. Interessante terá sido também o convívio em São Paulo, permitindo-nos, a todos, repactuar as nossas emoções, afectos e posições. Espero continuar a fazer parte dessa rede que (ainda bem) se aponta plural e arco-irisada (...)



2009


Já se aponta para as próximas semanas. O Ano Novo está mesmo por estes dias. Este Blog, que se endurece, com ternura, conforme o vaticínio (sempre válido) de Che Guevara, não fará o elenco dos melhores e dos piores de 2008. O tempo é o grande reconfigurador de tudo (e de todos), inclusive (destes) no espaço. Não fosse Cronos devorador dos seus filhos, meus confrades. Tenho resoluções (ou, quiçá, apenas desejos), umas públicas, outras íntimas. Das públicas: a oficialização da língua cabo-verdiana, a parceria especial com Angola e com o Brasil, a criação de um movimento político Verde, os Objectivos do Milénio e o primado da Cultura. Outras Claridades. Novas luzes que se emergem das sombras. Subversões mais radicalizadas e mais saudáveis, tão éticas quão estéticas. Bizarro? Não me façam rir. E das íntimas...estas nem vos conto. Desconto-as...

TERRA-LONGE/DIÁSPORAS

(POEMA DE NZÉ DI SANT´Y ÁGU)


in memoriam do meu tio Mano Lópi,
do meu irmão Rui e do meu sobrinho Guey
ao meu filho Z'Hay
aos manos Mariazinha e Benny
aos amigos Turíbio, Cipriano, Markito e Xeu



Lembras-te, Nando
do desabrido chiar
das varetas de verga
nos arcos de ferro dos meninos
da vertigem ébria
dos pneus dos rolamentos
das trotinetes das motorizadas
feitas de restos de madeira
e de outros desperdícios
das noites longas de Assomada?

Lembras-te, Ima
dos carrinhos de arame
carregados das ervas dos frutos
dos tempos das chuvas
seguindo sinuosos
pelos trilhos de lama
pelos atalhos da vila
pelas caminhos da ilha
pelas estradas do sonho
até desembocarem
nas alamedas
nas largas avenidas
de nova york
reluzindo feéricas
nos écrans do cinema
e nas noites longas de Assomada?


Todos nós éramos
emigrações inscritas
no esqueleto das montanhas
navios de todos os atlânticos
ancorados na fisionomia
raquítica e contorcida
das purgueiras ao sol
da rala vegetação
nas raízes da fome e da carestia

Todos nós éramos
irmãos dilectos ajuramentados
nas recorrentes lástimas
nas prementes blasfémias
contra o destino aziago
e a triste desventura dos rostos
rumando
em demanda
de baleias e américas
nos conveses dos veleiros
transportando
nos porões dos vapores
as nossa almas à deriva
e os nossos diminutos esqueletos
de sobreviventes da inanição
para a crioula comunhão
para o solidário interconhecimento
para o recíproco reconhecimento
nas úberes e vorazes plantações
das ilhas do golfo da guiné
e de outros lugares do sul-abaixo

Todos nós éramos
corpos nómadas
sonhando navegar
nas noites hedónicas
inesperadas de amesterdão

rostos marinheiros
tiritando de frio
no mar do norte
no porto de roterdão
nos fiordes da escandinávia

almas penadas peregrinas
convalescendo de saudade
do lar materno de nhagar
e das suas mulheres
de ancas largas redondas
e de cabelos negros
insinuando-se
sob os lenços coloridos
soltos nos cochichos
nos sorrisos tímidos marotos
e nos ínvios caminhos da arribada
propícios ao rapto ao amor
à intimidade do sangue
jorrando dos hímens
rasgados destroçados
sobre a sua terra árida e bufa
salpicada de verde e ausência


Lembras-te, Kanpion
dos tempos embalsamando-se
na fronte absorta de finan
debruçada sobre os enigmas
e os mistérios inscritos
nos bancos do ori nos jogos de damas
nas morosas escaramuças do xadrez
exaurindo-se nos tabuleiros da moléstia e da vida
alheios aos neurónios desocupados
aos nervos desempregados estridentes
de joão cabral

