quinta-feira, 28 de outubro de 2004

RETRATOS DO DITO E DO LATENTE

por Filinto Elísio


GLOSA 3

Talvez que o almejado texto (?) fosse incendiar a nossa pequena Roma para que se revele uma alma límpida, ou o esplendoroso sexo dos anjos. Mas as palavras possíveis, tal como uma partida sem regresso, deslizam assombrosamente nas águas da realidade. Por ora, fico no frágil e precário equilíbrio que se auto-sustenta nesta dialéctica entre o que é dito e o que fica latente.

PUNK DA PERIFERIA

Dois adolescentes, se calhar eufóricos de tanta juventude, derrubam o contentor do lixo e saem a correr felizes com a travessura. Os cães, em matilha, aproximam-se e disputam, com os meninos andrajosos, os despojos vertidos na calçada. Cena degradante. Uma das coisas que me incomoda na cidade da Praia é o lixo. Naturalmente que aprecio o esforço da edilidade em limpar as ruas e recolher o lixo. Muita mudança se operou em termos de saneamento. Pela positiva, é claro. O que me incomoda realmente é a apatia do munícipe perante o lixo que produz. A resistência em tornar esta Praia que nos une (e não é um mero jargão), numa cidade ecologicamente correcta. Não há dúvida de que o morador precisa de conhecer os ciclos alternativos do lixo e abrir a mente para as janelas da reciclagem. Esses dois adolescentes, que parecem ter saído do «Punk da Periferia», denotam falta de uma certa cidadania…a que está informada para fazer do lixo um recurso.

MARIA PAPIRUS

Todas a vezes que escrevo sobre esta questão, a que chamaria aqui o fluxo do lixo ao luxo, vem à minha mente a imagem de Maria Papirus, lá de Salvador da Bahia. Esta minha amiga faz do lixo blocos, luminárias, porta-retratos, cadernos e agendas em papel reciclado. E faz cursos de reciclagem para os mais carenciados da sua cidade. Ei-la, poderosa: vamos aprender a fazer o luxo do lixo. Do lixo uma delicada obra. Arte que pode mudar rumos e promover cidadania. E reciclar um monte, uma infinidade de vidas. Pelo rendimento e pela consciência. Combater a pobreza, mais do que criar receitas, é ganhar a cidadania. Mesmo que fosse só esse gesto, já teria valido a pena.

CORES 1

O branco, que é a soma silenciosa do conjunto do espectro cromático, é a cor que sobra quando todas as outras desaparecem: a orgulhosa incandescência do branco absorveu todas as qualidades— de refracção, de difusão, de reflexão— de todas as outras cores. É a cor canibal absoluta, aquela que assimila todos os princípios cromáticos, aquela que soube incorporar todas as virtualidades do espectro, aquela que não teve medo do vermelho, do amarelo, do azul. O branco comeu todas as cores. As flores da cerejeira alcançam o máximo da sua brancura um instante antes de cair e morrer.

RADIO 1

Escuto no rádio o trecho de um bate-boca parlamentar. Acho que falavam de telemóveis ou algo afim. Mas que linguagem bera e vampiresca. De zero a vinte, quanto é que o leitor atribuiria a esse aparte? Bruxo. A discussão em causa estava para um debate sério tal qual está o terrorismo para a política, sussurra-me Pranchinha, o omnipresente. E não sei porquê – coisas do inconsciente, só pode –, e ele me lembra de Cícero, em Phillipics: «Todos os Homens honestos mataram César. A alguns faltou Arte, a outros Coragem e a outros Oportunidade mas a nenhum faltou a Vontade».


ILDO

Sim. Os olhares regressam como as estações e ficam assim à roda da memória. Os olhares – pássaros apenas –, de galho em galho, poisam na copa das minhas árvores. Longitudinal tudo. Existencial também algo. Todo aquele que procura lugares. Os olhares são, de verem os sítios do mundo, pródigos filhos à beira dos sonhos. E, como as estações (repito), eles regressam…sempre!

BLOGS 2

Os blogs são um médium, com vida e dinâmica próprias. Eu, por exemplo, quero fazer do Albatrozberdiano um corredor de fruições: um poema de Fernando Assis Pacheco; conto de Virgílio Pires; quadro de Miró; romance de Gabriel Garcia Marquez; retratos do Pablo e do Denzel; filme de Frederico Fellini (a cena do maluco em «Amarcord» é intensa) ou de Andrei Tarkovsky; hai-kai inconseguido; beijo no happy end de um western banal. Insisto para que o leitor entre na blogsesfera. Tudo pode acabar em beijo…

BEIJO

Ali no Farol, onde os amantes se entregam à eternidade, uma esplêndida lua entra em cena. A baia desta cidade tem o seu charme e ao desamparinho um jovem casal se torna beijo. Chinua Achebe, escritor nigeriano, escreveu que o poeta que não tem problemas com o rei, terá problemas com a poesia. E tudo que é desconexo se encaixa. Aqui e agora. Mas para o retrato desta minha alma, acho que chega. O resto fica latente. Na próxima semana, se der, haverá mais…


quarta-feira, 27 de outubro de 2004

Gláucia Nogueira apresenta a vida e a obra de B.Léza

UMA MONOGRAFIA sobre a vida e a obra de B.Léza (Francisco Xavier da Cruz, 1905-1958) será publicada pelo Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro (IBNL) para assinalar o centenário do nascimento do célebre compositor mindelense, que se comemora em Dezembro de 2005. Da autoria da jornalista Gláucia Nogueira, responsável pela área de Cultura de “Paralelo 14”, o trabalho sobre B.Léza resulta de pesquisas e entrevistas que vêm sendo realizadas há vários anos, sobre personagens da música cabo-verdiana do século XX.

terça-feira, 26 de outubro de 2004

ILDO LOBO - só a morte é lonjura pura

Jovem herança de luz. Quando, no fundo
poço, a manhã antiguidade úmbria.
Profundo— esse aroma de fuligem, seu amoroso surdir.
Então, mundo é esse enigmático nome a vir,
exaurindo a incomovível placidez dos serrados.
Por si move; qual se deus, brisa ou sina.
Gravidade súbita amorenando a tez hialina,
pela hora em que pelos roucos valados
solidão é essa névoa tão sem peso, sua
lembrada altura sublinha que toda
a vida é ida; ou só ondeação da usura
por esse escalavrado trilho, rio que estua
neste estremunhado grito quase toada,
relembrando que só a morte é lonjura pura.

