segunda-feira, 29 de março de 2010

Nunca em amor danou o atrevimento

Nunca em amor danou o atrevimento

Favorece a Fortuna a ousadia
Porque sempre a encolhida cobardia
De pedra serve ao livre pensamento.

Quem se eleva ao sublime Firmamento,
A Estrela nele encontra que lhe é guia
Que o bem que encerra em si a fantasia,
São u~as ilusões que leva o vento.

Abrir-se devem passos à ventura
Sem si próprio ninguém será ditoso
Os princípios somente a Sorte os move.

Atrever-se é valor e não loucura
Perderá por cobarde o venturoso
Que vos vê, se os temores não remove.

Luis de Camões

sábado, 27 de março de 2010

A força da razão - pelo diálogo, Zé!

O Primeiro-Ministro de Cabo Verde tem estado sob um autêntico "civilian oversight" - uns a aplaudirem, outros a deplorarem, mas poucos a analisarem -, mercê da sua inclusão de jovens ditos “thugs” como parte de um diálogo necessário na busca de soluções para o surto da violência urbana.



Nos últimos tempos, a sociedade cabo-verdiana assistiu ao surgimento eruptivo do fenómeno da violência juvenil no contexto urbano. Sendo novo, em termos até de magnitude, a sociedade tem-se mostrado despreparada perante tal fenómeno.



As respostas policiais, apesar de necessárias, diria mesmo, de muito necessárias, têm sido no entanto insuficientes, ainda que muitos cidadãos reclamem o tempo todo por respostas mais musculadas e punitivas. A par disso, eles vão também securizando, como podem, os espaços de residência, de lazer e de trabalho.



Um indicador expressivo da insegurança reinante é a consagração da segurança privada. A profissão de guarda tornou-se, em pouco tempo, algo muito comum e parte integrante da paisagem urbana quando, há uns anos, ela só fazia sentido em poucos edifícios públicos e comerciais.



A mudança de estilo de vida imposta pelo fenómeno criou na sociedade um profundo ressentimento e o fenómeno que lhe é correlativo, o da estigmatização do alegado delinquente. A sociedade chama-lhe de “thug”, corporizando assim a sua rejeição, o seu medo e a sua condenação. Mas, às vezes e em rasgo de reflexão mais demorada, perguntaria se o ressentimento não é recíproco, se o “thug” não é simultaneamente agressor e vítima?



Nesta relação entre os jovens de comportamento violento e a sociedade é preciso haver quem encare a sua acção além da necessária intervenção repressiva.



Que admita ser necessário liderar um novo modelo social para a juventude que passará seguramente por conhecer todos os meandros da problemática e não a uma tomada de posição musculada e pontual, baseada exclusivamente em medidas policiais, judiciárias e penitenciárias.



Que entenda que, além da utilização da força e vigilância policiais, com propósitos dissuasores, há que se usar a persuasão, o diálogo e o conhecimento recíproco.



É preciso que haja quem, para intervir de modo eficaz, recuse a transformar o dito “thug” num pária, num intocável no sentido de casta, num dálit, nem o reduza a um simples caso de polícia e de conflito com a lei; mas, antes, tenha coragem (e dimensão estratégica) para fazer dele também um interlocutor na busca de uma solução duradoira e sustentável.



A lei da física reza que toda acção provoca uma reacção. Assim, não poderia ser diferente neste cenário antes de tudo sociológico, mormente, quando nos referimos à violência urbana em latu sensu.



O caso francês, por não ser muito distante, me parece de alguma nota. Num passado não muito longínquo, dizia, um enorme surto de violência urbana, com forte componente de delinquência juvenil, tomou também conta da França. A explosão começara num bairro periférico de Paris, depois tomara conta da Cidade-Luz e, pouco tempo depois, alastrara-se por toda a França. De repente, esse país europeu viu-se literalmente “incendiado” pela ira dos jovens, na sua maioria imigrantes de segunda geração, que reagiam às políticas sociais excludentes e à ghetização dos bairros suburbanos.



