sábado, 31 de dezembro de 2005

Feliz Ano Novo

Boas lembranças para todos, bons festejos. E, sobretudo, um Ano Novo, com muita prosperidade, paz e amor.

Nota: Arte é a condição sine qua non para uma resolução alternativa.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2005

INTERVALO

Quem te disse ao ouvido esse segredo
Que raras deusas têm escutado
- Aquele amor cheio de crença e medo
Que é verdadeiro só se é segredado?...
Quem te disse tão cedo?
Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?
Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, porque o não direi,
Que o supôs feito, porque o só fingi
Em sonhos que nem sei?
Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?
Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca
- A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.

FERNANDO PESSOA

quinta-feira, 29 de dezembro de 2005

Soneto desviado

Soletrava ela ou ele – não importa,
Pois nestas coisas do amor, o género
É puro detalhe –, na retina da solidão
Retirada do fino mel de mim.

E dizia, a cada momento, sua sentença
De ficar ou de partir e a viagem,
A mais dolorosa, diga-se, nesta nau
Onde são outros os azimutes de pertença.

Também outros, que não eu, caídos
À terra vermelha das coisas paradas,
Ajoelharão antes os deuses de esquina.

E saberão (dele ou dela) essa coisa louca,
Uma vontade de voo no improvável,
Que em mim lateja como um soneto…

Passaja d’óne

Uma espécie de nuvem atravessa a manhã e se instala, nublada e cinzenta, na minha alma. Não sei se da geofísica ou se da minha tristeza, mas o certo é que jamais verei a águia que por mim passou e, se calhar por leviano romantismo, me deixou este travo de saudade. Também confesso que a divisa entre um ano que finda e outro que começa me deixa entre a euforia e a nostalgia. Quem dera poder, como os demais espantar os fantasmas que, noite e dia, invadem cá dentro as minhas catedrais. Tudo se esvai. Inexorável é a areia que vai com o vento. Insustentável este sentimento de perda que a pertença, quase sempre, não processa. Estou na beirada do rio Charles, em Boston. Numa ruidosa rua de São Paulo. Ou, no alto do Monte Verde nesta friorenta manhã, onde a águia atravessa o meu estado da alma. Não sei se da geofísica ou se da minha tristeza…

quinta-feira, 22 de dezembro de 2005

NO CAMINHO COM MAIAKÓVSKI

por Eduardo Alves da Costa




Assim como a criança

humildemente afaga

a imagem do herói,

assim me aproximo de ti, Maiakóvski.

Não importa o que me possa acontecer

por andar ombro a ombro

com um poeta soviético.

Lendo teus versos,

aprendi a ter coragem.



Tu sabes,

conheces melhor do que eu

a velha história.

Na primeira noite eles se aproximam

e roubam uma flor

do nosso jardim.

E não dizemos nada.

Na Segunda noite, já não se escondem:

pisam as flores,

matam nosso cão,

e não dizemos nada.

Até que um dia,

o mais frágil deles

entra sozinho em nossa casa,

rouba-nos a luz, e,

conhecendo nosso medo,

arranca-nos a voz da garganta.

E já não podemos dizer nada.



Nos dias que correm

a ninguém é dado

repousar a cabeça

alheia ao terror.

Os humildes baixam a cerviz;

e nós, que não temos pacto algum

com os senhores do mundo,

por temor nos calamos.

No silêncio de meu quarto

a ousadia me afogueia as faces

e eu fantasio um levante;

mas amanhã,

diante do juiz,

talvez meus lábios

calem a verdade

como um foco de germes

capaz de me destruir.



Olho ao redor

e o que vejo

e acabo por repetir

são mentiras.

Mal sabe a criança dizer mãe

e a propaganda lhe destrói a consciência.

A mim, quase me arrastam

pela gola do paletó

à porta do templo

e me pedem que aguarde

até que a Democracia

se digne a aparecer no balcão.

Mas eu sei,

porque não estou amedrontado

a ponto de cegar, que ela tem uma espada

a lhe espetar as costelas

e o riso que nos mostra

é uma tênue cortina

lançada sobre os arsenais.