e de outros rapazes
retornados
das urbes ultramarinas
das noites caboverdianas diaspóricas
das chuvas diluvianas das roças de san tomé epríncipe
dos tempos esgotantes das plantações de moçambique
da alegria subversiva dos musseques de luanda
das florestas húmidas impenetráveis do mayombe
das chanas incendiadas do leste de angola
das bolanhas armadilhadas da Guiné
das noites inquietantes das terras dos makuas
desenganados pelo espanto pela guerra
pela quotidiana humilhação pela compaixão postergada
pela indignação camuflada no ricochete pleno
das máscaras enfeitiçadas dos macondes e dos bijagós
dos seios tesos das raparigas negras das moças mulatas
oferendas da cumplicidade de kalunbinga matulukela
soba grande dos matos de ngola baxu


e de outros mocinhos
expulsos da retinta condição de segundo europeu
de portugueses de lei de guerreiros do império
de crentes na fé católica apostólica e romana
rastejando-se pelas fazendas pelos colonatos
pelas chefias dos postos administrativos
pelas repartições públicas pelos camuflados
pelos cinturões de orgulhosos enganados flechas da pátria
pelas jóias da coroa do império ultramarino português

e de outros emigrantes
deportados da aguada e branca solidão de lisboa
dos insultos públicos canibalescos
das vozes estrangulando-se
nos tempos emudecidos amordaçados
dos caminhos cancelados
das promessas abortadas da europa

e de outros patrícios errantes
lançados tangomaos luso-africanos
catanhós cavêde tongas portunhaga
kabunka black portugueses caboverdji
grunhos negros renegados afro-atlânticos
crioulos africanos insulares

nos rios da guiné do cabo verde
na senegâmbia na terra firme das costas da áfrica

nas três américas e suas caraíbas antilhas
aruba bonaire curaçau e ensenada
e seu surpreendido parentesco de falas

nas quatro estações das europas
— mais a estação do frio
do medo e dos rostos da saudade —

repatriados da rebeldia
da mão súbita humaníssima
levantando-se contra a degradação
à condição de indígena
ao estatuto de preto-negro
contra o surripio da inocência
das forças exaurindo-se
em portos fábricas plantações
selvas discotecas ruas sujas
bairros degradados climas
inclementes almas extraviadas

e de outros andarilhos ilhéus
regressados
para os campos áridos
para os campos desvairados
traumatizados
pela duradoura deserção das chuvas
e pela castanha ressaca
da catástrofe ecológica de 1968
para o brevíssimo fulgor da alma
com a primeira aguardente do dia
incerto quebra-jejum dos tempos secos
dos tempos nossos dos tempos de caboverde
e das noites longas de Assomada?

Ai noites de Assomada
dos vaticínios augurando
a ressurreição da alma e do corpo
dos que como órfãos umbigos
como desterrados cordões umbilicais
enterrados em longínquas terras
em setentrionais frias vegetações
inumados sob meridionais pantanosas paisagens
ondulam feitos crespos verdes estandartes
nos cabos de além-mar

Ai noites de Assomada
das pragas soterrando
a triste sina da saudade
dos que se finaram
na avareza dos crepúsculos
na mutilação da memória
na emudecida elegia
dos trovadores e das cantadeiras

Ai noites de Assomada
dos presságios exumando
os sinais pesarosos da extrema-unção
aos que sobreviveram
no enlevo da milonga e do tango
no contágio do lundum e do samba
na estridência do jazz na dolência do blues
nos cultos a deus ao lord jesus christ ao soul
aos orixás ao gospel aos negros spirituals
sombras escuras coloured shadows
darker bothers
do sabor vermelho dos morangos
das flores do algodão dos lodos do cais
das algas do atlântico das escuras silhuetas
da grande migração para as terras livres do norte

renascendo nas rezas
do beato simão salvador
preto caboverdiano da argentina

recompondo-se nos silvos
nos trinados no festim de sons
do jazzman horace silver
e dos seus capeverdeans blues
e dos seus songs for my father
mornos cálidos de nostalgia islenha

ressurgindo na sagacidade dos sermões
do reverendo sweet grace
fundador de rituais eucarísticos
de igrejas cheias negras
na imensidão da américa do norte

refundando-se com o pastor joão josé dias
portador de boston para as ilhas
da palavra do nazareno
para a tardia conversão de nho tatai
aos hinos religiosos aos cânticos evangélicos
e à ratificação da sua irrenunciável paixão
à medida maior que deus
ao bem ainda maior de amar o kretxeu
santificado entre os cardeais e as buganvílias
da terra da morabeza das ilhas do amor
e das noites longas de Assomada

Ai noites de Assomada
nas noites dos bravas dos black portugueses
nas américas solfejando livres o crioulo
entoando a morna ensaiando o fox trot
adormecendo ao som das estórias das ilhas
inventando uma nova alvorada
versáteis anónimos camaleónicos
entre brancos negros hispânicos
açorianos índios asiáticos chicanos
e outros nativos e outras vítimas
e outros garimpeiros e outros reféns
do sonho americano