Dominique de Villepin, chefe do Governo na altura, adiara várias visitas de Estado para resolver esta situação, decretando um autêntico “estado de emergência” e a "mobilização" do Executivo para "garantir a ordem pública", prometendo "firmeza e justiça" na resposta à situação de "bomba-relógio social" que a situação indicava. A primeira reacção do então Ministro do Interior Nikolas Sarkozi, foi de resposta policial enérgica. Acto contínuo, foi de resposta judiciária e penal, inclusive várias deportações.



Nessa busca imperiosa de soluções mais estruturantes, a voz autorizada do Presidente Jacques Chirac clamara sobre o País: "É preciso serenar os ânimos", sublinhando que "a ausência de diálogo [com a população dos bairros problemáticos] poderia gerar uma situação perigosa e de uma instabilidade sem precedentes". O Chefe do Estado pedira ainda ao Governo para firmar, através do diálogo, um “pacto social” com todos os intervenientes da problemática, inclusive os “jovens revoltosos” e que apresentasse, "no prazo de um mês", propostas para "acelerar e reforçar" a eficácia das medidas sociais contra a exclusão e a favor da igualdade de oportunidades.



Por conseguinte, mutatis mutandis, encaro a postura de José Maria Neves como uma abordagem, um método e uma estratégia, na linha da complementaridade às medidas policiais, judiciárias e penitenciárias, ora em curso. Não se trata aqui de se render à criminalidade, nem de se “empoderar” a delinquência, mas sim de acrescentar às medidas da lei e da ordem, aquelas que transformem o problema em problemática e propugnem soluções de reestruturação social.



Em primeiro lugar porque, até se provar inequivocamente o contrário, a violência juvenil provém também de um défice de reconhecimento social. Muitos dos ditos “thugs” são adolescentes que foram invisibilizados na família, depois de algum desaire, na escola, depois de algum insucesso, no grupo de vizinhança, a seguir a alguma experiência traumatizante. Até se provar o contrário, trata-se de gente a quem faltou auto-estima ao longo do processo de socialização. Porque tiveram dificuldades de diálogo com pais ou com parentes adultos, não estiveram em posição de comunicar aos professores as suas dificuldades de aprendizagem e de adaptação à instituição escolar, não conseguiram transmitir as suas habilidades a um possível empregador. Enfim, a incomunicação marcou-lhes negativamente.



Assim sendo, eu pergunto se muitos deles não são, no fundo, ávidos de serem ouvidos, escutados e serem reconhecidos como “parceiros” na resolução dos seus próprios problemas. Há um livro que li ainda estudante, que se intitula “Como Eles se Tornam Delinquentes?”. Preciso relê-lo. Nele, o autor mostra-nos os complexos meandros sociais e psicológicos da construção do delinquente. O delinquente não dorme e acorda delinquente. “O delinquente nem sempre se torna, mas muitas vezes é tornado”, já dizia o meu amigo Crisolino lá de Belo Horizonte, hoje figura destacada na arte e no activismo social. Não há nada simples e linear nesta questão.



Entrementes, a explosão da violência urbana é um fenómeno que emerge dos bairros degradados, com problemas de saneamento, água e energia, saúde pública, transporte, habitação e policiamento. Nestes bairros, a maioria das pessoas está desempregada ou sub empregada. Há aqui uma relação causal entre a exclusão, a pobreza, e a origem da violência. Há aqui claramente uma problemática social que não se resolve apenas e redutoramente com medidas de coação. O fenómeno é social, exigindo um olhar sociológico.



Ao encontrar-se com os jovens ditos “thugs”, o Primeiro-Ministro teve uma atitude ousada, mesmo a risco de ser mal compreendido. Mas, como líder de uma sociedade preocupada com a violência, será que não teve a coragem extrema de fazer um gesto que “desestigmatiza”, que reconhece e reabre canais de diálogo hoje entupidos?