José Luís Tavares
20 de Outubro de 2004

domingo, 24 de outubro de 2004

Em prol do Slow Food

Fritadeiras a transbordar de batatas e hambúrgueres embrulhados em papel vegetal. Cola com pedras de gelo e semi-frios regados com chocolate quente. Refeições em tamanho médio, grande ou duplo. Há para todas as idades, formatos e temperos. As cadeias de fast food puseram os miúdos a fazer birra por um Happy Meal, os adolescentes a contar os tostões para um Burguer King e os pais a cederem às choraminguices dos filhos. Estão em qualquer esquina e em centenas de países. Revolucionaram os hábitos alimentares e desencadearam guerras com os defensores comida caseira. Tudo isto em menos de cinco décadas.

quinta-feira, 21 de outubro de 2004

Mona Lisa era uma moça nobre florentina

A Gioconda fora uma moça nobre florentina que morara no vale do Chianti, de acordo com uma pesquisa publicada recentemente. O estudo, realizado pelo especialista Giuseppe Palianti, afirma que a mulher do sorriso enigmático era Lisa Gherardini, a segunda esposa do próspero comerciante florentino Francesco del Giocondo. A tese de Palianti confirma as afirmações de Giorgio Vasari, artista e, ao mesmo tempo, autor da primeira história crítica da arte italiana, publicada em 1550 e onde escrevera que «Leonardo fez para Francesco del Giocondo o retrato de sua esposa Mona Lisa».

quarta-feira, 20 de outubro de 2004

ÚLTIMO TESÃO

Fernando Assis Pacheco


Alombo contigo há uma porção de anos
e vou-te dizer és um chato
não tens ponta de paciênciapara a vida
nem para ti próprio
já te ouvi discursos a mandar vir
já te carreguei às costas
bêbedo como um Baco de aldeia
mijando as ceroulas
és um adolescente retardado
faltou-te sempre a quarta do bom senso
vez por outra um livrinho
de versos
vez por outra nada
qualquer um do teu tempo
está bastante melhor do que tu
deputado administrador de empresa
ministro da maioria
puta (alguns chegaram a isso)
só tu meu inocente brincas com a neta
açulas o cão pedindo
à família que te ature
o tipo um dia destes morde-te
que é para aprenderes
mas aqui entre amigos
vou-te dizer também
uma coisa importante não cedas
à tentação de mudar
fica nesta pele que é tua
como é que tu escrevias
merdalhem-se uns aos outros
o país mete dó
guarda o último tesão
para mandares
meia dúzia de canalhas à tábua

Lisboa5/6/9-VII-95

ILDO LOBO - Incondicional-Confidência

Faleceu nesta quarta-feira, na cidade da Praia, ILDO LOBO, 51 anos, vítima de uma parada cardíaca. O cantor, considerado um dos pilares da música moderna cabo-verdiana, sofria de diabete em estado avançado, que não o impediu de gravar o seu último disco (ainda não publicado pela Lusáfrica), há dois meses. O empresário Djô da Silva, da Lusáfrica, anunciou que o álbum levaria o título de “Incondicional-Confidência”. O lançamento estaria previsto para 27 de Novembro e o malogrado iniciaria uma tournée para a sua apresentação internacional.

terça-feira, 19 de outubro de 2004

Tchabéta di nha tofu


Tchabéta di nha tofu com cuscus prá lá de Marraquexe


Receita de Mito, Mare Calamus


Filinto:
Não te esqueças da receita de Carilada de Tofu, Mito
Mito:
Ok
Mito:
Eu não sei escrever receitas
Filinto:
Manda daqui que eu dou um toque
Filinto:
O que a Carilada leva. Sê criativo, vamos
Mito:
A minha cozinha desenvolve duma forma,...sei lá, como uma rapidinha
Mito:
Eis os ingredientes:
Azeite
Massa de alho
Caril
Sumo de limão
Filinto:
Keep on going, baby
Mito:
Coentros
Alho francês
Tomate
Pimentão vermelho
Tofu
Cuscus marroquino
Mito:
Faz-se primeiro um refogado de alho francês e tomate
Filinto:
Et aprés?
Mito:
E depois vão entrando os outros ingredientes pouco a pouco
Filinto:
Como assim?
Filinto:
Ao lume ou ainda a frio?
Mito:
O tofu entra quando o refogado estiver apurado
Mito:
Deixa-se marinar o tofu apenas para subir ligeiramente
Filinto:
Alguma noção de quantidade?
Mito:
Ao lume brando, claro
Mito:
Esse é que é o meu problema…quantidade
Filinto:
Alguma música de fundo, tipo aquela da «feijoada completa», de Chico Buarque?
Mito:
Mas a porção do tofu é mais ou menos do tamanho de uma barra de sabão azul
Filinto:
Gostei do demo comparação di fala
Mito:
Por último, entram os coentros, para perfumar
Mito:
Preferia um Ravi Shankar. Caso não haja...algo meditativo...
Filinto:
Algum título em especial
Mito:
Pode ser o Vasco Martins
Filinto:
Com gelo ou sem gelo? Que tal Bau?
Mito:
O acompanhamento é cuscus marroquino com passas, salsa, amêndoa picada e cominhos
Mito:
Bau serve, claro
Mito:
Lembrei-me do Vasco, por causa das simpatias dele por new age
Filinto:
Está aqui um grande prato. Acepipe de ouro, como diria o outro. Com todas as letras
Mito:
Do tao, feng shui e sei lá que mais chakras e mantras
Filinto:
Da próxima, serei eu com o Tagine à Filas
Mito:
O nome pode ser Tchabéta di nha tofu
Filinto:
Para se degustar ao primeiro rendez-vous, estou mesmo a ver
Mito diz:
(carilada)
Filinto:
Obrigado que vou processá-lo para os bloguistas
Mito:
E pode entrar um tintol
Mito:
Depois dou-te a receita do meu creme de abóbora
Filinto:
Recomendas qual?
Mito diz:
Pode ser um manecon tinto
Filinto:
Impressive
Mito:
Thanx
Mito:
A entrada pode ser papaia com queijo fresco que não há em Cabo Verde ou melhor não existe uma produção consistente
Filinto:
Presunto?
Filinto diz:
Ou salmão fumado?
Mito:
Presunto não
Mito diz:
Também não
Filinto diz:
Ou, então, carpaccio de atum?
Mito:
Pasta de atum
Filinto:
Muito bem
Mito:
Com tomate
Filinto:
Entrada «cores & nomes»
Mito:
Selfish tuna
Mito:
Entrada pode ser Selfish tuna
Mito:
O cuscus é PRA LÁ DE MARRAQUEXE
Filinto:
Alguma música especial para se comer a entrada
Mito:
Sim
Filinto:
Vas y
Mito:
Um prelúdio bachiano. Flute Suite in G minor - Prelude
Mito:
& para terminar
Mito:
Depois de um kiwi com queijo di terra
Mito:
Para sobremesa, um café com umas gotas de irish cream
Filinto:
Estou a tomar nota
Mito:
E ainda um beijo numa morena chamada,...
Mito:
Após um repasto destes só resta uma siesta com ou sem sombrero…a ouvir de preferência o canto 5 das bachianas do villa lobos
Filinto:
Eu te amo
Mito:
À sobremesa, a banda sonora é : the nearness of you, de Philip Bailey.

segunda-feira, 18 de outubro de 2004

Alguns sites de interesse (cortesia de Mito)

http://www.babab.com

http://www.stanford.edu/~sanmigue/femur/hogar/hogar.html

http://www.rizoma.net/hp6.htm

http://www.ubu.com/sound/index.html



Mostra de Cinema - Imagens Lusófonas

Mostra de filmes, produzidos e realizados no espaço lusófono, circulam este mês no Mindelo e na Praia, pela iniciativa da Associação Cultural Fou-Naná Projectos. Na cidade dda Praia, a mostra realiza-se no Palácio da Cultura.

