quinta-feira, 31 de agosto de 2006

Shiva

(…) Senão eu te invento por toda a eternidade (…)
Paulo Leminsky


Ter partido também
Ficar um pouco contigo
Flutuar assim para lá
Do azul, do zil e do vão
- Eu nem queria outra coisa,Mulher…

Partir para vir contar
A praça do além e do éden
(o reverso da maçã e seu pecado)
Serpenteada numa árvore, mulher,
E tão torneada em teu corpo…

Eu nem queria senão ter ido
Com ou sem retorno, ao pé de ti
E dali (miró, como me chamas),
Neruda, pessoa, outros poetas
De toda a poesia…

Aqui, deixado na praia,
Eu te invento...metáfora!

Filinto Elísio

Founders

Foto de Omar Camilo

O "imprescindível" Manuel Veiga

O "imprescindível" Manuel Veiga corre risco de vida num hospital em Nova Iorque, na sequência de um ataque cardíaco. Ministro da Cultura, mas sobretudo intelectual da mais fina estampa, Manuel Veiga tem um profundo empenhamento pela coisa cultural cabo-verdiana, em particular a língua crioula. Neste momento, ele tem estado a estrategizar uma Conferência Internacional sobre a Claridade.Juntemo-nos todos numa correntente positiva pela rápida e pronta recuperação de Manuel Veiga.

Em prol da caboverdianidade!

terça-feira, 29 de agosto de 2006

Thugs, CEDEAO, Constituição e Israel + nota do colunista


A caça aos Thugs

A manchete da prisão dos jovens delinquentes, mais conhecidos por Thugs, nos deixa mais aliviados e mais crentes da nossa segurança pública. Tal como a saúde pública, a segurança pública é questão premente e prioritária. Sem elas, não há estabilidade, nem paz social, as verdadeiras razões que trariam investimentos a Cabo Verde, diga-se em abono da verdade. Ninguém sai da Inglaterra para vir a Cabo Verde, a risco do paludismo, da cólera ou do assalto. Tao pouco ele viria para assistir gente a defecar na via pública ou a curtir os apagões da Electra. Pura e simplesmente não haverá turismo, nem outro investimento sério, se alguma incongruência não for consertada a tempo e, quanto a isso, não devemos ter papas na língua. Mas dizia, a caça aos Thugs veio em boa hora e é mister que o nosso sistema judicial seja consequente com a lei e o interesse nacional. Só que o buraco é mais em baixo. A criminalidade transcende a medidas securitárias, por sinal mais que necessárias. Ela tem a ver com as alternativas sociais para a juventude. A segurança sustentável não é policial, mas societal. Até porque os jovens delinquentes são “nossos jovens” e precisam ser recuperados. Não apenas por aquele que viria da Inglaterra, mas por nós que continuamos…em Cabo Verde!


Cabo Verde e a CEDEAO

Apoio a 100% a ideia da revisão das nossas relações com a CEDEAO. Elas deveriam, hoje mais do que nunca, incrementar uma vertente mais bilateral do que multilateral, no quadro comunitário. Esta tese foi defendida pelo diplomata Manuel Amante da Rosa, mas, para variar, não teve respaldo crítico entre os seus pares da diplomacia. Cabo Verde deverá reflectir e assumir qual o cenário da CEDEAO que lhe interessa realmente. Em verdade, o enquadramento de Cabo Verde no mundo não se faria de costas voltadas para a África Continental. O Arquipélago é estratégico, porque está estrategicamente posicionado (não apenas em termos geográficos) na África Ocidental. Em verdade, é estratégico com África e nunca sem ela. Mas não se tem o Continente a qualquer custo. A questão da livre circulação das pessoas e bens merece revisão séria e rápida. Concordo com a preocupação do ministro Júlio Correia sobre a ameaça demográfica, decorrente de uma migração intensiva e nem sempre controlada. O país tem de dizer a CEDEAO quanto recebe e como recebe. Como pequeno estado insular (relativamente estável), próximo de uma Costa instável, empobrecida e sobrepovoada, as ameaças a um rápido e perigoso desequilíbrio demográfico são evidentes. Com as delicadezas necessárias e a complexidade que a questão determina, é hora de fazer o que tem de ser feito…

