quarta-feira, 19 de outubro de 2005

A boca da tarde parece uma festa

Escrita 1

Debruças na varanda do 11º andar e olhas o imenso calçadão, o arreal e o mundo. Assim de repente, questionas a vida e a lida sabe-te sempre a pouco. Devias ter ido por ali. Ou talvez nem isso. Que outro norte haveria? A sensação do imponderável. A vertigem. Está aí algo que te embriaga e te excita. O escritor tem veias abertas. Profissão mais hemorrágica, tens de o admitir. Cronicar – lá estás tu – é fazer a comédia dos costumes. A canalha fica toda eriçada, mas o que se pode fazer? São para esquecer os nossos deuses pequenos. Mesmo os grandes são aquilo que a gente sabe. Retratar a falência dos dias que passam é a tua sina. Estás lixado…

A boca da tarde parece uma festa

Assim, as coisas bem vistas, o mundo é uma espécie de harmonia. O vasto azul do mar e um navio desliza para o cais de Mucuripe. O pessoano cais da hora marítima. Ao longo da avenida Beira-mar, o tremeluzir dos automóveis e do neón da publicidade. Faz algum sentido. Ou sentido nenhum. A boca da tarde parece uma festa. Apetecia estar num carrossel. Aquele da infância, outro nunca. Sei-o pela nostalgia com que olhas o vácuo do 11º andar. Uma harmonia e tu, em transe, assobias uma morna neurasténica. És tu ali, em pessoa, sem tirar nem pôr. Quixote vicioso e gracejas da tua Dulcineia…

Escrita 2

Preferias que eu escrevesse trivialidades. A escrita não pode perder a sua finalidade de passatempo. Depois, é sempre menos arriscado. O cronista tem este dilema: a inglória da salvação ou a morte sublime. Entre uma e outra coisa, preferias que eu pedisse uma cerveja “estupidamente”, como aliás sugeriu o garçon. Agora, mais a sério, querias que eu destilasse um veneno contra a monotonia, mas leve, levezinho, que deixasse tudo na santa paz. Prometo pensar no teu caso. Com carinho. E sentido de sobrevivência. Quase a exaltar as manhãs que cantam. Inocente, cândido e simples. Uma espécie de harmonia. Os teus olhos são lindos de morrer. E o teu afago é tudo o que reclama a minha vida. És a minha praia, sabias? Todavia, não meço bem todas as distâncias e tem horas que perco a compostura. Acho que a Constituição me garante tal direito. Se não o garante, que garantisse. Ia até dizer um palavrão…

A caminho

O Bastonário sobe ao palanque e começa a mandar vir. É tudo tão absurdo que nos desatamos a rir. Devíamos, a rigor, chorar. Mas não. Tornamo-nos imunes à invasão da nossa cidadania. Digam o que disserem, continuamos os flagelados do vento leste. Democracia é o menos indecente dos regimes, consolamo-nos com a máxima de Churchill, chiça. Mas demais faz mal, como diria um grande profeta marciano. Vemo-lo confuso se deve e trôpego se pode dar tantos pontapés na lei. Acho que a Constituição reprova. Se não o reprova, que reprovasse. O que me espanta mais são os seus pares, paradíssimos da silva, a medo de serem postos na ordem. Não vá o diabo tecê-las. Tem horas que apetece mandar um manguito concêntrico e fechar a loja para férias. Um absurdo. Igual só a gripe das aves que, inexoravelmente, desponta. A caminho…

sexta-feira, 14 de outubro de 2005

O rei e o poeta

Ao senhor Walter, em Fortaleza





O rei e o poeta



O que Petronius não suportava mesmo nada era a prerrogativa de Nero de condenar ou de absolver os romanos. Era excessivo, pensava o filósofo ao esboçar Satiricom, o melhor dos textos. Reduzir Nero a nada seria sua secreta obsessão e, pensando bem, legitima obsessão de qualquer intelectual face a certos aparatos. Nessa linha de pensamento, o adágio de Chinua Achebe: o poeta que não tem problemas com o rei, terá problemas com a sua poesia. Lá estás tu, ó minha sombra, a dizer-me que não somos romanos! Enquanto, de lés a lés, percorremos a estrada, sei já do que não queria. Era ter problemas com a minha poesia…



Luzes na ribalta



Acaba de ganhar o Grande Prémio Cidade Velha, o académico Gabriel Fernandes. Estou eufórico. A mesma euforia sentida aquando Ludgero Correia ganhou o Prémio Sonangol. Ou, quando há um ano, José Luís Tavares recebeu o Prémio Mário Cláudio, da Gulbenkian. Algo está a acontecer, enquanto o mundo é este paradoxo às voltas. Novos actores entram em cena e damos início a um novo acto. Estou mesmo eufórico. Novos paradigmas circulam no palco cultural cabo-verdiano, com causa e consequência. Os teus óculos não olham por essa perspectiva que eu sei. Viciosos esses óculos teus. Tão eufórico que estou. Luzes na ribalta. Música, maestro!