Vinhos cabo-verdianos no Terra Madre

Os vinicultores Rosandro Monteiro e Armando Montrond, e Germano Fonseca (produtor de queijo), membros da comunidade dos produtores de Vinho de Chã de Caldeiras, ilha do Fogo, participam, pela primeira vez, do Terra Madre, encontro mundial entre as comunidades do alimento, organizado pela “Slow Food”, em Turim (Itália). O encontro Terra Madre, que este ano coincide com o “Salone del gusto”, tem como objectivo compartilhar as experiências das pessoas ligadas ao sector da produção e distribuição dos alimentos de qualidade, no respeito do meio ambiente e dos recursos naturais.

Mar e Luz

Mário Lúcio (cantor, compositor, multi-instrumentista, musicólogo, advogado, artista plástico, poeta, romancista, político, sei lá, homem multi-dimensional), moderno, moderno, moderno, como Tchalé Figueira, Mito, João Branco, António Correia e Silva ou Valentinous Velhinho, vai terminar o seu tour «Mar e Luz» de forma apoteótica. O espectáculo acontecerá na cratera de um vulcão na Chã das Caldeiras, ilha do Fogo, onde ele assinalará os seus 40 anos. «Fazer 40 anos em tempos tão aziagos é um acto de coragem», disse um amigo comum. Já o poeta Mário Fonseca teria escrito que «Viver tem de ser até vinte». Por isso, Mário Lúcio duplica a dose, a viver 2 x 20. Entrementes, ó meus aficionados da boa música cabo-verdiana (Baú, Tcheka, Lura, Dudú Araújo, Mayra, Tito, Ramiro e Cesária), consultem o homepage www.mariolucio.com ou www.mario-lucio.com e fiquem ligados.

Mito expõe os seus últimos trabalhos

O artista plástico Fernando Hamilton Elias (Mito) - pintura, bricollage, fotografias, poemas e vídeo-poemas - expõe, a partir de 28 de Outubro, os seus últimos trabalhos na Vila do Tarrafal, Cabo Verde, no âmbito da Festa Graciosa da Juventude. A exposição-venda, intitulada Timenti lua ka kamba, perfila oito peças concebidas ao longo deste ano pelo artista. Prevê-se também uma outra exposição, desta feita no Palácio da Cultura, na cidade da Praia, durante o mês de Novembro. Residente em Portugal há quinze anos, Mito é dos mais «modernos» artistas plásticos cabo-verdianos. Para acompanhar o portfolio deste artista e curtir esse eterno gesto de (des)codificar compondo, como diria Mafalda Serrano, consultem o Website: http://www.tanboru.org/mito.

Femme nue, femme noire

Leopold Sédar Senghor


Vétue de ta couleur qui est vie, de ta forme qui est beauté
J'ai grandi à ton ombre; la douceur de tes mains bandait mes yeux
Et voilà qu'au coeur de l'Eté et de Midi,
Je te découvre, Terre promise, du haut d'un haut col calciné
Et ta beauté me foudroie en plein coeur, comme l'éclair
d'un aigle
Femme nue, femme obscure
Fruit mûr à la chair ferme, sombres extases du vin noir,
bouche qui fais
lyrique ma bouche
Savane aux horizons purs, savane qui frémis aux
caresses ferventes du Vent d'Est
Tamtam sculpté, tamtam tendu qui gronde sous les
doigts du vainqueur
Ta voix grave de contralto est le chant spirituel de l'Aimée
Femme noire, femme obscure
Huile que ne ride nul souffle, huile calme aux flancs
de l'athlète, aux flancs des princes du Mali
Gazelle aux attaches célestes, les perles sont étoiles sur
la nuit de ta peau. Délices des jeux de l'Esprit, les reflets
de l'or ronge ta peau qui se moire
A l'ombre de ta chevelure, s'éclaire mon angoisse
aux soleils prochainsde tes yeux.
Femme nue, femme noire
Je chante ta beauté qui passe, forme que je fixe dans
l'Eternel
Avant que le destin jaloux ne te réduise
en cendres pour nourrir les racines de la vie.

sexta-feira, 15 de outubro de 2004

The Emperor of Ice-Cream

Call the roller of big cigars,
The muscular one,
and bid him whip
In kitchen cups concupiscent curds.
Let the wenches dawdle in such dress
As they are used to wear,
and let the boys
Bring flowers in last month's newspapers.
Let be be finale of seem.
The only emperor is the emperor of ice-cream.
Take from the dresser of deal,
Lacking the three glass knobs,
that sheet
On which she embroidered fantails once
And spread it so as to cover her face.
If her horny feet protrude, they come
To show how cold she is, and dumb.
Let the lamp affix its beam.
The only emperor is the emperor of ice-cream.

(Wallace Stevens)

A Drink With Something In It

There is something about a Martini,
A tingle remarkably pleasant;
A yellow, a mellow Martini;
I wish I had one at present.
There is something about a Martini,
Ere the dining and dancing begin,
And to tell you the truth,
It is not the vermouth--
I think that perhaps it's the gin.

(Ogden Nash)

ESTA VOZ É QUASE O VENTO

Há um cântico, um segredo que recomeça
nas vogais do nome, e já não é nada.
José Agostinho Baptista, Esta Voz é Quase o Vento

Gata?

De repente, não mais do que de repente, como diria Vinícius de Moraes, a cortina abre-se e começa o último acto: o da Verdade. Poemas, hinos, imagens...tudo se esvai e o drama é real. Da plateia, um homem levanta-se e sai da sala. Gata? Mas onde ouvira aquilo? Num blog? Havia-o lido, qual voyeur, num email? O pior são as gargalhadas. O homem atravessa a sala, que se torna uma longa caminhada, e ganha o mundo sideral. Vínicius de Novo no «foi eterno, enquanto durou». Agora, era partir (partir mesmo)...eternamente.

A BUNDA, QUE ENGRAÇADA

de Carlos Drummond de Andrade


A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.


Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora - murmura a bunda - esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.


A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por
sina cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.


A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.


Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.


A bunda é a bunda,
redunda

A BUNDA, QUE ENGRAÇADA

A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.


Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora - murmura a bunda - esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.


A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por
sina cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.


A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.


Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.