A questão presidencial

Releio, com vagar e sentido crítico, o livro “A questão presidencial em Cabo Verde – uma questão de regime”, de David Hopffer Almada, e penso se não seria interessante reabrirmos o debate sobre o tipo de regime mais adequado para Cabo Verde. Debate de rua, societal mesmo, quase em referendo. O dito Parlamentarismo Mitigado, um hiato que às vezes mete água, é a melhor solução política? Quais as virtualidades de outras propostas? O retoque constitucional pontual seria por si só suficiente para qualificar o actual regime? Ou, quem sabe, a virtude está numa mudança mais de fundo, no presidencialismo ou no semi-presidencialismo? O actual regime permitiria, sem perversões, a coabitação entre um governo e um presidente adversos? Até que ponto, no actual figurino, certas coabitações não fragilizariam a soberania, a democracia e o desenvolvimento, valores ainda em consolidação nesta etapa histórica da vida nacional? Dá que pensar o facto de o Presidente da República, saído directamente do voto popular, não ser titular de importantes poderes próprios e de que maneira esta “fragilidade” contribui para um equilíbrio saudável entre todos os Órgãos Políticos de Soberania. O povo cabo-verdiano realmente quer um Governo que não responda primordialmente perante o Presidente da República que escolheu? Enfim, uma série de questões que merecem ser tematizados para lá do país político e do país jurídico. Sem arrogâncias, nem tecnicismos juridico-constitucionais, quem atiraria a primeira pedra?

Israel e a mentira orwelliana

Leio a imprensa local e há acontecimentos que não acontecem. Parece a mentira orwelliana que, repetida ene vezes, vira verdade. Os aviões que lançam misseis sobre as crianças indefesas são pura brincadeira. Uma ficção, tirada do monitor de um video game, crê-se. Em Cabo Verde, os deuses-de-esquina ficam quedos e mudos. Mas eles também não interessam. São zeríssimos à esquerda. O silêncio dos silenciados não nos aparta da vergonha. O ataque, desproporcional e injustificado, ao Líbano é uma vergonha para a Humanidade e os homens de bem e de boa vontade condenam tamanho genocídio. As Nações Unidas, uma vez mais, não podem nada, mesmo nada, contra a força bruta. O governo de Israel (não confundir com o povo judeu) é déspota, fascista e desumano, para não dizer bem aprendido com o nazismo. O que acontence ao povo palestiniano e libanês não passa de um holocausto. Um nojo, com todas as letras…

Nota do Colunista:

O cronista não está alheio à fruição social. Muitos dos temas que aborda foram escrutinados no quotidiano. Os assuntos colectivos são inesgotáveis. Não pretende ele ser dono, nem accionista de alguma verdade. Ao levantar questões, ele quer contribuir para a reflexão da nossa opinião pública. De vez em quando, ele migra para o seu espaço poético, como o Albatroz, de Baudelaire. Aí, a sua função torna-se mais existencial que social. Os leitores hão de perceber a alteridade. Quando não (direito que os assiste), reclamem pelo endereço electrónico: filintos@gmail.com.

sábado, 26 de agosto de 2006

Hora Grande


Os tempos são fortes e a hora é grande.

Saint-John Perse


Glosa

Para alguns, felizmente poucos (mas hegemónicos), está tudo bem e estável debaixo do céu. Questionar estes dias sob o sol nosso de cada dia seria subversão perigosa. Terrorismo de baixa intensidade, acto inaceitável num país pobre e vulnerável, ainda por riba de morabeza, como o nosso. Tudo bem e estável, mau grado a insegurança, o desemprego e a doença pública, aliada à holística incompetência, das altas nuvens ao rente chão. Os hegemónicos (poucos, felizmente) não querem saber das reclamações, das reivindicações e das manifestações. Do descontentamento das ruas, querem distância. E das insatisfações mais surdas, fazem ouvidos de mercador. Face à quietude aparente, mas falsa, o país navega por mares escusos e, qual nave dos malucos, todos fingem estar no porto de salvamento. Onde estão os lúcidos, minha gente? Um simples Velho do Restelo afinal? O que é da crítica local, outrora tão acutilante e valente quão agora necessária? Será que, no chão da República, a ignomia é permitida e a disfunção faz escola? Não, não e não, meus amigos. Os cronistas são filhos de Cronos. E deste, guardam a mais sagrada fidelidade. Não podem eles fugir aos tempos. E muito menos à grandeza desta hora…