Vamos ao campo

e não os vemos ao nosso lado,

no plantio.

Mas ao tempo da colheita

lá estão

e acabam por nos roubar

até o último grão de trigo.

Dizem-nos que de nós emana o poder

mas sempre o temos contra nós.

Dizem-nos que é preciso

defender nossos lares

mas se nos rebelamos contra a opressão

é sobre nós que marcham os soldados.



E por temor eu me calo,

por temor aceito a condição

de falso democrata

e rotulo meus gestos

com a palavra liberdade,

procurando, num sorriso,

esconder minha dor

diante de meus superiores.

Mas dentro de mim,

com a potência de um milhão de vozes,

o coração grita - MENTIRA!


Nota do Blogueiro:

Natal: rebuliço do vento

Venta. Lembro-me da minha tia-avó Mamazinha a discorrer sobre o equinócio. Lá fora o rebuliço do vento. Aquele redemoinho. O silvo de uma melopeia triste. Dos que cortam na alma. E o fino corte na fímbria da tristeza. Das que se revelam apenas num olhar de soslaio. Relance de transeunte. Fugaz estrela. Ou tão-só cadente. A riscar o céu. As luzes, os sons, as gargalhadas, a mesa farta e o pinheiro enfarpelado se esvaem na retina desse espelho. De nada adianta a multidão se cá dentro deambula, alheio ao vento, um homem só…

quarta-feira, 21 de dezembro de 2005

Os juízes e os nossos deuses de esquina

(O Salão Abílio Duarte está cheio e a multidão celebra a chegada do candidato. Nos bastidores, é tudo adrenalina. Mayra Andrade está em Cabo Verde a emprestar poesia a este Natal de rebuliço comercial. No Senegal, faleceu a minha tia Ivone. Ainda estou por saber quem julgará os juízes. E os nossos deuses de esquina…)


Pórtico

As Festas aproximam-se vertiginosamente, mas a minha alma está triste com o falecimento da tia Ivone, irmã da minha mãe, pertença do que somos e do que temos em termos dos valores familiares. Naturalmente que não irei discorrer sobre este doloroso facto íntimo no S/Cem Margens que, modéstia à parte e mau grado o próprio autor, é referência pública. Entrementes, dando contas à vida, devo sublinhar que a morte é o grande reconstrutor das coisas. Relativizando tudo, mas tudo, nada se sobrepõe à perda (irreversível) de uma pessoa querida e próxima. É como se uma espécie de sol partisse para todo o sempre. Dói muito, muitíssimo…

Glosa

As Festas aproximam-se vertiginosamente, dizia, e a azáfama natalícia é consumista. O comércio é o grande ganhador de haver Natal e os pobres ficam mais deprimidos do que nunca. Sempre achei que o Natal daria uma excelente ocasião para o debate sobre o desequilíbrio social. Paradoxalmente, a celebração do nascimento de Cristo (a grande esperança dos deserdados) se transformou na exuberância dos poderosos. Pode? Não que eu seja contra a celebração e o encanto natalícios. Quem chega em casa e não encontra a Árvore de Natal, não se considere feliz, nem benquisto. Há rituais que valem a pena, porque o ritualismo faz parte do ser antropológico. De resto, cai bem sair pela Avenida Cidade de Lisboa e pela Avenida dos Combatentes pela Liberdade da Pátria e ver as luzes da cidade. Melhor, só a voz de Nat King Cole a cantar “Merry Christmas To You”, no rádio do automóvel. Vertiginosamente, e de um só gesto, apetece-me abraçar a todas as pessoas que amo…



Deliberações & milénio

Uma decisão das autoridades eleitorais, sem efeitos práticos, que o Falecido comentaria “apenas para o inglês ver”, manda um partido político retirar cartazes de propaganda eleitoral colocados há três meses. Esse ilícito, que já teve o seu impacto danoso, está a ser reparado tardia e morosamente, permitindo à opinião pública pensar que a impunidade reina e que há uma tendência de “bananização” da República. E, já agora, porque “o cujo nada tem a ver com as calças”, aproveito para expressar solidariedade ao jornalista José Leite, do Noite Ilustrada, diante do acto censurante (sem aspas, meus senhores) a uma peça feita com isenção e deontologia jornalísticas e que não belisca os princípios que enformam o sistema e a lei eleitorais. Estamos a entrar em 2006, caríssimos. Há coisas que não cabem no milénio!