A bunda é a bunda,
redunda

Praia com os de Denize

por Filinto Elísio

Na passarela, uma manequim (nomeio-a Denize, mas o nome podia ser Carla ou Gizela) faz a sua trajectória de gazela sob luzes, sons e aplausos. É uma praiense jovem, poderosa e bela. Ela desfila uma túnica de seda, estampada com motivos do Egipto faraónico, assinada pela estilista senegalesa Amadou Diop. Aliás, retive a cena numa das várias noites maravilhosas da III Semana Cultural Senegalesa em Cabo Verde, ocorrida no Auditório Nacional da Praia. Não me abstive de contar depois ao Mito, esse arauto de MitoMorfaces, num email que é mais ou menos este arquitexto, a parábola de tal passarela e o paradigma da Praia, nosso verso e reverso, com Denize que podia ser Carla ou Gizela .
Nem só de salsa e rosma­ninho, sem despeitar alho e cebola, são as minhas longas cavaqueiras com o Mito, em conspirativos encontros nas mais incríveis paragens deste mundo. O último rendez-vous, tivemo-lo em New York, no Village, para ser mais preciso. E a agenda, entre um daiquiri e outro, foram as alcachofras, espargos, alcaparras, aipos, agriões, chicórias, orégãos e, haja saúde, azeitonas e pimentos. E, antro­pofagicamente, fomos abordando a nossa Praia (sem crise, ó gente!), causa consequente e co­mum. Juramos, um destes belos dias a vir, trocar dedos de prosa no Poeta, ambiente tão pantagruélico quão gargantuíno, na condição de retornados que, no fundo, jamais partiram. Afinal viandas caprichadas e capitosos vinhos são o quanto basta para olharmos o Ilhéu de Santa Maria com olhos de Denize.
E que a paisagem nos saiba tão bem (manga, manga, manga!) como as noites ca­libradas das me­trópoles a tremeluzir de Arte e a pulsar de Variedades. E as­sim...a paisagem que hoje se retoca, as avenidas que esventram caminhos e o tráfego que suscita o frenesim diferente têm sua razão de ser. Novas sociabilidades e novos núcleos de poder, sem alterar o ideal republicano, demandam, enfim, de todos nós mais e outra cidadania. A dimensão cultural daqueles (cada vez mais tantos, felizmente) que se acham munícipes atentos e responsáveis, crentes de uma ruptura para melhor e de uma viragem para o infinito.
Tudo isso, para rematar (a risco de panfletário) que...o palavrório sobre a Praia mal amada, sobre a Praia não cantada e sobre a Praia de ninguém, é tudo tretas. Sadomasoquismo de certa gente! O que importa é sermos todos descomplexados e antro­pofágicos e, agora como nunca, instaurar, numa dessas muitas rotundas da via rápida, um monumento portentoso que seja rampa de lançamento. Para a modernidade, naturalmente...Não sendo um agente provocador, mas apenas um fervoroso filho, queria da Praia Maria uma cidade mais radiante que rabidante, quase épica, a suge­rir uma ode triunfal. E não esta trajectória inibida, senão mesmo insidiosamente, negada. A Estátua (disfarçadamente do General que eu sei), vítima da sua própria arrogância, faz gala, ufana-se para dizer a verdade, ao afirmar “eu não me reconheço neste sítio!”. Presunção e água benta, está-se a ver. Há que ousar, romper, vencer. Tal qual Júpiter/Zeus que venceu o próprio pai Sa­turno/Cronos/ O tempo, para que pudesse reinar. Nós, por exemplo, cidadãos do mundo com todo o sangue, não nos reconhecemos noutra latitude. E tem de ser, aqui e agora, luzes, sons e aplausos. Em verdade, este a-tor-men-ta-do calibanus queria a cidade (ou ilha?) voltada para o mundo e porto de abrigo para as inumeráveis energias deste tempo. Que suscitasse, como numa tela do Mito, uma rotumbante gargalhada abstracta, tão distante do reality show que tem sido o quotidiano! E “Somente a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filo­soficamente.” , como afirmara o brasileiro Oswald de Andrade. Praia ou não Praia, eis a tormenta de Caliban. O leitor que o diga. Ninguém entra mudo e sai calado deste arquitexto. Mas eu fico...Por uma Praia jovem, poderosa e bela, como a Deni­ze. Que poderia ser Carla ou Gizela...

Paraíso Apagado por um Trovão

Há muito que José Luís Tavares, nascido em Santiago de Cabo Verde a 10 de junho de 1967, residente em Portugal, onde estudou literatura e filosofia, escreve poesia. Dizer que começou a publicar tarde, aos 36 anos, é advertir o leitor para o processo de autoconsciência que este autor realiza, face à sua escrita, depurada e rigorosa. José Luís Tavares, com o seu único livro publicado, «Paraíso Apagado por um Trovão», conquistou o prestigiado Prémio Mário António da Fundação Calouste Gulbenkian, juntamente com a poeta angolana Ana Tavares.
Exigente para consigo próprio, José Luís Tavares possui uma voz peculiar e uma imagética intensa, que revelam uma sábia incorporação da tradição e uma mestria singular no modo como opera sobre a linguagem poética.

Maria João Cantinho – Começas o teu livro por um belo poema, “Limiar”, em que dizes assim: “Descer – ao chão antigo,/ agreste, familiar; às ombreiras/sem brasão onde nem trompas/matinais nem plenipotenciária/voz de mando//Regressar – à vida rude, elementar(…)”. Que limiar é este, de que aqui se fala? Regresso ou recomeço?

José Luis Tavares – Tomemos limiar na acepção de ponto que marca a transição de um espaço, topológico ou simbólico, para outro. No caso vertente, sem cair na tentação auto-hermenêutica, diria que é uma espécie de para-texto que foi colocado para indicar uma deslocação de motivo, dado que no ordenamento dos livros inéditos «Paraíso...» vinha em segundo lugar. O primeiro, «Agreste Matéria Mundo», que vai sair no próximo semestre na Ed. Campo das Letras, na sua parte mais extensa, intitulada «a deserção das musas», é uma longa meditação sobre a condição do poeta e da poesia em pleno século vinte e um. Por outro lado, intentava ser uma forte restrição hermenêutica, dado que o motivo do livro, sendo o autor de onde é, podia prestar-se às costumeiras sandices que os especialistas da coisa debitam sempre que uma obra parece encaixar-se nos seus esquemas apriorísticos, sem cuidar da novidade que é o trabalho da invenção linguística.

M.J.C. – Porquê o título "Paraíso apagado por um trovão"? Recusa da nostalgia, ruptura e choque como método poético? Se por um lado, o título me faz pensar isso, existem versos – que me levam no sentido inverso - como: Entrega-nos o sono, a essa luz/tão de outrora, os ressurrectos/nomes dos mortos.

J.L.T. – O poemático é sempre a manifestação duma instabilidade. Daí que o mais importante não é rastrear-lhe as significações, mas apreendê-lo enquanto aquilo que é. Poeta não é aquele que está fora do mundo, mas o que demanda as fronteiras e os limites, atento aos vagidos da origem e aos estertores do aniquilamento.
A ruptura, nunca, neste livro, está anunciado enquanto projecto, mas quem escava poços de sangue, revisita séculos de ignomínia e escassez, tem de encontrar um modo apropriado de o fazer , nos dois movimentos tensionais do poema – o prospectivo e o arqueológico - sob pena de soçobrar sob os escombros que tal fito acarreta.

M.J.C. - António Cabrita salientou o teu livro como um “dos melhores primeiros livros de poesia” que ele havia visto em anos. À luz desta afirmação, parece-me que há um laborioso trabalho oficinal e uma maturidade que não é vulgar, nos poetas jovens. Como foi esse processo de crescimento entre o início da tua escrita e a publicação deste livro? Isto é, quanto tempo amadureceste este livro?

J.L.T. –. Primeiro: não se é jovem poeta quando se publica aos 36 anos, com quase vinte anos de escrita sistemática por trás. Não creio que se tenha chamado jovem poeta ao António Osório quando em 1978 publicou o seu primeiro livro. Nem ao Manuel Gusmão quando em 1990 se estreou em livro. Quando muito, serei um novo poeta, e assim me considero, pelo menos no âmbito da literatura caboverdeana.
Segundo: este livro tem uma história curiosa – em determinado momento, aí por meados dos anos noventa, relendo os meus poemas, com o fito de organizar uma colectânea, noto que há um motivo que atravessa alguns daqueles poemas. É a partir desse momento que a ideia deste livro se me impõe claramente, vindo a concretizar-se num conjunto de quarenta poemas em prosa, que viria a destruir por considerá-los completamente falhados. Passado algum tempo, vou visitar uma exposição da Graça Morais e vejo umas fotografias sobre cabo verde da Inês Gonçalves, publicadas no suplemento de um jornal lisboeta. Estes dois acontecimentos viriam a constituir o impulso detonador da retoma do projecto, vindo a saldar-se num conjunto de cerca de duzentos poemas que depois de retalhados, peneirados, montados – literalmente montados, com o uso da cola e da tesoura, dado que só a partir do verão de 2003 passei a utilizar o computador – culminariam no livro que o leitor tem entre mãos.