Doença pública e a cidadania

Leio a entrevista de uma autoridade sanitária, no Jornal Expresso das Ilhas, e discordo das suas colocações. A política da saúde pública precisa ser revista, sim senhor. Vejamos, por exemplo, a questão do paludismo, afinal retornada, mas só agora assumida como endémica, pelas autoridades. Não poderia haver um plano preventivo mais sério e consequente diante de uma realidade por assumir. Nem poderia haver autoridade sanitária em face de uma não-problemática. Qual teria sido a razão deste irresponsável silêncio? A beleza dos indicadores que muito doura as estatíticas e induz a elogios internacionais? O turismo emergente e cada vez mais importante, mas contingencial em face a rupturas da saúde pública? O medo aos investidores que olham para isto como um destino lucrativo? A oposição sistemática, mister democrático, pronta a tirar dividendos das desacelerações e afins? Francamente, nós, os cidadãos, contribuintes e eleitores, temos de perceber as razões do silencio. Quando morre gente, por paludismo ou outra doença (duas por ano que sejam), em quadro de uma política ausente, a culpa nunca é da fatalidade. Nem da população. Não se criminalize a vítima, por favor. Existe paludismo na cidade da Praia, porque a sua população é culpada, não colabora e não limpa? A Praia é uma lixeira, conforme o Bispo de Cabo Verde, porque ao praiense falta urbanidade e civismo? Será a Praia uma lixeira ou lixeira é o que uns e outros fazem da Praia? Tenham dó, meus senhores. As coisas não são assim. Mais do que teatros de bairro, mas sérios investimentos no saneamento, na higiene, na infraestruturação e na qualidade de vida na cidade. Mais do que jogar as responsabilidades e as culpas para debaixo do tapete, mas medidas concretas em relação aos problemas reais. Vamos, agora, aliviar as coisas e trabalhar por esta causa comum. Em respeitos aos vivos e aos mortos. Na certeza de que deste lado estamos lúcidos. E consequentes…é pagar para ver!

Porto, aeroporto, estradas & etc

Falta muito, faltando mais à minha cidade. Faltam equipamentos de mais qualidade: porto, aeroporto, estradas & etc. O desenvolvimento só se processa com o homem educado no espaço equipado. De escolas (do básico ao superior), de hospitais (por demanda populacional), de ruas asfaltadas (ou pavimentadas, a gosto) e de praças (com flores e monumentos), entre outras tantas coisas que dão dignidade e cidadania. Assim, terra de ninguém - de porto atrofiado, aeroporto tacanho, estradas medíocres & etc -, as coisas não funcionam. Não só para a minha cidade, mas para o país todo. Falta muito, faltando mais, e terá chegado a hora de interpretar Saint-John Perse: Os tempos são fortes e a hora é grande.

terça-feira, 22 de agosto de 2006

O tempo circular dos tempos





Glosa

Serão os verbos, a verve e a tecitura esta obsessão de te rever na próxima esquina? Neste tempo de “múltiplos tempos”, estarei contigo no imaginário e na lembrança tão-somente. Não pude, qual Sharezade, perpetuar os nossos encontros em estórias de Mil e Uma Noites. Nem pude – e eis como estranha a minha ledice – postular outro vôo de pássaro que não fosse aquele. Os meus escritos continuarão a ser para ti, minha musa, e, em seus artifícios e alfaias, eles abordarão o tempo circular, mãe de todos os outros. Mesmo quando, por repto do quotidiano, descemos ao pulsar das esquinas...

1. O “tempo de São Filipe”

As intervenções efectuadas pela Câmara Municipal de São Filipe nalguns espaços públicos daquela cidade, oportunamente denunciadas pelo cidadão Fausto Rosário, foram agora “chumbadas” pelo Instituto da Investigação e do Património Cultural (IIPC), sob alegação de que as mesmas “descaracterizam” o Centro Histórico de São Filipe. O posicionamento do Ministério da Cultura, através do IIPC, revela um sentido de autoridade sobre as questões patrimoniais e uma atenção em relação às demandas da cidadania. Os poderes públicos devem ser capazes de responder, em tempo crítico, às descaracterizações dos elementos patrimoniais e ambientais de Cabo Verde, para além dos interesses partidários, económicos e outros. Sem afrontar quem quer que seja, nem fulanizar certas questões, é imperioso um reordenamento das coisas em muitos pontos do país, onde o caos se instalou e a crítica entrou na ordem do dia. Não podemos permitir que o património cultural e ambiental seja delapidado. A destruição, ou mesmo a descaracterização dos nossos bens patrimoniais condiciona a nossa memória e o nosso sentido de tempo histórico. A quem compete preservar e valorizar a nossa identidade? Preservar é um direito e um dever de todos nós, de todo o cidadão, e também do Estado. Cada um de nós deve estar atento aos grandes empreendimentos municipais e outros (privados, inclusive), evitando que os mesmos colidam com o patrimônio. Ao saudarmos a iniciativa do IIPC não significa defendermos a paragem no tempo. O município de São Filipe, como todos os outros de Cabo Verde, precisa de saneamento básico, de infraestruturação e de edificação, valores que agregam melhoria de vida aos cidadãos. Mas as diferentes velocidades dos tempos não se devem colidir. Por isso, as coisas têm de partir de um verdadeiro pacto social entre o Governo, a Edilidade e o Cidadão. Desta tríade, ninguém deve ficar de fora. O resto é karkutisam e o país não pode derramar seu “tempo”...

