quinta-feira, 28 de julho de 2005

O estado da nação

Depois de tanta insistência do Pranchinha, eis que faço um texto político. Ou, melhor dito, um texto sobre a política. Ou, com mais aggiornamento, um texto sobre o Estado da Nação. O Pranchinha mete-me em cada alheada! Todavia, pensando bem, cada um de nós tem a sua percepção sobre o Estado da Nação e dizê-lo, nestas linhas, no café ou no raio que o parta, é a sagrada prerrogativa que nos assiste. Afinal, hoje já somos o Estado da Nação e não, como aliás fomos, a Nação do Estado…

E, fazendo vontade ao Pranchinha (o amor tem destas coisas), direi que esta Nação, cada vez percebida de forma mais lacta e complexa (insularizada, diasporizada, globalizada, enfim), ganhou dimensão irreversível e que ela não se compadece hoje com a pequena política. Não que se dispense o bate-boca das esquinas, pois isso é terapêutico, mas os tempos exigem de nós mais responsabilidade de análise. Mesmo quando aplaudimos. Ou vaiamos…

Não sou dado à premonição nem à adivinhação, mas, nas minhas crónicas eu sempre demonstrei confiança na governação de José Maria Neves. Quem me leu, deve lembrar-se da minha coluna “Prato do Dia”, na qual escrevera sobre a necessidade de dar o voto de confiança a este Governo. Não por seguidismo político, afã partidário, descrença nos demais, essas coisas que não me roçam a alma, mas por conhecer a dimensão humana do homem. Desde os bancos da escola. Neves dedicou os três primeiros anos da sua governação ao controlo do défice do Estado, pois entendeu que a economia teria de esperar pelo restauro das finanças. Isso correndo sérios riscos de popularidade. Admirei-o por isso também. Anos depois, o MCA confirma essa confiança, o Banco Mundial diz mais que eu algum dia diria e o confrade Manuel Delgado, homem de coragem, laureia-o com um acto de contrição.

Mas nem tudo são rosas. Apesar dos ganhos, Cabo Verde é ainda um país de produto nacional bruto inferior a mil e quinhentos dólares por habitante e com quase 500 mil habitantes, onde 173 mil são pobres, para não falar dos 93 mil que são muito pobres. Não estaremos a pedir, em vez de uma lógica de combate à pobreza, a da promoção e a do alargamento da riqueza tendente à redução da insatisfação social? Que medidas de políticas são agora necessárias para energizar uma população cuja taxa de desemprego se situa em 17% entre a juventude? O que se poderá fazer para perspectivar o bem-estar social e da qualidade de vida nos rincões encravados de Santiago, Santo Antão e Fogo? Ou para dar centralidade às ilhas periféricas como a Brava, São Nicolau ou Maio? Como descortinar condições humanas decentes para as nossas bolsas comunitárias em São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique, ou mesmo nos ghettos das cidades do Norte, como Lisboa, Bóston e Paris?

Quer me parecer que uma nova mentalidade de trabalho, de produção, de investimento e de inserção nos seria mister a esta hora. A tal atitude transformacional, já ventilada um pouco pela imprensa, mas ainda não de todo interiorizada pelos cidadãos. Cruzar as vantagens todas – das comparativas às competitivas – e recriar o ideário da riqueza. A ter que escolher uma atitude, entre as muitas necessárias, importaria saber optar pelo “fogo” da riqueza, afinal o que garantirá a glória, segundo o sábio vaticínio de Deng Xiaoping.

Fogo? Indagará o Pranchinha pronto para duvidar dos meus rasgos estilísticos. Conheces aquela do fogo e do poeta francês Jean Cocteau? A sua casa era um verdadeiro museu de relíquias: estatuetas africanas, quadros de artistas famosos, livros raros. E Cocteau guardava tudo, e tinha um profundo amor por cada peça dessa esplendorosa casa. Numa entrevista, a jornalista lhe perguntou: "Se esta casa se incendiasse e o senhor só pudesse levar uma coisa consigo, o que escolheria?". Cocteau respondeu, com sentido de riqueza: "Eu levaria o fogo".

E o Pranchinha bem sabe que, dito isto, regresso aos meus textos sobre os insólitos. A minha praia não é escrever sobre a política, quando há a luz e a sombra, a vida e a morte, enfim. De resto, o Poder tem o seu lado perverso. É uma questão estrutural, note-se. Quem se esqueceu de Calígula, aquele que nomeou o seu cavalo a senador do Império Romano? Pode? O meu herói mesmo era Prometeu que se revoltou contra os deuses e lhes roubou o fogo para ofertá-lo aos homens.

Não sou dado à premonição nem à adivinhação, mas, nesta hora do Estado da Nação, me apraz antever que JMN mantém o ideário do fogo que se destina aos homens. Adiante…

Catedra

por Filinto Elísio



Algo, quem sabe uma melodia, teria um dia
Fazer da vida uma grande catedral, vitral
Ou algo como uma nogueira, coisa da infância
Tipo de música que dá lágrima e alegria...

Uma grande catedral seria o teu sorriso,
Flor surgida no esquecimento dos pedregais,
Onda levantada e depois estendida na praia
E estarão os teus pézinhos à beira de água...

Seria também fina neblina que nos enovela
Desaparece para os umbrais a portentosa águia
E deixa-nos assim entre a pedra e o mundo...

Algo mais zen do que o próprio silencio, faria
Deste momento mais sublime que a morte
Quem sabe um fumo breve, eterna...de catedral!

Catedral

Catedral

Em olhares de torpor

Em olhares de torpor, onde deambulei perdido,
Quis como quem, de talhante, a carne corta, romper
Os nervos e os músculos, e a revestir os ossos todos
O peso dos verdes musgos pela greta das pedras...

Quis, quase de sina e de seno, o alarde de te viajar
E ter levado a tristeza que me sombreia a tarde
Ou, então, fugir dos cárceres impostas em nós
Como deuses incessantes a cercear-nos a crença...

E o que arde ainda e não se evade do coração,
Assaz quente lacre derretido, tão vazante
Quão segredo no curso obrigatório de um rio

És como eu viagem que jamais se estanca
No estuário do imenso oceano, és como eu
Talhante desta carne enquanto não putrefaça...

quarta-feira, 20 de julho de 2005

Desejo e sina lapidando o sonho

Ao amigo Zezito de Araújo


Na minha imaginação, apenas uma rede parada, à espera que alguém a balance. Uma rede, aparentemente absurda, como Rosebud, o trenó do Cidadão Kane. Uma rede, envolta de mistério e de silencio ulterior a tudo que a consciência explica. Quem balançaria essa rede? Seria a Nega Fulô, seria?

Do Estado de Alagoas, no Brasil, eu guardava mais pressentimento do que conhecimento. Um pressentimento bom, em combustão interior. Sentimento quase de paixão. O que lateja, mas não descortina. Sabia de Djavan, das suas músicas e poemas. Mostrou-mo um amigo, do tempo do liceu. Sabia-o alagoano, apanhando em toda a rama o meu pressentimento. Tenho acompanhado a frondosa floração da sua carreira artística, com alguma frustração de não o poder trazer para um espectáculo em Cabo Verde. Ver Djavan, na Cidade Velha, partida de muitos escravos para o Brasil, alguns dos quais para Alagoas, seria desejo e sina lapidando o sonho. A mesma comoção de participar, no Fesquintal de Jazz, e de assistir ao concêntrico encontro de Rhoda Scott com a Cidade Velha. E repito o dito em 2003: cruzar gente nossa e gente outra no palco das ilhas realiza a vocação real deste país, que é a de ser o palco do Cosmos. O Fesquintal de Jazz foi, nesse sentido e modéstia à parte, a segunda maior operação triunfo da história de Cabo Verde. A primeira está sendo o 30º Aniversário da Independência Nacional.

Mas, dizia, eu não conhecia o Estado de Alagoas da perspectiva tão afilada e aprofundada quanto desejaria. E reconheço esta falha, se não mesmo esta falência, agora que o governador Ronaldo Lessa e os seus secretários de governo visitam Cabo Verde, num reencontro esperado há séculos. Do Quilombo dos Palmares, a primeira república negra do mundo, eu não sabia quase nada. De Zumbi dos Palmares, uma ou outra leitura bissexta, desaconselhando qualquer discussão sobre a problemática.

Mais pressentimento do que conhecimento, fui me apercebendo que Alagoas tem muito a ver connosco, com a nossa identidade matricial e relacional. É o próprio governador alagoano que o reconhece quando afirma “É o resgate da nossa história e precisamos resgatá-la para dar sentido ao nosso projecto de vida”. É a gente de Jorge de Lima, poeta cujos versos meu pai recitava assim à mesa:

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Este mesmo que vem infatigavelmente,
Parodiar o sol e associar à lua
Quando a sombra da noite enegrece o poente!

E que o actor Chico Assis recria, sem neurastenia, mas com recitado balanço, a poética do grande mestre. Apetece até retribuir com Jorge Barbosa, nosso poeta:

Nem sinal de planta
Nem restos de árvore
No cenário ressequido
Da planície…

O casebre apenas
De pedra solta
E uma lembrança aflitiva.

Neste momento em que os alagoanos chegam a Cabo Verde, será mais do que ocasião para nos revelarmos. Para que possamos fazer coisas em comum, numa cooperação muito digna, entre escravos hoje libertos. Será tempo, já que o espaço nos concede a oportunidade, para fazer cultura, negócios, amizade, amor, essas coisas todas, havendo o céu por limite. Assim, quem sabe o conhecimento se torne primado onde era pressentimento em mim. E já com menos mistério e silêncio ulterior, saio da imaginação para fazer da rede uma realidade. O resto a balançá-la (só poderia) a Nega Fulô…

segunda-feira, 18 de julho de 2005

DAS FRUTAS EM 5 TEMPOS

1.

Direi destes dias os momentos de prumo,
As nuvens que passam e deixam aqui travo,
Os olhares, uns de soslaio, outros de frémito,
Que serenam bem ao viés suas dilectas frutas.

Das metáforas direi o crepitar dos fogos,
Ora de águas, ora de ventos, quando não dos ares,
Pequenos nadas, somatizando febres, reversos,
Destroçadas vidas, fonemas, chispas e poemas.

E de os dizer hás de escutar tu, minha fome,
Aroma das ervas, temperos esquecidos, sais
Na boca de comer tudo, ó meu tanto pecado.

Sangue das trevas tu, ácidos e salivas, halos de ti,
Onde a borbulha das espumas sabe a frutas,
Furtivos beijos, e por dar-te o trevo destes dias...

2.

Todos os poemas são de amor na estação das frutas
Se, da minha gula, de apenas um gole te sorvesse
São tácteis desejos de chuva, outrora vidraças de ver
Tua espraiada partida, mesmo quando versos de solidão.

Todos os poemas são de outra música assim cantada
Em pertinazes versos, palavras quase ondas, viagens,
Chinas por aí, longe de nós a fímbria dos invernos
E estarei bem à porta – direi sempre - de chegada tua.

Os poemas são desenhos largados nas longas estradas
Errantes dos desertos, horas, dias, anos a fio, palavras
Pelas dunas – também direi sempre – do teu corpo.

Navegantes dos oásis, soletradas florestas de sermos,
Na noite e no dia, o esvoaçar das areias em rara clepsidra
De ti, porque doutra glosa não, serei neste silencio cativo...


3.

As frutas, uma a uma, darão suas entranhas à boca,
O roçar leve de língua ao gosto de todas as coisas,
As frutas saberão trazer do antanho nossas memórias
Em paraísos de proibir nas árvores todo o proibido.

Uma a uma, não nos poderemos delas jamais apartar,
Silabas poderosas no ulterior dos verbos acamados
Nos leitos de horizontes surgidos do útero da baía
E nas janelas abertas para o império dos sentidos.

De quantas frutas somos benditos no ventre das vontades,
Quantas lágrimas, suores e sémens, vagidos de nada,
A esventrar a espessura de tudo ser mais prima matéria.

Ajoelhados ante o silêncio, soletraremos ao infinito
O que desta idade temos ainda de eterna saudade
E entoaremos, de sussurros tão-somente, o hino às frutas.

4.

Tempos houve em que foste meu riso e meu siso,
Meu travesso sonho, de coisa alada, foste meu tudo,
Transeunte em cidade grande, eras meu néon,
À beira mar, a neblina para lá da tarde eras tu.

Também tu eras a réstia do crepúsculo e quase noite
Estrelavas a primeira estrela d´alva pela manhã
Pássaro que voa grande e redondo em torno do mundo
Cântico guardado no baú das lembranças circulares.

Eras sim tu na minha mão de apertar ninguém,
Outro alento quando arfavas à moribunda leoa
Animal caído em descanso, de qualquer remanso.

Eras e não eras nesses tempos tu, minha deusa,
No espelho transfigurado de algum reflexo,
Diletante água, meu sorriso, de coisa alada...





5.

O travo das nuvens que passam, o frenesim
Que somos à batuta dos momentos, na retina
Dá-me conta de bocados de nós, retirantes da vida,
Somente louvados daqueles que se amam.

Entrelinhas salpicadas de folhas, silvestres
Quadras impregnadas de calor e halo, incenso
Incendiado nos seios e nas coxas das flores,
Exalados aromas de quando esfíngica és tu.

Não só de palavras, das belas letras vivemos
Nós os de boca esventrada aos teoremas
Que refazem escalas das fórmulas soltas.

Mas de gestos e actos, de cujas pirâmides somos
Quais vértices onde nelas faz o sol zénite
E não terei outra eternidade senão teu olhar…



FILINTO ELÍSIO