M.J.C- Suspeito aqui de muita leitura, muitas dívidas por pagar. Concordas?

J.L.T.- Nenhum poeta vem ou faz-se do nada. Desconfiai sempre do poeta que diz que não lê para não ser influenciado por aquilo que lê. Não é, manifestamente, o meu caso – eu pratico uma espécie de canibalismo poético, em que tudo aquilo que leio é digerido e transformado em carne ( linguagem) própria. Um autor só o é quando possui um individualidade própria e um timbre inequivocamente seu. No meu caso, se ainda não o encontrei, estou próximo disso, tanto que não temo que os envios, glosas, citações, pastiches, sejam reconhecidos.
Se dívidas há – de certeza que as há – é no sentido de a leitura de todos os poetas me ter ajudado a ser o poeta que sou. E ser o poeta que sou é a minha maneira de saldar essas dívidas.

M.J.C.- Mas esse processo de incorporação é lento, moroso. Foi fácil para ti encontrares essa individualidade?

J.L.T.- Claro que não é fácil encontrar a individualidade poética, nem estou certo de tê-la encontrado já, porquanto, avesso a dogmas teóricos ou poéticos, o que me caracteriza enquanto poeta é uma permanente disponibilidade para a mudança, mantendo, no entanto, aqueles traços mínimos que permitem identificar um rosto.

M.J.C.- Que poetas se atravessaram mais no teu caminho?

J.L.T.- Para a formação de um poeta concorrem vários álveos, nem sempre fáceis de identificar. No entanto, posso dizer que os meus processos de escrita devem muito à leitura dos textos teóricos e poéticos do Ezra Pound, mesmo quando deles divirjo; Rilke é uma referência importantíssima; mas o meu universo tem mais a ver com Nemésio, Seamus Heaney ou João Cabral de Melo Neto.

M.J.C.- Acaso se poderia encontrar na tua poesia a presença de um Herberto Helder? A força imagética de alguns poemas sugere essa leitura.

J.L.T.- O rastrear de possíveis genealogias é um escrutínio a que está sujeito todo o poeta que publique o seu primeiro livro. Herberto é, porém, para mim, uma referência e não uma influência. A sua poesia é um dos lugares cimeiros de reinvenção desta língua que é minha, apesar dos tempos de dieta metafórica que se vivem em Portugal; o seu «Photomaton&Vox» é o mais notável livro de teoria literária que já se publicou em portugal. A minha pulsão estilística, para meu desconsolo, corre por leitos bem menos magmáticos.

M.J.C.- Sei que conheces muito bem a poesia portuguesa. Qual é tua opinião acerca da chamada « nova poesia portuguesa»?

J.L.T.- Penso que a mais recente vaga de poetas veio quebrar alguns impasses que persistiam na poesia portuguesa. Nalgum deles avulta, aliás, um conseguimento prosódico e formal notável. Não devem é fechar-se num círculo em que o único critério é o de um gosto comum – não esqueçamos que alguns deste poetas são também críticos de poesia – por um universo urbano em derrocada, onde crescem as mais niilistas pulsões. O gosto é apenas uma via de acesso, não critério de juízo. O juízo é de natureza estética, é esta que permite a universalidade do juízo. (Convém não confundir questões de estética com questões de poética). Mas a necessária universalidade do juízo não pode ser dada a partir de uma categoria vazia. Com isso se autorizaria o crítico a julgar a obra a partir de um critério externo e pré-suposto. A verdadeira avaliação da obra é a consideração dinâmica que dela se faz, isto é, o confronto da obra tal como ela é com a obra tal como ela própria queria ser.

M.J.C.- Encontras algum diálogo na poesia cabo-verdiana com os poetas portugueses?

J.L.T. – Nalguns poetas cabo-verdianos – e não são muitos – há rastos de leituras seminais de poetas portugueses como Pessoa ou Jorge de Sena. Isso, porém, não é o mais importante. O que importa é a boa poesia que ali se produz em português, e não só.
É o caso do poeta João Vário que vem produzindo essa obra monumental a que deu o título de «Exemplos», ( indo já em doze volumes) à semelhança da «Poesia Vertical» do argentino Roberto Juarroz. O que me surpreende é a quase nula atenção que Portugal (e Cabo Verde) têm dedicado a esse notável criador. Espero que a atribuição próxima do prémio Camões venha pôr cobro, ainda que tardiamente, a tamanha distracção.

M.J.C. – Acreditas na inspiração? Ou suspeitas dela?

J.L.T. – Eu não sei o que é a inspiração. Se for um estado de luminosidade interior tal que nos tornamos apenas instrumento do ditado, não; mas se ela é tomada no sentido de estar obsediado pela coisa, à qual temos que dar expressão, aí sim, talvez a aceite.
Sei, porém, que mesmo a mais consciente deliberação pode ter na base um obrar subterrâneo completamente imperceptível, dando razão àquele dito de Espinosa de que ninguém sabe o que pode um corpo. No meu caso, a inspiração é procurada no trabalho metódico e continuado, avesso de qualquer bênção divina, da qual descreio.

M.J.C. - Este livro foi reconhecido pelo prémio Mário António da Fundação Calouste Gulbenkian. Que significado tem esse reconhecimento para ti?

J.L.T. – Um prémio não transforma uma obra apenas estimável numa obra de mérito. Eu sempre achei que tinha hipóteses, sem, no entanto, dar nada como adquirido porque, para além da subjectividade própria dos elementos do júri, este prémio tem uma vertente institucional e de consagração bastante acentuada. Tanto estava convicto dos méritos deste livro que, não tendo encontrado editor para ele em Portugal, avancei para uma edição de autor, vindo a ter uma recepção crítica e de público que nunca imaginei, nem mesmo nos meus sonhos mais coloridos.
Há ainda o lado material, que me vai permitir uma maior disponibilidade para os muitos projectos que tenho entre mãos e, provavelmente, tornar mais fácil encontrar editor para os próximos livros.

M.J.C. – E que futuros projectos são esses?

J.L.T. – Dois livros de sonetos, sendo que um deles é a revisitação do universo de Paraíso apagado por um trovão, um livro de ficção e um libreto.

M.J.C. - Faz sentido escrever livro de sonetos, actualmente?

J.L.T. – Tal questão pressupõe a distinção entre forma e formado, que em poesia não existe.
Eu não quero dominar uma fórmula e repeti-la ad nauseam. Depois de três livros escritos queria fazer alguma coisa que me colocasse dificuldades novas. Nesse sentido, o soneto pareceu a opção adequada. No entanto, bem vistas as coisas, esses poemas não são verdadeiros sonetos, mas contrafacções desta forma clássica (nos momentos mais auto-reflexivos, avulta um irrefreável desígnio paródico), na medida em que não me guio por um grande rigor métrico, mas sobretudo pela intuição prosódica. Se formos ver, esses aspectos formais, como as assonâncias, as rimas internas, as cesuras, os enjambements, ainda que de forma não sistemática, estão muito presentes na minha poesia.
Perguntar se faz sentido escrever sonetos hoje em dia, é como perguntar se faz sentido pintar paisagens, figuras humanas ou naturezas-mortas depois do abstracionismo. Ninguém pode ser um inovador se não tiver o mais alargado domínio da tradição.