2. O “tempo claridoso”

Não se pode também lidar com o passado como se ele não existisse. Nem se deve deixar de admitir que Cabo Verde seja uma multiplicidade de “tempos”, alguns mais históricos que outros. Por conseguinte, esta viagem, retrospectiva pelo “tempo claridoso”, um dos mais marcantes, se não o mais determinante, da nossa modernidade literária, se tornou imperiosa. Ao meu ver, a Claridade começa em 1935 e o arauto de tal fenómeno terá sido o poeta Jorge Barbosa. O seu livro “Arquipélago”, publicado nesse ano, traz embutido todos os signos e premissas de “pés fincados no chão” e “olhos voltados para a realidade social”. O afrontamento temático dos claridosos estava todo ali. Mas foi no ano seguinte, em 1936, com o lançamento da Revista Claridade, na cidade do Mindelo, que o sentido ganha dinâmica e sistematicidade. Dir-se-ia que a nova largada, inscrita no escrita barbosiana, ganha então transcendência. Dá-se claramente uma mudança de paradigma, rompendo os intelectuais com o mimetismo cultural, ora modal e costumeiro, em prol de novos fundamentos e problemáticas. O imaginário, bem como o processo criativo, desloca-se para o cenário das ilhas e para o drama das suas gentes. A Geração de Baltazar Lopes da Silva (e Oswaldo Alcântera), Manuel Lopes e Jorge Barbosa, e a de seus contemporâneos dialécticos, António Aurélio Gonçalves e Jaime de Figueiredo, entre outros, reconfiguraram uma mitologia da cultura cabo-verdiana de um molde mais plausível e próximo – a caboverdianidade. E, em lacto senso, mudaram o nosso jeito de ser e de estar no mundo, não só a poética e a prosa ficcional, mas o ensaio antropológico e a crítica social. Outrossim, vale reconhecer que a Claridade foi também um prenúncio e uma advertência do despertar nacionalista. Era, em toda a linha, o acordar de um tempo histórico. O silencioso que se conscientiza silenciado e, destarte, questiona o mundo e a mundividência. Nos seus rudimentos...naturalmente!

3. Onde as águas não se misturam

Resignado ao sentido doloroso da existência, o Poeta caminha. Ele está ciente de não poder ultrapassar o parapeito da sua angústia, mas caminha. Agora que seu pressentimento se desfez numa perda atroz, onde as águas não se misturam, ele deambula. Balbuciando sempre a glosa de Fernando Pessoa (pois não abriria mão da sua loucura): a minha dor antiga...quem ma roubou?

quarta-feira, 16 de agosto de 2006

Onde a minha saudade a cor se trava

Para Béqui



O sonho…e agora, José?

O sonho acabou. Dona Mindoca, a mulher das nossas vidas, morreu. Em sentimentos mistos, busco no intertexto de “a mãe morreu”, no “O Estrangeiro”, de Alberto Camus, um absurdo conforto. O meu pai, na sua digna e infinita tristeza, balbuciará a drummoniana frase: E agora, José? Sinto os meus irmãos, tristes e indignados, ainda incrédulos dessa profunda religiosidade (não a dos templos que almejam guardiães, mas a do Zodíaco que arranja estrelas do Destino). E agora, você? No mais fundo de mim, sou um poço de dúvidas. Ao Sísifo tirem tudo, menos as pedras. Ao Cristo, não lhe retirem a Cruz. Tão pouco queiram subtrair ao Significante o Significado. Busco, no holograma deste tempo, as absolutas razões para não morrer de tristeza. Logo eu que vos suplicara, na escrita do escrito, a minha mãe de volta. Logo eu que, em acto de toda a humildade, daria a alegria, a energia e a escrita, tudo o que mais quisessem, por esse regresso. Ferido de morte, algo em mim – em nós, diria – renasce das cinzas. A dialéctica do sofrimento, sublimando as coisas. A lembrança em forma de força. A saudade em jeito de resistência. O amor que move montanhas. O sonho acabou? Da janela em que olho o vazio, ou quem sabe a eternidade, uma ciciante palavra recusa o terminal deste sonho. Voz de tão só ternura: o sonho apenas começou. Meus amigos, é ela, a mulher das nossas vidas, que eu sei…