Com Cabo Verde no coração

Estive na Assembleia Nacional a ponderar a nossa sala cheia. O candidato Pedro Pires dizia, às tantas no seu discurso de apresentação, que a questão de fundo já não é a de haver ou não a democracia, mas sim da qualidade da democracia que existe no país. E, se a conversa antes era a sala composta do adversário, o que se dirá agora da transbordante multidão que ali estava a apoiar o “Amigo Comandante”? Mas o tema recorrente terá de ser adiado novamente, já que é impossível não pensar na minha tia Ivone, recém falecida, cuja alegria de viver merece, aqui e agora, a recitara da minha imensa saudade…

sexta-feira, 16 de dezembro de 2005

A hora íntima

por Vinícius de Moraes


Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: – Nunca fez mal...
Quem, bêbedo, chorará em voz alta
De não me ter trazido nada?
Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?
Quem jogará timidamente
Na terra um grão de semente?
Quem elevará o olhar covarde
Até a estrela da tarde?
Quem me dirá palavras mágicas
Capazes de empalidecer o mármore?
Quem, oculta em véus escuros
Se crucificará nos muros?
Quem, macerada de desgosto
Sorrirá: – Rei morto, rei posto...
Quantas, debruçadas sobre o báratro
Sentirão as dores do parto?
Qual a que, branca de receio
Tocará o botão do seio?
Quem, louca, se jogará de bruços
A soluçar tantos soluços
Que há de despertar receios?
Quantos, os maxilares contraídos
O sangue a pulsar nas cicatrizes
Dirão: – Foi um doido amigo...
Quem, criança, olhando a terra
Ao ver movimentar-se um verme
Observará um ar de critério?
Quem, em circunstância oficial
Há de propor meu pedestal?
Quais os que, vindos da montanha
Terão circunspecção tamanha
Que eu hei de rir branco de cal?
Qual a que, o rosto sulcado de vento
Lançará um punhado de sal
Na minha cova de cimento?
Quem cantará canções de amigo
No dia do meu funeral?
Qual a que não estará presente
Por motivo circunstancial?
Quem cravará no seio duro
Uma lâmina enferrujada?
Quem, em seu verbo inconsútil
Há de orar: – Deus o tenha em sua guarda.
Qual o amigo que a sós consigo
Pensará: – Não há de ser nada...
Quem será a estranha figura
A um tronco de árvore encostada
Com um olhar frio e um ar de dúvida?
Quem se abraçará comigo
Que terá de ser arrancada?

Quem vai pagar o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?




Rio de Janeiro, 1950

quarta-feira, 14 de dezembro de 2005

Pinóquio ou Ronda nº 2

Contextualizando

(Uma hora depois de rodarmos os bares da cidade da Praia em busca da paz de espírito: Motcha, fechado; Pirilampo: fechado; Petu Pomba, fechado; chegamos ao Paulino, no Palmarejo. Acesa discussão. A escravatura foi abolida há 169 anos. Alguns dos nossos bisavós foram escravos. Mas até esta não discutimos a fundo a questão. Temos falado do Holocausto, outra tragédia, mas acontecida há menos tempo. As luzes na avenida prenunciam o Natal. Fala-se da escrita. O poeta é um fingidor, glosou alguém Fernando Pessoa. Eu queria tanto contar aos meus filhos a história do Pinóquio. Festival marginalizado, dizes no teu Blog)

Zero

Amiga, a grande verdade é que o mundo começou sem o homem e há de terminar sem ele. O ciclo completo não é necessariamente antropológico. Leio o teu Blog e gosto das tuas razões. Um dia, hás de entender que o mundo é um grande paradoxo às voltas. Vale termos os Raiz di Polon, Amiga. Gostei daquela: Está tudo a ver um Benfica – Manchester, um Porto – Artimedia. Ou então, a encher avenidas em passeatas...