M.J.C. – Como se dão o poeta e o ficcionista? Não são universos diferentes? A respiração entrecortada do poeta não se atrapalha na ficção?

J.L.T. – Espero que não se atrapalhem.

M.J.C. - Sei que vives há quinze anos em Portugal. Podes afirmar que és um poeta caboverdeano? Ou pode falar-se de um hibridismo, na tua obra?

J.L.T. – Sou poeta e sou caboverdeano. O ser caboverdeano está subsumido na condição de poeta. Clandestino na ditadura do mundo, como o definiu Herberto Helder, o poeta nunca é de um só lugar, de uma só língua, de uma só tradição. Híbrida e viajante é a sua condição, e, no meu caso pessoal, ainda mais, em decorrência do ethos, das peculiaridades históricas e do longo afastamento do solo pátrio.

M.J.C. - Por isso a melancolia do teu livro? Nostalgia como matriz fundamental?

J.L.T. – Eu não coloco as coisas em dois planos: um, da anterioridade vivida, outro, da posteridade rememorada através da escrita. É evidente que há imagens, sons, cheiros, cores pregnantes, mas se a memória é o lugar onde as coisas acontecem pela segunda vez, na arte é o lugar onde acontecem pela primeira vez. Não é o plano do vivido, da Erlebnis, mas o plano da linguagem e da invenção que importa. Doutro modo, estaríamos a colocar a criação poética na dependência de um modelo de que ela seria apenas um eco contrafeito.
M.J.C. – O poeta é, portanto, um taumaturgo, aquele que cria pela palavra?

J.L.T. – Estás a dizer que escrever um poema é análogo ao fiat lux divino? Em todo o caso, eu tento situar-me, pelo menos teoricamente, no plano da pura imanência, de modo a que a experiência da forma e do sentido surja liberta da influência do teofânico.

M.J.C. –Do que falas quando referes o ethos do poeta? Que função é a da poesia? Advertência? Insubmissão?

J.L.T. – A arte, dado que ela é poesia na sua essência poetante, é a única figuração possível da existência, na medida em que o vivido comporta uma opacidade que só a distância artística pode iluminar. Daí o seu carácter paradoxal: a arte tem de se afastar da vida para poder ser a sua expressão mais autêntica, ao mesmo tempo que mergulha nela constituindo-a como seu substrato. No entanto, em tempos de indigência, a missão do poeta é poetar sobre a vocação poética e sobre a essência da poesia. Ele é quem faz as perguntas fundamentais, e é o único dentre os mortais que pode descer aos abismos onde repousam os deuses foragidos.

M.J.C- Mas haverá ainda um lugar para o poeta na polis?

J.L.T- O poeta é um sismógrafo que detecta, regista as mínimas oscilações; vê aquilo que ninguém mais pode ver, não que seja um iluminado em sentido órfico, mas porque há nele uma clarividência amarga e triste, e uma secreta intimidade com as coisas e os seres.
Platão, que não era parvo nenhum, compreendeu bem a natureza da poesia – por isso a exilou da sua cidade ideal. Nessa condenação há um aspecto decisivo que não tem sido convenientemente explorado – o de que a soberania só reina sobre o que é capaz de interiorizar. Ainda hoje, cada ataque, cada mau juízo, apenas repetem os ecos dessa condenação primeira. Mas quer pensemos em termos de fundamento ( Heidegger), quer em termos de afundamento( Deleuze); quer de um ponto de vista axiológico, quer de um ponto de vista ontológico, a poesia está sempre primeiro, porque sendo doação, fundação e excesso, comporta em si o carácter não mediatizado a que chamamos o princípio.

M.J.C. – Aqui toca-se um aspecto caro à relação arte/vida. Concordas com a necessidade de um afastamento entre arte e vida? Isso não acarreta um desdobramento ou o contrário é que pode trazê-lo?

J.L.T. – No acto da criação, tem que dar-se a dissolução do sujeito empírico ou trivial, para que haja uma intensificação de forças – que o transforma em sujeitos fictícios – transportando-o para além do plano da existência comum. Há sempre um devir múltiplo no acto da criação estética.

M.J.C. – O poema deve, então, ser entendido como instância dramática?

J.L.T. - Desde os antigos gregos, pelo menos, que sabemos que toda a poesia é dramática. Assim a entendeu Goethe, e também o modernismo, para quem o sujeito elocutório do poema é uma máscara (persona), uma personalidade assumida pelo poeta para através dela veicular uma identidade que, na sua distanciação, expressa ideias cuja existência se objectiva no plano do poema, sem uma correspondência necessária com qualquer extravasamento da subjectividade pessoal do autor.
A literatura, como intuiu Deleuze, só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos despoja do poder de dizer eu.

M.J.C. – Portanto, já não é o poeta que fala, mas um eu cindido.

J.L.T. – Exactamente. Em Hegel, por exemplo, a auto-consciência era a verdade da certeza de si mesmo. Hoje apenas significa a reflexão do eu como perplexidade, como percepção da impotência – saber que nada se é. É desta impossibilidade de dizer eu (o eu da escrita é imanente à obra; constitui-se pelo acto da sua linguagem), deste estilhaçamento do sujeito que nasce a arte.

M.J.C. – As imagens poéticas que utilizas são muito intensas, como que procurando um correlato pictórico visceral. Outro aspecto é o modo como tangencias um certo surrealismo poético. Concordas?

J.L.T – Eu não lhe chamaria surrealismo – aliás, a minha técnica poética é exactamente o contrário daquilo que convencionalmente se designa por esse nome – porque essas etiquetas são sempre perigosas. Posso dizer, no entanto, que há um processo de saturação, uma espécie de exasperação verbal que rompe com a gramática e faz a língua gaguejar. O professor Alberto de Carvalho, da faculdade de letras de Lisboa, deu-se conta desse processo mas não conseguiu vislumbrar-lhe o alcance.

M.J.C. – Para além da abundância imaginativa, há o uso de vocábulos raros, outros já mesmo desaparecidos, que conferem uma certa elevação aos motivos mais triviais e corriqueiros.

J.L.T. – O ideal de grandeza e de elevação, que na arte é sempre um elemento ideológico, foi destruído desde que Van gogh pintou uma cadeira e uns simples girassóis. A partir daí tornou-se manifesto que autenticidade depende tão-pouco da grandeza suposta ou real do objecto da arte. Foi como que o abandono de uma estética do tema em favor duma estética da expressão. Este é um dos perigos que espreita este livro, e para o qual não me canso de chamar a atenção.
O que é decisivo na arte não é a imaginação tout court, nem sequer a imaginação criadora, a que damos o nome de fantasia, mas a sua configuração. É o domínio dos meios de expressão (que não é prévio ao expresso) que confere grandeza ou menoridade ao artista.

M.J.C. – Esta é uma visão claramente formalista.

J.L.T. – Não, não é. A não ser que estejas a pensar na forma como estrutura externa que é colocada sobre um material inerte. Há uma co-determinação entre estes dois aspectos. A matéria da arte só é enquanto matéria formada, o seu devir-arte; e a forma só é siginificativa enquanto rosto plangente da obra. E, no entanto, é evidente que sem aquele elemento de espiritualidade imanente seria puro artesanato.

M.J.C. – Voltemos um pouco atrás, para terminar: não é inevitável que a língua regresse sempre ao balbuciar de cada vez que é retomada pelo poeta?

J.L.T. – Cada poeta funda uma língua particular dentro da língua que é a sua. O acontecimento poético, melhor: o acto poético, como acto abismal, abala a língua pragmática nos seus fundamentos despojando-a do poder da conjunção. Daí que a linguagem poética não é a mais elevada, mas a mais rasteira, por estar perto do princípio e da origem.
Este ponto de vista relaciona-se com dois outros expendidos anteriormente. Primeiro: a verdade poética é uma verdade instável, sempre ligada ao seu acontecimento. Segundo: embora assumindo-se como fundamento, nega-se enquanto tal, devido ao seu carácter abismal.




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quinta-feira, 14 de outubro de 2004

O Albatroz

Charles de Baudelaire

Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
O navio a singrar por glaucos patamares.
Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,
O monarca do azul, canhestro e envergonhado,
Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,
As asas em que fulge um branco imaculado.
Antes tão belo, como é feio na desgraça
Esse viajante agora flácido e acanhado!
Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!
O Poeta se compara ao príncipe da altura
Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
Exilado no chão, em meio à turba obscura,
As asas de gigante impedem-no de andar.

Glosa, nota e pautas

«Vai, pensamento, vai viajar de navio»
Djavan


Podia ser glosa…

Da última vez que estive em Bissau, apercebi-me de que o centro do poder (ou dos poderes) não estava nem na presidência (interina, note-se), nem na prematura. Tão-pouco estava entre os legisladores. O poder estava nos quartéis. Ou, melhor dito, no estado-maior das forças armadas. Em consequência, o grande problema da Guiné-Bissau, ainda que custe acreditar, continua a ser de reconciliação. O desenvolvimento jamais chegará a uma sociedade irreconciliada. A morte continua a fazer das suas nesse chão e foi de cortar o coração ver o filho do general Veríssimo Seabra a espernear de desespero em cima do caixão do pai. E foi revoltante ver também os cúmplices, políticos e diplomáticos, a teatralizarem alguma decência no enterro do malogrado. A Guiné-Bissau, com golpes e contra-golpes, ficou com uma legitimidade complicada. Dir-se-ia ser preciso zerar o país. E dar as cartas de novo.

Nota…

E me presto a este à-parte, porque a Guiné-Bissau faz parte do meu eu (colectivo e individual) e sinto cá dentro o latejar das suas veias abertas. De resto, saíamos do buraco, da cloaca mental de termos olhos fechados para a Humanidade. Somos. Somos? Sejamos, aqui e agora, cidadãos do mundo…

Numa pauta…

Por mais que não queira, a Electra exige um texto à altura, algo como uma pedrada bem na testa do abuso e da incompetência. Exige-o até por um acto de cidadania. Para não dizer, de soberania. Ou, então, do novo – mas história do arco-da-velha que se tornou o dito – aeroporto da Praia. Ou mesmo, do fulano que desanca no Ludgero Andrade, sem civismo nem gramática, como se as nossas necessárias (e saudáveis) contradições tivessem de ser levadas a fio de espada. Civilização? Em verdade, assuntos não me faltam, ainda que indecorosos alguns, para destilar a prosa e cumprir a loisa. Só que no âmago, que é a solidão interior, ao cronista o repto é das belas letras, deixando as palavras tortas para os sindicalistas da vida (com devidíssimo respeito). Claro que não me é indiferente o Plateau desempedrado, entre a vã promessa do asfalto e do calcetamento. Tão-pouco fico despreocupado pelo aumento dos gafanhotos do deserto pelos Vales de Santo Antão. Se lágrimas ainda tenho, elas serão vertidas pelas boas causas e aquela, de apoiar gente nossa a vegetar nas roças de São Tomé e Príncipe, é uma delas. O Pranchinha insiste sempre em entrar na minha crónica, mas estou reticente. Falta-lhe meio-termo, sei lá bom senso, e, nesta meia-idade, já não há paciência para radicalismos. Nesta pauta, entro e saio como o cuco dos relógios, terei para o leitor a mágoa e o riso colectivos, mas…


Noutra pauta…

Nunca mais regressarei aos contos caudalosos da minha infância. Talvez pela ausência de tempo. Ou quem sabe pela presença dele. O tempo quer-se hoje electrónico, mais que dinheiro e para lá de megabyte. Só eu sei com que credo li Deus Deslizando atrás do Muro, de José Eduardo Agualusa, sorvendo no vagar de uma melopeia cada palavra, como se, de repente, tivesse baixado em mim o santo do antigamente. Ou, então, aquela canção de Djavan que diz «vai, pensamento, vai viajar de navio».

Meu edipiano tributo à Dona Malvina

Mal entro em casa dos meus pais, a Dona Mindoca alerta-me sobre a morte da Dona Malvina, nossa vizinha de toda uma vida e mãe dos meninos que entram no filme da minha infância, com destaque para Emanuel, o meu dilecto. Triste, triste, triste, todo poema de Valentinous Rodrigues, recito mentalmente as primeiras palavras de «O Estrangeiro», de Albert Camus: a mãe morreu. Ponho-me, acto contínuo, a recordar as minhas idas quotidianas à casa da Dona Malvina, cujos refogados ainda hoje me encantam o olfact. E a sua voz – quando eram musicas da Igreja do Nazareno – solfejava, cristalina no labirinto da saudade, sobre a das filhas. De todas, Esther era a mais entoada…

Dona Malvina era uma figura simples, leve, singela. De um pacifismo de pássaro que lembrava a minha avó Amália. E pessoas assim são mundos incríveis. Têm de longe mais interesse do que os poderosos que fui conhecendo na vida. E o escritor, perdoem-me os deuses da esquina, deve olhar os olhos dos mansos de espírito e nunca aqueles que - Torga versejava «Era uma vez lá na Judeia, um Rei» - não gostavam de crianças. E como não ser cronista se, tal como os outros, o meu destino é severino? O meu lugar, um tanto indistintamente, é a ilha. E o cosmos. E o meu tempo – onde estaria a metáfora a dar horas, minha gente? -, é uma espécie de clepsidra que se esfuma na fina areia. Ao pó retornarei e sei-o de um molde quase abusivo. À fina areia que se extingue na simplicidade da vida.

Por tudo isso, Dona Malvina faz parte da minha história, porque a verdadeira história é aquela existencial. Eu abomino hinos e uníssonos, para o governo da navegação. Como bem-disse Albert Camus, a história oficial às vezes é como uma máquina pesada que esmaga a vida. Dona Malvina…a sua voz maternal – de todas as mães do mundo - ocupa um espaço aqui na minha memória. E se a perco, estas palavras já não são nada. Assim, esta memória é transferida como uma capacidade de resistência, entendida não como uma oposição a algo, mas, digamos, como uma necessidade de voltar a existir. E de olhar o mundo de outra forma…

Entrementes, em jeito tão-somente de epílogo, quis o meu amigo que eu cravasse os pés num continente e ficasse, certo e absoluto, dono de uma alma sem labirintos. Mas, fosse eu de assaz verve, sereno das verdades e apaziguado dos caminhos, outro, que não este, traria ao sol quotidiano o escrever destas linhas.

