quinta-feira, 11 de agosto de 2005

Correspondências

Podia escrever sobre as ilhas e o cosmos. Mas hoje, dou-vos um cheirinho das minhas correspondências – três enviadas por mim e uma recebida do Luís Araújo. São milhares de cartas, round trip, a cronicar a vida, quase sempre de forma não autorizada e não publicável. Não é segredo do Estado, mas é o estado do segredo, o que dá às coisas mais recato e parcimónia. Uma ressalva apenas: não será por falta de assunto que deito mão às correspondências. Será por excesso dele. E uma estranha saudade do futuro. Ou, tão-só ganas de regressar à “estrada”. Vamos, então, a isso:

A. Flashes de três enviadas:

1. Caríssima Ambi,

(…) Pois é, continuo a escrever crónicas. Sem alguma pretensão de imparcialidade. Antes pelo contrário, não me concedo aqui à hipocrisia. Liberdade total. Não confundir com totalitária, pleaaaaase. Comentário e crítica são bem-vindos. Mas que o pessoal não exagere. Sou neto de António Leão Correia e Silva (o pai e não o filho do meu pai, entendes) e de João Henriques de Almeida Cardoso (pelo lado da mãe), razão bastante para ter nervos, fibra, ganas e raiva. A par deste muito amor aquariano. Para o que der e vier (…)

2. Prezado Crisolino,

(…) Neoliberal eu? Às tantas, hás de indagar se ajoelho e rezo diante dos altares. A riqueza é feita por todos. Cada um à sua maneira. Mas ela é distribuída só para alguns e aí o busílis. Alinho-me com Jorge Luís Borges quando afirma que é uma “irreligiosidade” crer no inferno. Infelizmente, eu acredito em duendes, mas não tenho ganho nada com isso. Pode? O Pranchinha diz que não. Mas para o Pranchinha, a humanidade só existe como pano de fundo longínquo, evanescente e irreal. Arre…(…)

3. Baixinha

Manhã azul, Baixinha. Como um peixinho mágico de riscas verdes, ele dá voltas no teu aquário. Sei que gostas do luar e das praias. Aposto mesmo que saibas cantar ao silêncio das noites caladas. Dizes que sou maluco. Meio real e meio ficção. Podes dizer que ando repetitivo, mas hoje estou com ganas de balbuciar o famoso poema de Vinícius de Moraes:

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

B. Flash da recebida de Luís Araújo


1. Caro amigo Filinto,

(…) Adoro a alegoria do David e Golias de que te serviste para chamar a atenção sobre os perigos que me espreitam. Desde que, ainda criança, a ouvi pela primeira vez a minha simpatia pelos Davids deste mundo foi imediata e, convocado pelo fantástico da proeza de David, tratei logo de arranjar também uma fisga para abater o primeiro Golias que me aparecesse. Já adulto, alguns foram os "meus Golias" que, também, consegui "arrumar", e tu os conheces bem (…)

(…) Realmente feijão com arroz hoje e arroz com feijão amanhã, outra vez, mesmo que servido com outras cores e odores em outra mesa, presidida por outro senhor, como resultado da alternância dos cozinheiros e príncipes da corte, torna-se um exercício semelhante ao do marcar passo da tropa na parada e a sociedade não é propriamente uma tropa subordinada a clubs de generais (…)

(…) Por isso, a mudança tem que ser sempre , essencialmente, o resultado criativo dum processo sistemático de rupturas culturais consecutivas que, com maior ou menor velocidade e grau de alteridade, irreversivelmente transforme a situação institucionalizando uma nova estética geradora duma norma que consiga fazer dos valores que a constituem as fundações dum universo institucional que a sustente e reproduza (…)

Sem comentários: