sexta-feira, 9 de setembro de 2005

Soletrado vinho

Mote



Correndo riscos de um dia acabar debaixo da ponte, o escritor escreve, como diria Niechstch, para não morrer de excesso de realidade. Pessoalmente, sem nenhuma pretensão, nem pedantismo, questiono muito a razão por que escrevo. Se calhar, para não ficares impune desta grande tragédia, disse-me Pranchinha. Em verdade, não consigo descortinar de onde veio o meu texto nem para onde vai. Como os números, ele não tem princípio nem fim. Mas garanto-vos que não é um verbo à-toa. Hermético, eu? Ás vezes, com muito visualismo, outras vezes, cheio das zonas de sombra, quando não o fulgor dos instantes, tudo aqui é verdade. Até mesmo a fantasia. Por isso, estou ciente de haver química e cumplicidade com os leitores. Quem lê um texto não o faz impunemente, ora. O amor é o único elemento estruturante em tudo isso. Por sinal, leio, num extraordinário livro, de Ana Luísa Amaral, estes versos: "Talvez só este abismo/Interrompo no mapa o precipício?/No traço dos teus dedos,/rota onde quase cabem: sereia,/o alaúde, o tempo,/ Nessa rota/o suspendo". É que a boa poesia recusa linha programática ou ideológica. Ela é simplesmente (musas somente) o espaço das belas letras. Não há impunidade possível, ó gente amiga!

Soletrado nesse vinho


Impunemente, uma taça desse vinho para a festa do corpo. E o recriar de tantas almas pelos lagares. Muitos lugares de passagem, onde os teus pézinhos, imperceptíveis de tão ágeis, saltitam sobre as hordas das vindimas. No fascínio que seria o vir a melodia, o teu olhar que nem sabe quão de mim é paz, sina e salvação, essas coisas vagarosas que se instalam em nós como uma grude. E mais, esse lacre quente de puro chocolate, que é o meu desejo. Até nas pedras, nas mais puras e nas quase nuas, calhaus apenas que estiram os nossos corpos no tapete dos sonhos. Textura, nervura, o que mais queiras, nada que não roube no coração todo este silêncio que temos sido...



Nova Orleãns


Dá pena ver crianças e velhos a chorarem entre os escombros do que restou de Nova Orleãns, cidade de Louis Armstrong e de Wynton Marsalis, para falar de dois imortais da música americana. As vítimas do furacão Katrina são a fase visível da incompetência, da incúria e do racismo. Não foi o furacão que lhes trouxe a calema. Ele apenas pôs a nu algo que se escondia nos ghettos, numa cidade que se veste de música e de carnaval para o consumo dos turistas. A tragédia há muito que tinha chegado ao delta do Mississipi, desde o vergonhoso tempo da escravatura. E da subsequente segregação. E da actual proletarização do negro. A escravatura, pelo resquícios de hoje, continua pior, muito pior do que o holocausto e é preciso que alguém o diga, sem medo de desagradar os senhores deste mundo. Este inferno, mercê de uma negligência franciscana e ulterior, deve merecer o repúdio de todos. Até porque os furacões têm algo a ver com o aquecimento global e esta catástrofe há de nos lembrar que é preciso assinar o Protocolo de Quioto. Problema mais sério do que o descalabro no mercado petrolífero e na economia globalitária reinante. Haja Humanidade!





Porto da Praia e a segurança nacional



O Porto da Praia, de longe o mais vital do país, está bloqueado, mercê de um quiproquó laboral entre o patronato (Enapor) e o sindicato (SIACSA). Enquanto isso, a fazer jus à Comunidade Portuária da Praia, o país encontra-se à beira de uma ruptura. Os prejuízos são enormes e o cidadão começa a pagar na pele o desentendimento no cais da Praia. Uma crónica de Péricles Barros descreve o caso de um diabético em risco de vida, porque os trabalhadores não autorizam o embarque da carga (entre ela o remédio vital) para a Brava. Nesse excelente artigo, Barros escreveu o seguinte: Imaginem se o presidente do sindicato dos estivadores tivesse um pai a morrer na Brava hoje, por falta de um vaso dilatador? Aí os déreis ou mil-réis a mais, o raio do PCCS, o novo sistema de remuneração que reivindicam deixavam imediatamente de ser uma prioridade; este homem era capaz de matar para enviar as ampolas do medicamento que o pai carece. A par disso, os empresários estão desesperados. E os investidores começam a torcer o nariz. Fala-se em legitimidade dos trabalhadores. Fala-se também da coerência do patronato. Mas nada disso resolve o problema do cidadão contribuinte e eleitor (e muito menos do diabético na Brava). Muitas questões emergem desse cenário, a merecer cuidadoso inquérito sobre as razões e as causas, algumas muito obscuras. E a realidade vai sendo esta: muitos navios aguardam ao largo para a descarga. As ilhas do Fogo, Brava, Maio e Boavista estão desabastecidas e há ruptura de produtos. Alguns navios rumaram à Guiné-Bissau por não poderem fazer operações no porto da capital. Outros foram desviados para São Vicente. Estranhamente, apesar das regulamentações e das práticas serem as mesmas no Porto Grande, as reivindicações dos trabalhadores ali não têm sido paralisantes. Será que há lodo no cais da Praia? Razão para dizer, com o humor a doer, mandem o pai do desgraçado para a ilha da Brava a ver se dói, carago! Havendo esse lodo, seria mais do que hora de o Governo intervir. O Porto da Praia é, no mínimo, uma questão de segurança nacional!

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