Para mim, foi um gesto de alta política. De grande estratégia de acção. Alguém terá dito, em jeito de censura, mas não deixando com isso de revelar um certo preconceito elitista, que os “thugs” não eram uma instituição para que o Primeiro-Ministro se encontrasse com eles. Será que elegemos o Governo para se resumir aos encontros institucionais? Quando Nelson Mandela entrava nos “tenebrosos cantos” de Swetto para “conversas pedagógicas” com os jovens em conflito com a lei, estaria ele a desviar-se das suas obrigações institucionais? Temos acompanhado as incursões do Mayor Menino, em Boston, pelos bairros de Dorchester, de Roxbury e de Mattapan, considerados problemáticos, tentando conhecer os “jovens problemáticos” pelos nomes, muitos deles cabo-verdianos, e levando-lhes soluções de integração e de “reeducação”. E esta? O mesmo vem acontecendo com os governantes portugueses e as edilidades da Grande Lisboa que entram nos bairros da Buraca, da Cova da Moura e da Reboleira para encetar uma plataforma com os jovens e os líderes locais, muitos deles também cabo-verdianos, na procura de soluções urbanas mais estáveis e mais integradoras. E os exemplos são muitos e inumeráveis de abordagens dialogantes que aditam à lei e a ordem soluções de assaz semelhança estratégica. Sem preconceitos, minha gente.



O pensamento de algum mainstream local tende a “invisibilizar” aqueles que não têm enquadramento institucional. Será isso completamente certo? Duvido. Outro achou que o gesto poderia pôr em causa autoridade do Estado, por eventualmente transmitir que se estava perante um acto de negociação com quem, afinal, viola a lei e os valores da sociedade.



Para mim, repito, o PM diz duas coisas: que condena a violência, mas preza a juventude. A primeira é inequivocamente condenável e como tal deve ser combatida. A segunda, os jovens…eles são nossos.



Um artigo de jornal diz que há meio milhar de thugs em Cabo Verde, uma inferência baseada em estatísticas policiais ou em dados sociológicos puramente matemáticos, numerário que parece não levar em consideração outras variáveis tão ou mais importantes para a compreensão da problemática. Precisamos de análises com uma dose de complexidade que permitam “salvar”, pelo diálogo e olhos nos olhos, esses jovens do “thuguismo” que os condiciona e os faz viver à margem das oportunidades que o País já permite. Como diria o escritor Arthur Koestler "as estatísticas não sangram..."



O Governo terá de agir com firmeza contra a criminalidade, procurando conciliar diálogo com todos os jovens, inclusive aqueles em conflito com a lei, e apelar à Paz Social com a necessidade de manutenção da ordem. Diálogo com todos os jovens, repito, pois eles são nossos.



Caso contrário, seria deitar fora o bebé juntamente com a água do banho. Um jogo em cima da linha. O Primeiro-Ministro faz jus à sabedoria de que não se pode enxugar o chão com a torneira aberta. Quando se faz assim, corre-se o risco de incompreensão.



A crise económica internacional e a consequente redução pontual do fluxo turístico não permitiram o crescimento a dois dígitos e a redução do desemprego a um dígito, mas a economia cabo-verdiana, mercê das almofadas financeiras e macroeconómicas criadas, ficou à tona da água e a dar sinais de continuar a navegar. O óbice do desenvolvimento, a ser, sê-lo-á social, se entretanto não estancarmos a tendência da VIOLÊNCIA URBANA. E este quadro de instabilidade terá de ser entendido como a tal “bomba-relógio social”, antevisto pelo então Presidente Jacques Chirac em se tratando da França. Em verdade, um ponto crítico, um desafio a ser vencido – e com urgência. E, no nosso caso, o "civilian oversight" apreciará a virtude da política quando propõe a força da razão ao invés da razão da força. Pois é, Zé!

quarta-feira, 24 de março de 2010

Ainda

Ainda não estou preparado para perder-te

Não estou preparado para que me deixes só.
Ainda não estou preparado para crescer
e aceitar que é natural
para reconhecer que tudo
tem um principio e tem um final.
Ainda não estou preparado para não ter-te
e somente recordar-te.
Ainda não estou preparado para não poder ouvir-te
ou não poder falar-te,
não estou preparado para que não me abraces
e para não poder abraçar-te.
Ainda te necessito
e ainda não estou preparado para caminhar
pelo mundo perguntando-me… porque?
Não estou preparado hoje nem nunca estarei.
Te necessito.