Boa nova…lufada de ar fresco

Soube, há dias, pelo meu pai que Arménio Vieira lança em breve um livro de poemas. Nessa mesma tarde, encontro o Poeta por acaso e este confirma-me ter na calha o documento. Venha o livro, agora ou nunca. Quero ler boa poesia e não a versalhada que pulula por cá. Aguardo, com expectativa, o livro de poemas do Conde de Silvenius, um veneno contra a monotonia…e a mediocridade!

Natal a ser…

Aproxima-se o Natal e ficamos entre tristes e contentes. As luzes e as cores trepidantes trazem-nos algo como uma nostalgia e, mesmo calados cá dentro, a nossa alma chora de alguma perda. Viver é perder. Perder-se, para ser mais próprio. E no Natal, na azáfama natalícia, que nos sentimos mais sós no mundo. Ou a sós com ele, como tu predizias quando era luar o que nos encantava à beira das horas…

Cinematografia nacional

Parece ter chegado a hora de abordarmos o cinema e o audiovisual em Cabo Verde. A questão de fundo não é este ou aquele festival de cinema. Não coloquemos o carro diante dos bois. Está fora de questão adiarmos o debate. Importa, a bem da nossa cultura e identidade, uma cinematografia nacional. Para já, temos de criar as infra-estruturas institucionais que possam, via cooperação internacional e outros canais, fomentar a Sétima Arte. O cinema criou um manancial de obras-primas em pouco mais de um século. Tornou-se a mais popular e mágica linguagem antes da multimédia e fixou imagens transcendentais na retina da humanidade. Só que não se faz cinema com o aparato e os significantes. É preciso tocar no ponto certo. O Ministério da Cultura não poderá aderir ao cinema apenas por uma questão de marketing. Ele tem de se reestruturar organicamente para que o cabo-verdiano veja e produza cinema. A cadeia tem de ser montada. Aqui e agora…

Cinema Paradiso e o festival

Acontece o Festival de Cinema. Sem público, o que não é dramático em qualquer mostra de qualidade. A qualidade é hermética, me perdoem os populistas e demagogos. O meu amigo sente-se nervoso, perdido e sem estribeiras. Começa-se a procurar culpados. Típico de pessoas que não possuem referencial e tentam justificar a sua mediocridade diante da crise. Raramente a qualidade é pão que agrada todas as bocas. Mas, dizia, o festival acontece com alguns gatos-pingados e os burocratas ficam descontentes. Queriam ter público, imprensa, secretário de estado, ministro, fogo de artifício, gala, Hollywood, a ver se era daquela que o comboio entrava nos trilhos. Mas ainda é prematuro…

A propósito do cabaret no Ilhéu dos Pássaros

Ocupação do Ilhéu de Santa Maria? Eu também tenho as minhas reticências. Não que eu seja contra o investimento do magnata David Chow. Cabo Verde precisa é de mais e mais investimentos. Mas quando as coisas são de fundo, elas merecem ser socializadas com os cidadãos. Queremos saber a natureza de tal investimento no Ilhéu de Santa Maria, escrutinar criticamente os prós e os contras. Afinal trata-se de um formidável património histórico, paisagístico e ecológico. Por isso, as intervenções estruturais demandam, no mínimo, algum consenso da cidadania. O crescimento económico é bem-vindo, mas não o queremos a qualquer custo…

Sim, falávamos de Pinóquio

O escritor é uma espécie de Pinóquio. De tudo o que escreve, cresce-lhe este nariz. E os leitores já sabem nada é verdade. Nem mesmo a verdade. Escrever, dizia Pessoa, é fingir tão completamente a dor deveras. Bem criança, entre os meus seis e sete anos, eu ouvia contar a história do Pinóquio e ficava numa pilha de meditações existenciais. Era uma história, não se sabe se de rir, se de chorar. Como era bom ser Pinóquio e equilibrar sobre os ombros de outros bonecos. A vida é um show de marionetas…

segunda-feira, 12 de dezembro de 2005

Porque...

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.



Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 5 de dezembro de 2005

Não há praia para ninguém, madame

As boas e as más da Tapadinha

Há coisas que só acontecem aqui na Tapadinha. Umas boas, como a cachupa refogada ou o funaná lento. E outras horríveis, como o outdoor eleitoral antes da campanha ou, pior ainda, a covardia de o tirar. A jeito ou a eito, como diria o falecido no seu tratado “Oito ou Ointenta, as Dicas da Malandragem!”. Pelas coisas boas, vamos ficando nesta paragem e, nas entrelinhas, empunhando a bandeirola, mesmo que a dita pareça um pouco o logótipo daquela lata de banha da CEE. Pelas más, me perdoem as muito feias, mas beleza é fundamental, estaremos dispostos à lida contra a malvadeza e a carniça que envergonham a malta.

A Avenida enfarpelada

A Avenida, enfarpelada de luzes, prepara-se para a inauguração. Por uns instantes, somos já cosmopolitas. Por outros, continuamos provincianos. Cosmopolitas, quando pensamos a cidade de molde integrado e competitivo. Uma urbe disposta a ser um espaço equipado, com cidadãos qualificados. O binómio do desenvolvimento. E o resto, tretas. E provincianos, quando temos a sensação de trabalho acabado, obra fechada. Nivelando a cidade por baixo, comparando com outras da região ou, pior ainda, com o passado. O muito que já se fez, é pouco. O cidadão quer melhor aeroporto, porto, circular, avenida, rotunda, universidade, praça, mercado, parque, centro comercial, centro cultural, enfim, melhor tudo. Bem-estar e qualidade de vida, no mote dessa inauguração bonita. Ora, a cidade compara-se com o futuro. A saudade que se tem é do futuro…

Ao leitor atento

Mal abro a caixa-de-correio do Hotmail, dou de caras com uma mensagem indignada. Alguém que se assume apreciador do S/Cem Margens protesta contra a minha última crónica. Impõem-se-me uma resposta, noblesse oblige. Tive de explicar ao leitor que eu jamais seria pau-mandado. Se estou a apoiar este ou aquele é por pura convicção política. Melhor dizendo, convicção cultural. Acredito que este será capaz de ter sentido histórico e não se vender ao desbarato a um punhado de estrangeiros. E aquele tomará providências cautelares contra a máfia instalada na vizinhança. Pau-mandado é o apoiante acrítico que não destrinça aquele que governa daquele que se governa, porra. Agora, gostar mesmo, gosto da poesia e de coisas mais elegantes. Política não resiste à idealização. Arte, sim senhor. Paixão. Em matéria de coração, sou leviano assumido. Apaixono-me aos 44. Um caso sério…

O Plateau e o Monte Vermelho escavado

Dou uma volta pelo Plateau e tenho a impressão de que alguém anda a sabotar este lugar. Desconfio que seja ódio social, coisa parecida. Vingança histórica. Ou simplesmente incompetência. Nossa, naturalmente. De todos nós. Que não temos nem força, nem resistência, para dizer basta. Cidadania também seria afirmar o Plateau. Protegê-lo e fomentá-lo a ser o lugar de referência e memória de uma cidade, menina do mar. Só que o Plateau não é um problema só dos nascidos e residentes, dos munícipes direi, da Praia, mas uma questão que interpela a todos os cabo-verdianos. Desde a segunda metade do século XVIII que este espaço urbano é matricial da cabo-verdianidade. Não reconhecer isso é inibir a nossa memória e votar o nosso passado ao esquecimento. Não reconfigurar esta trajectória, que tudo alberga de identitária, significará uma perda colectiva com consequências imprevisíveis. O Falecido, que Deus o tenha, do alto do seu exagero, vaticinava a premonição da merda generalizada. Já não será só a falta de água e da energia eléctrica, dizia. Mas os esgotos vão encanar e o Monte Vermelho, escavado como está, cairá por terra. E os extractores de areia, além de matarem as tartarugas e de salgarem os lençóis freáticos, acabarão com as praias. Dentro de pouco tempo, já não há praia para ninguém, madame. O caos…