Ai noites de Assomada
nas noites laboriosas lacrimejantes
de dionísio lopes e de outros mercanos
cativando os rumores da saudade
de tuna júlia luna zulmira
e das suladas e dos xailes
de outras mulheres de fonteana

entre as intransponíveis linhas da segregação
da humilhação e das leis de lynch e jim crow

entre a insularidade da alma
e o branqueamento do espírito

entre a sublimação das evidências epidérmicas
e a doméstica confraternização das cores
contra a vituperação do ku klux klan
e de iguais cavaleiros da camélia branca

entre a negação da separação racial
e o vagaroso estrépito do arco-íris
no alisamento dos cabelos
no lento crepitar do black power
sob a sombra erudita poética rebelde
de langston hughes ella fitzgerald richard wright
louis armstrong duke ellington thelonius monk
na lição de dignidade de frederick douglas
w. dubois martin luther king ângela davis eldrige cleaver
na inflexível e irredutível rebeldia de malcom x
na resistência da nação negra do islão
nos cabelos afro dos black panthers
acesos alumiando as noites longas de Assomada

Ai noites de Assomada
repousadas no escasso crioulo
contaminando as espáduas do júbilo
e a veemência do desamparo
entre os ritmos os gangs as gangas as fábricas
de dorchester boston brockton new bedford
rhode island providence connecticut califórnia
rio de janeiro santos e outros buenos aires
as plantações do mississipi do deep south
entre os seios alegres da estátua viúva de nova york
entre dos umbrais das américas
e as entranhas voluptuosas dos rios
afadigando-se nas noites longas de assomada

Ai noites de Assomada
repousadas no escasso inglês
contaminando a rememoração
das tempestades dos tornados
das brigas dos trágicos silêncios
do inumerável labor em terras estranhas
em rincões desconhecidos
entre o viço arregalado das plantas nos regadios
as pedras em construção os móveis luzidios
a mobília nobre as louças as vitrinas
as cristaleiras o gramofone os cavalos brancos
nos dias lúcidos e portentosos
relinchando nas noites longas de Assomada


Ai noites de Assomada
das rezas em pedra-barro
ecoando no levantamento das esteiras
na invocação dos náufragos
dos mortos de morte morrida
dos perecidos de colectiva inanição
de perplexa dorida resignação
de doença maligna de morte matada
de queda em fundos precipícios
de severino infortúnio
amortalhados
em imperturbáveis precários esquifes
em periódicas famigeradas valas comuns
sete dias depois do seu passamento
chorados
à beira triste das águas dos fundeadouros
meses depois do seu desaparecimento
envoltos nas efígies do luto
confundidos com os madeirames do silêncio
afundados com as viagens do destino
de matilde e de outros veleiros das ilhas

Ai noites de Assomada
das ladainhas em cova-furtado
convocando as notícias perdidas

dos rostos soterrados
nos escombros dos prédios

das almas implodidas
demolidas na azáfama das obras
na promiscuidade das camaratas
nos destroços dos choros
em súbitos ignotos paradeiros

dos rostos escuros devolutos
na crã fragilidade na erma agrura
na agreste desfaçatez nas íntimas refregas
das barracas nos bairros degradados
nos escombros do pânico e do pasmo
entre o aconchego das empenas e da saudade
nas prisões sobrelotadas
nas ruas negras desterradas recentes
da pedreira dos húngaros da cova da moura
de santa filomena da azinhaga dos besouros
das fontaínhas de estrela de áfrica da bela vista
do alto de santa catarina dos arrabaldes de lisboa

nos estaleiros derruídos de alcântara
nas casernas nas camaratas
nos andaimes nos guindastes nas gruas
da lisnave da cuf da jotapimenta
nas minas da panasqueira
nas fábricas de sines
e outras ladeiras outras noites
alongando-se
caminho longe gente gentio
de feições temperadas
e olhar impenitente
caminho longe gente gentil
de gestos brancos fraternos
de corpos calorosos generosos
de palavras fartas férteis do santo e senha
de vozes nuas cifradas cicatrizadas
na subtil experimentação
na sacrificial provação
da pátria solene solidária

Ai noites de Assomada
das mantenhas alastrando-se
chorosas sobre as nádegas do mar
e as lentas vagarosas nuvens

Ai noites de Assomada
das canções clamando
pelas novas e bem-aventuranças

das mãos laboriosas madrugadoras
benzendo as escolas as pontes as auto-estradas
os prédios os estádios recém-inaugurados

das mãos escuras atarefadas
removendo incansáveis
os entulhos o lixo a raiva
o sono o choro das crianças

dos passos sonâmbulos
dos abraços ternos
dos dédalos da saudade
e da música plangendo

pelos becos hostis
pelas vielas pelas ruelas
pelas ruas problemáticas
saturadas de rostos estranhos

pelas tabernas vociferantes
da rua do poço dos negros
dos poiais são bento

pelas almas redivivas
nos jardins da praça estrela
na praça camões no canecão
na lontra no coquenote
na casa de cabo verde
e em outras discotecas
e em outros espaços nocturnos
e outras associações recreativas

pelas ancas alvas escusas
das prostitutas do cais de sodré
e da avenida almirante reis

pelas vivências ressuscitadas
em lugares esconsos cordiais
fraternos na contabilidade emocional
da cachupa e da aguardente

Ai noites da Assomada
das preces em entre-picos
dos prantos em fundura
desenterrando a saudade
definitiva e grave
dos que se foram para nunca mais
dos que nunca mais regressarão


(excertos refundidos do livro-poema Assomada Nocturna
(poema de Nzé di Sant’ y Águ) e do poema inédito
Assomada Nocturna Revisitada, recentemente concluído).

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008


The Promenade
Marc Chagall

Quarto de Hotel

Você já se ouviu
no silêncio,
sem desejos,
sem sonhos?
Você já se viu
além do espelho
das águas?
Além dos olhos
de alguém?


Maria Helena Sato

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Tempo (s)




Tempo de amar


É a Bíblia que diz sobre o tempo de amar. No contraponto do tempo de odiar. Olhar a vida com sentido de extâse. Como se escutássemos uma morna de Eugénio Tavares. Ou, então, soubessemos (sem as certezas que matam o encanto) que um olhar a vir do acaso seja, quem sabe...de incêndio!


Tempo de semear


Nem tudo tem de estar na Bíblia. O Corão e o Talmude podem não trazer certas sentenças. Os búzios talvez estejam ausentes disso. Mas um artista deve semear. Ideias, sonhos, inspirações, alegrias e tristezas. Até medos, o elemento mais criativo de todos, segundo Fellini. Semear para a colheita das estações...


Tempo de poesia


Pedem-me que escreva crónicas sobre a Moção de Confiança (apresentada ontem ao Parlamento), por José Maria Neves, e sobre a Moção de Censura ( que seria improcedente), por Jorge Santos. Embora prefira aquele a este - sou, a ter de ser, da esquerda, convenhamos -, a minha escrita criativa ficará pela deriva metafórica. Tempo (reverso) de poesia...


Tempo cabo-verdiano


Disse-o num fórum em São Paulo: "Estamos fartos da Morabeza". Em verdade, apetece evoluir sobre esta caboverdianidade rasca, doada e derrotada. Este aceitar, como se fossemos "mestiços safados", a dúbia condição "nem África, nem Europa", como se este somatório e esta fusão de matrizes e matizes humanas nos diminuisse. Apetece ser todos e ser tudo. Sermos, finalmente (do Mundo!), cabo-verdianos.


Tempo livre


Para os que também falam (e escrevem) crioulo. Os que amam a sexualidade que têm e não necessariamente o sexo imposto. Os que atravessam o oceano em canoas impossíveis e procuram destinos improváveis. Os que querem radicalizar a Arte e buscar novas gramáticas para o nosso way of life. Os que não aceitam a depredação do Ambiente. Nem pretendem parceria especial (apenas) com a Europa. Os que questionam...


Tempo dos Lobos


O Blog http://tempodelobos.blogspot.com/ voltou ao nosso convívio. Ele nos interessa neste tempo. Acompanhem-no...