NOIR


A Lenita, Guto, Sergei, Carlos e Maggy

Não quero (hoje, pelo menos) ser lido por aqueles que não sejam mesmo irreverentes. Mesmo que, organizados na sociedade, poetas no âmago. Aos que fazem da estética uma condição de vida. E que são ciosos de noir, solidão existencial, no corte fissurado dos dias. Vinde a mim os iconoclastas, os subversivos a esta hora. Não dos que ainda gritam «O rei vai nu», como se o rei não fosse lindo apenas nu e em plena praça. Irreverentes sejam os leitores desta peça. Vinde, sim, da mais andaluza e severina vida, gramar estas palavras que o vulgo imberbe olha de esguelha e sorve com reserva. Ei-las, abonadíssimas palavras, ao pórtico…Deambulávamos pela Vila do Mangue, vencidos que somos da vida, a verter poesis à beira da madrugada. Em Lisboa, morria o nosso amigo Luís Martins e nós, sem o sabermos, comemorávamos, em altíssimo, os vinte poemas de amor e uma canção desesperada. De Neruda e de todos os pablos deste mundo. Admitíamos ser a praça da vila – ladeada da pequena igreja, da pequena câmara, do pequeno banco e do pequeno mercado – o interior de uma muralha, onde a nossa astuta, e não menos noctívaga, imaginação infiltrava o Cavalo de Tróia. Adoptávamos os bancos públicos como baluartes que se desfazem às metáforas. Trombetas, terão dito alguns, mas deixassem os de Jericó acima da manada. Tomássemos apenas nuvem por Juno e, tal qual a cantadeira, tomássemos este mundo por desaforo. Uma admiradora, que sublinhava amar o poeta e não o homem, passou-me um elogio em papel recortado e o arrazoado desembotava em «pássaro pródigo». Nem pássaro, nem pródigo. Sou tão-somente uma ilha à deriva no vasto cosmos. O quadro é sem moldura e nele de pastarem as vacas, vindas do alto da vila, nada se tornava surrealista. Tudo era demasiado natural. E o seu reverso de sobrenatural. As som bras, a desoras, eram mais pesadas e, ao menos no pensamento, os cavalos relinchavam e arrastavam ferrosas energias que, às tantas, calcinavam as pedras, carbonizando ágeis lagartixas. Também na vila, como em todo o lugar, havia homens pateados com o demo e, como um cancro inexorável, devoravam a vizinhança. Primeiro, as virgens e, havendo nó das debutantes, das mais vividas. Quando não, da meretrícia franja de gente, se a calema finalmente se instalasse. Deambulávamos, pois, armados em poetas de nomeada e alheios à morte que então se sublimava em Lisboa. Digam-me que não se estou errado, mas onde aqui há homens com a irreverência do nosso amigo Luís Martins? Uma vez, ainda as torres da nova babel estavam intactas, sintonizámos a escrita pelo diapasão do nonsense. Em nenhum lugar senão em Nova Iorque se é tão livre e tão cativo, dissera o nosso amigo. E ainda há dias, por telefone, entrei-lhe Alentejo adentro com os mesmos paradoxos. Devo limitar-me a escrever sobre o pão-nosso de cada dia e coisas como as ameaças de greve no porto da Praia? Já me viste a fazer laudas aos intermináveis seminários – Manuel Delgado chama-os de «sentados» -, indiferentes à verdade de sermos um arquipélago de sereias dengosas? Esta também é a várzea de caprinos em delírio, numa (des) ordem que advoga, na calada, um autêntico estado novo. A escrita noir, mas é! Eu a fazer a pauta dos burocratas? Fazê-lo, além da obrigação, era dar a boca à mordaça. Fiem-se na minha prosa de curtirmos, com a cabeça em movimento, esta hora estática. Saibamos tão simplesmente dar um basta a este morrer devagar. Durante o dia, padreco eremita; pela noitinha, vampiro assanhado. Arre que esta coluna não cumpre o estatuto editorial nem a carta de princípios – nem a constitucionalidade vigente – e está disponível a ser, momento a momento, o que é o seu autor…





The Capeverdean Blues - uma narrativa com swing

We're very proud to be
In his biography
We sing this song for him
And you

Horace Silver - song for my father
blue note records - 1964.





Como quem conta uma história em flashback, é assim - pela reminescência tão somente do ritmo e do fantástico - que Mito, o mais prolixo, moderno e ousado dos artistas plásticos caboverdianos, se concebe à narrativa de The Capeverdean Blues.

The Capeverdean Blues é mais uma apresentação temática de Mito, percorrendo uma sinuosa estrada (da coerência e da singularidade) em cujo fio condutor perfilam exposições marcantes como Mitomorfoses (1995/Praia e Mindelo), Lágrimas do Indigo (1997/Praia e Mindelo), Lantuna na Mei di Mar (1998/Expo Lisboa) e kurasson di Sibitchi (1999/Praia e Mindelo), além de participações em várias paragens e em tempos diversos.

Uma viagem atenta pelo The Capeverdean Blues revela, a par do delírio felliniano do pranto e do riso, uma identidade primordial e uma táctil cumplicidade (Crioula? Universal? Outra?) entre Mito e Horace Silver, uma das figuras mais paradigmáticas do mundo do jazz e patrono de um estilo que se afirmou por Hard Bop. Além de tributo assumido ao enorme pianista caboverdiano-americano, que tem um álbum intitulado The Capeverdean Blues, Mito assume a complexidade do blues de per se - uma música apelativa da alma. Fá-lo, ciente da velocidade multimédia e da reciclagem de vários materiais como demandam os tempos, a partir de um lirismo não retinal, bem à Marcel Duchamp, de quem assume os mistérios do telúrico.

É um convite para lá de louco (dessa vertigem necessária) navegar pelos quadros do The Capeverdean Blues, colecção que ora se impõe. Não nos é fácil falar com propriedade das telas de Mito. No seu projecto há técnicas que não permitem instalarmos nós. É uma arte que aos leigos só deixa sentir e vivenciar. Como um concerto (una prova d’orchestra), nada acontece por acaso e o que salta à vista e aos sentidos é uma riqueza polissémica com as potencialidades do som - tudo num psicadélico trem das cores. Sobre a ancestralidade da essência e com um estilo absolutamente enigmático, Mito faz de um swing o jogo dos sentidos. É que o blues das suas telas desfaz as evidências consagradas e zomba dos axiomas a morder o quotidiano. Mito pinta, por conseguinte, com acordes - cada trecho solfeja The Capeverdean Blues!




Eis o concerto em blues :

Bop corner blues (a visual blues 4 Horace Silver), Melanina, Don't scat over b flat, Pet's serenade, Galadura (lapido na bó), Tango in Carminale, Puppets on a G-string, Ta pari gatinha, Jumpin' the skyline, Tender bird, The hitchicker drumbeat, Feeding birds @ the & of the st., Missiva de 1# náufrago (lusotopia), Shyless moon in bondage, Fiticêra di cor morena, Lullaby for a monster, Pet's step, Beyond the red clouds (gone with the wine).





FILINTO SILVA