Alma gentil

Não vos falaria aqui da Dona Mindoca, professora e pessoa pública. Nem da sua generosidade social que saltava à vista. Falo-vos agora das coisas mais íntimas, desse lado de cá da rosa. Das minhas brincadeiras com ela: Dona Mindoca não é poeta, mas Poesia. Em verdade, eu via nela uma metáfora em toda a transcendência e vivia essa mulher em todo o vate poético. E punha não minhas preces e crenças e sim as orações que me ensinara: alguns versos de Fernando Pessoa. Quem me roubou a minha dor antiga? E fiz com que se fizesse vaidosa, linda e raínha aos gracejos deste Albatroz. E sou feliz por tê-la feito sorrir mais do que chorar. E estou em paz por tê-la amado até ao fim da linha. Dona Mindoca, deste lado da lua, era um ser humano extraordinário. Ela adorava o pôr-do-sol e, sempre que víamos juntos um crepúsculo, a frase era: eis o estado de beleza que nenhum artista consegue imitar. Gostava também das plantas e dos animais. Acordava cedo para a azáfama das plantas no terraço da casa e deleitava-se com o chilreio dos passarinhos. Adorava viajar e tinha as suas paixões pelos lugares. Nem vos conto de como bateu palmas ao ver São Petersbugo, o Monte Jura e as margens do Rio Charles. O luminoso encanto no alto da serra no Ceará e muitos outros lugares por onde andou, sempre de forma curiosa e generosa, fazendo amigos e expandindo Cabo Verde. Falo-vos aqui e agora de uma luz boa e terna, e quiçá eterna, que passou pelas nossas vidas. Como uma estrela a riscar o firmamento e deixou o travo da suprema beleza…

Post Scriptum

Manda a nobreza, em nome de todos, agradecer aos que nos últimos dias fizeram por salvar a Dona Mindoca. A boa intenção, mais do que o sucesso, tem a sua divindade. E, em toda a dignidade desta nossa dor profunda, queremos reconhecer publicamente o empenho de todos. As dúvidas, as frustrações e as revoltas, que ainda nos dilaceram, estão a ser sublimadas. A morte da Dona Mindoca não será um acto de ficar no ar, antes de mergulhar no esquecimento. Queremos também agradecer ao conforto que nos dá, nesta hora de catarse, um turbilhão de amigos e conhecidos.

Post Post Scriptum

Este texto é S/Cem Margens. Por conseguinte, ele é meu. Mas o escrito nesta escrita, tenho a certeza, poderia ser assumido, com mais engenho e arte, por um punhado de apaixonados, nomeadamente Anastácio Filinto Correia e Silva, José Cardoso, Osvaldo Correia e Silva, Antero Simas, Benilde Correia e Silva, António Correia e Silva e Alberto Correia e Silva. E, numa dimensão de mundo novo, pelos netos da Dona Mindoca – a “Geração da Gelatada”, que é hoje o nosso sofrimento abreviado.

terça-feira, 1 de agosto de 2006

Mayra e Dudu


Hoje, vou falar-vos da música. Não da música, em sentido vasto e caudaloso. Mas de dois álbums, acabados de sair: “Navega”, de Mayra Andrade e “Nos Kantador”, de Dudu Araújo. Estes dois trabalhos discográficos são, antes de mais delongas, o corolário da maturidade a que chegou a música cabo-verdiana. Acrescido à singular interpretação desses artistas, o groove atingido por todos quantos, na linha melódica, rítimica e do arranjo, se alinharam na feitura de tais álbums. Das características comuns entre Mayra Andrade e Dudu Araújo, sublinham-se a potencialidade vocal e interpretativa, o bom gosto na escolha de composições (e compositores) e o arrojo dos arranjos. E nem disse a marca mais sintomática: o charme de apresentação em palco (sorriso, sobriedade e inteligência). Alguns reparos, entretanto. Mayra Andrade, emergindo também como compositora de boa verve, tem uma excelente banda, faltando-lhe um ou dois elementos cabo-verdianos para que se instale a naturalidade da toada crioula. Dudu Araújo, ao contrário, precisaria alinhar aos seus exímios músicos (onde Bau é matricial) o vórtice de um instrumentista estrangeiro, habituado a escalar montanhas para lá das pentatónicas. Mas tudo isso, é palavreado de um leigo que percorre a música como um andarilho acidental, razão que relativiza qualquer tentação de postulado. Em verdade, gosto da música por gostar tão-somente. E nesta (in) capacidade, recomendo-vos vivamente Navega”, de Mayra Andrade e “Nos Kantador”, de Dudu Araújo…