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Arte & facto


PÔ (à memória de DÉCIO PIGNATARI)
Mito




Para Mito, este poema gráfico-gastronómico, aconteceu acidentalmente ao servir uma entrada de choucroute, cebola & queijo mozzarela, durante um almoço no restaurante Sujinho na Consolação. São Paulo tem disso...
Nissei
Bashô em mim/ o que poeta ra tarô/ nesse restô da Liberdade// O zen pura de sushi/ teu kim ono & xi-coração/ tu arrigatô minha emoção// Sashimi com lua/ hiroshima nua/ tu quer saïury comigo?/ Sampa tem disso, que eu sei...
Função da Arte
Nirvana, orgasmo, espanto, espasmo...essas coisas.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Praça da Sé

Espelho
Emanoel Araújo



Camaleoa

Com a crise internacional, libertamo-nos do pensamento único neoliberal que se impôs desde a queda do Muro de Berlim. No inevitável mundo novo, que se crê sem a especulação capitalista, a blindagem dolaresca e a economia hipotecária, mercê de uma ética cifronista, as coisas tendem a ser menos injustas e menos desiguais. Naturalmente que não somos utópicos, nem ingénuos. As previsões continuam sombrias para os “deserdados da Terra” e a globalização tende a globalitária na sua estrutura sistémica. Mas haverá sim uma metamorfose, à maneira de luz ao fundo do túnel, de um camaleónico incremento contra a desumanização, esse pendurar a economia do Planeta pelos fios de Wall Street e de falácias afins. Com o socorro do dinheiro público, creio ter chegado o momento de novos padrões para a convivência, a produção e o consumo. Vejo o Brasil e repenso, à luz das sociabilidades necessárias, que nada estará perdido!

Liberdade

Passados vinte e tal anos, eis que regresso a São Paulo, cidade com C grande, em toda a dimensão urbanística, e cosmopolitismo que chega mesmo a doer. O bairro da Liberdade já não é tão japonês como outrora e reparo que os antigos restaurantes já deram lugar a novos empreendimentos. Esta é uma cidade “camaleoa”, como lhe chamou a poeta Maria Helena Sato, cabo-verdiana a reinar no principado das letras paulistanas. Mas a Praça da Sé, declive que vai ao topo génese paulista, memorialista e quase patronímica, do Padre Anchieta, permanece intacta. O silêncio altivo da Sé Catedral, onde percorro a verdade de não saber me ajoelhar, nem benzer. Certos momentos para mim são de alguma religiosidade, mas de nenhuma religião. É falar com Deus (ou com os deuses), sem intermediação dos seus templos. É dispensar a burocracia da fé, administrativismo que não acrescenta sol às minhas angústias. O bairro da Liberdade tão impregnado da minha existência…

O que quer e o que pode esta língua

A conferência da linguista Dulce Almada Duarte introduzira a tónica desviante: o crioulo foi criado pelos cabo-verdianos no século XVI. Ao criar uma língua, esboça-se claramente um processo histórico que recria a Nação Cabo-verdiana. A Nacionalidade, por conseguinte, não nasce nos tardios anos 30 do século XX, com os Claridosos, mas muito antes e em tempos ainda escravocratas. Algo me lembraria do golpe ideológico dado no Simpósio do 50º da Revista Claridade, no Mindelo, em que, doravante, de ideário cultural e estético, Claridade passara a ser uma ideologia. Tendo caído por terra a tese da Unidade Guiné - Cabo Verde, em 1980, o Poder, que ostracizara os Claridosos nos primeiros anos da Independência, repescava ora os seus valores e as suas figuras como novos ícones da Nação e os projectava para o centro do discurso político dominante. Na plateia, fingia-se como se finge agora que nada foi posto em causa e teatralizam-se, como outrora, palmas e mais palmas. Rio-me dos sumptuosos pavões e indago a mim próprio sobre como fazer, o que fazer e porque fazer. Ficar em silêncio elegante e cúmplice das circunstâncias e das onjunturas alheias à minha vontade? Vamos, com sentido de causa e sem medo das consequências, procurar as malhas da Nação…

Museu Afro Brasil

O que mais me encantou em São Paulo foi o Museu Afro Brasil, complexo cultural formatado e "animado" para dar visibilidade ao enorme contributo dos negros na afirmação (identitária e civilizacional) do Brasil, país onde ainda flui um racismo subtil e manhoso. Transcendendo o (pré) conceito da Casa Grande e da Senzala, algo só sublimável com o "empowerment" dos africanos e da vasta Diáspora Negra, o Museu Afro Brasil é, acima de tudo, um espelho em poliedro para que todo o ser humano se reconheça e se projecte como activo da História Universal. O curador e artista plástico, Emanoel Araújo – autêntico "filho de Ogum" – afirma que o Museu "pretende celebrar o que ainda não foi possível celebrar: a inclusão da nossa desconhecida gente". Nossa? Pois, nossa, companheiros.

Haicai nocturno

Maria Helena Sato, que me foi grata revelação, escreveu este poema, intitulado “Praça da Sé”:

Paisagem nocturna.
Os gatos são todos pardos,
Os caminhos, tortos.