Noites grávidas de punhais



Pessoalmente achei de bonito gesto (já nem direi necessário) da verdade e da reconciliação. Todas as revoluções têm o seu residual de excesso e a nossa, por não ter sido à nossa medida, teve apenas travessuras acidentais. Havia que rever tudo, branquear o que for preciso, sublimar uma ou outra culpa e tocar o barco para a frente. O tempo é o grande moldador das vontades. E já faz algum tempo, diga-se de passagem. Isso lembra-me as amnistias depois das noites grávidas de punhais. Mas é preciso não inverter as coisas. É que, mau grado o vendilhão, a maioria quis e quer a Independência destas ilhas. As comemorações do 30º Aniversário são disso prova…



Ainda às escuras…



E, por falar nisso, está aí uma coisa que eu desconhecia: ninguém pode nada contra a Electra. Literalmente ninguém. Não me leves a mal, mas tu também, como eu, estás lébi-lébi. Isso nos ultrapassa. Assim, nesta impotência generalizada, que lembra ao sanatório geral, temos de esperar para ver o fim dessa história. Por estas e por outras que o falecido nunca acreditou nessa carochinha das privatizações…



À espera de Godot



Vi a tua lista e os magníficos nele alinhados. Uns, por mérito. Outros, por demérito. Direi mesmo, e sem papas na língua, por demagogia. Demonstrando em plena praça o teu mau gosto e o teu côvado afinal não sublimado. Senti pena, muita pena de ti, e estás perdoado por tudo. Pelo feito. E pelo não feito. Sem drama nenhum. Como escrevi numa crónica, não se deve fazer drama com a falta de sentido estético. O prezadíssimo Pranchinha morreu deveras e nada mais natural do que a morte. Morreu cá dentro, palavra. E não há grandes razões para os epitáfios. Nem para as caudalosas guisas. Ele apenas diria (se vivo estivesse) que é preciso partir como se chegou – sem alarde…

domingo, 2 de outubro de 2005

Qualquer música e outras notas

No dia mundial da música

Só pode ser coincidência feliz que o Pablo, meu filho, tenha nascido no Dia Mundial da Música. Pablo Casales e Pablo Milanês me inspiraram na escolha do nome, quando o miúdo nascia há 3 anos, em Boston. Neruda também (outro Pablo!) serviu de mote, pois o que é a poesia senão música a determinada freqüência. Aliás, tanto Pablo como Denzel (meu filho mais velho) amam a música, inumerável, diversa e variável. Naturalmente que temos com a música uma relação meramente passional. Agora mesmo, o sol a pôr-se na praia, um repentista canta, em rima de “ena” decassílabas para o meu coração. Estou esotérico e hermético que eu sei. Deve ser da morte do Pranchinha. Aniversário do Pablo, será? Ou de eu ter saltado para o lado de lá. Peço desculpas, mas eu vou com a música...


Maskrinha

Não me alinho no pensamento ideológico, preferindo antes refletir por caminhos oblíquos, como diria Jean Baudrillard. As sondagens aparecidas ultimamente (por boca e por escrito) são pouco transparentes e nada respeitáveis. Não é assim, de modo rasca e sub-reptício, que se apresentam sondagens ao cidadão. Nós já passamos desta fase. As capelinhas, umas e outras, precisam ter uma visão mais apropriada das nossas demandas. As percentagens surgidas (para um espectáculo mais do que falacioso, diga-se) só irão enganar os incautos. O inusitado e o insólito é sermos ainda bombardeados por métodos arcaicos e fraudulentos em plena dinâmica do milênio. Maskinha djan konxebu...

A manifestação do Pró Praia

A manifestação dos praienses contra a Electra parece ser um acto refundador da cidadania municipal. Ausente do país, não poderei participar da passeata que, em boa verdade, merece a adesão de todos. Menos dos masoquistas que gostam de ficar no escuro. Ou daqueles que, tendo feito da situação um negócio da China, estão sem moral para dar a cara. Não podemos admitir crédito ilimitado às circunstâncias. Trata-se de uma questão política? É algo mais profundo. Tem a ver com a necessidade de transpolitização do cidadão. A electricidade de há muito que passou a ser produto de primeira necessidade. E, neste particular, a Electra tem sido o grau zero em matéria de respeito ao cliente. Trata-se de um abuso, de uma operação de chantagem. E isso não deve ficar impune. De maneira alguma, caríssimos praienses...

Pôr-do-sol em Fortaleza

Estou em Fortaleza. Diante do mar. No calçadão, uma bonita feira de artesanato. Alguém canta, no realejo, uma musica distante. De Gilberto Gil. Diante desta profusão de gente, coisas e lembranças, tudo começa a fazer sentido. Vou aproveitar para dar uma “revisada” na saúde. Percebe-se que o espaço é uma metáfora para a estrutura da nossa existência. Uma vez ouvi esta idéia da artista plástica francesa Louise Bourgois, outra que gostava de música. De resto, no Brasil, apesar de todos os problemas, vigora o charme, a sensualidade e a alegria de viver.