Pablo Neruda

Tu habitavas os dias

tu habitavas os dias como se o tempo te pertencesse
ratificavas com o teu esgar secreto
os meus membros sobre o teu peito
os meus gestos
a minha inteira existência




eras nesse tempo a própria perífrase da vida
dizer-te, o teu nome violento,
era o mesmo que afirmar:
a minha vida (e depois
por aí fora sobre tudo o que quisesse)




para além de ti, quero eu dizer,
sem a tua presença de água nos olhos
era nessa altura impensável
encarar a sucessão das horas
a possibilidade sequer
de haver respiração
ou pensamento




mas depois deixaste de habitar os dias
(daí, em parte, estas palavras)
e eu sigo (mal) existindo
e respirando, ainda que a custo


depois da angústia,
a perplexidade
 
 
João Miguel Henriques
in Também a memória é algum conhecimento

domingo, 21 de março de 2010

Dia Mundial da Poesia

A poética dos caprinos


100 îlots de...

Flagrei-o na Rue du Rhone, que para além de nome de rio - Ródano, em português -, é vale que vai da França para se aninhar na enquistada Suiça, mais precisamente na cidade de Genebra, em puro e imenso lago. O cartaz assaz flagrado, propaganda corriqueira de uma cadeia de supermercados, anunciava 100 de pães, 100 de legumes e 100 de ovos, e, já agora pela vidraça do autocarro #20, balbuciei S/Cem Margens, que fora uma coluna de crónicas minhas no extinto jornal Horizonte, e As Sem Razões do Amor, poema do imenso Carlos Drummond de Andrade, cujos versos calham bem postar em Dia Mundial da Poesia. Enquanto o autocarro #20 percorria, na entremeada cosmopolita dessa artéria chique, cujas lojas são para magnatas árabes, políticos africanos e mafiosos de papel passado, fui imaginando o 100 de tudo pela minha vida, ora de repente mais contente, como o fui outrora aliás pelos graciosos passeios no Jardin des Eux Vives. Nesse mesmo dia, privara com Annie Viera de Mello, viúva de Sérgio Vieira de Mello, assassinado em atentado terrorista num tristíssimo dia em Bagdade, quando em missão de paz sob a bandeira das Nações Unidas. Fomos juntos ao Cimetière des Rois, Plainpalais, velar a campa do grande diplomata brasileiro. Ocasião para dividir as rosas, doravante fora pétala a pétala, pelas lágides (e respectivos epitáfios) de John Calvino, Jean Piaget e Jorge Luís Borges. Em verdade, desconheço a razão porque o número 100 me convida a certas inconfidências...

O último tesão

Neste dia pródigo, porque à poesia dedicado, a minha lembrança vai para Fernando Assis Pacheco, de quem me tornei amigo e correspondente a partir do Simpósio sobre Cinquentenário da Claridade, em 1986, na cidade do Mindelo. Não que Fernando Assis Pacheco tenha sido o melhor poeta conhecido, mas porque dos "paraliterários", como também me assumo, ele era sem dúvida o expoente máximo. Já de haver escrito "Guarda o último tesão/para mandares/meia dúzia de canalhas à tábua", autêntico testamento, servindo a carapuça para a parvónia, o homem ganhara a minha veneranda amizade. Em adiantadas vezes de encontro, quase sempre por Lisboa, falávamos da poesia e passávamos em revista alguns dos restaurantes mais implacáveis. O último havia sido um arroz de lampreia, no Solar dos Leitões, cujo travo castiço não se recomenda a qualquer um, mas, para os de bom siso e razoável recto, um verdadeiro poema esse apimentado prato.


Clube do Bode

Acompanhei de perto, e como bom amigo, o processo arisca  e encantatório que deu no livro "Sintaxe do Desejo", de Dimas Macedo. Este me franqueara as portas e me permitira os meandros da cidade de Fortaleza. Conheci, frequentando em pleno direito, os salões e os bueiros dessa capital cearense, tendo por egrégio azimute as reuniões da Sexta Literária e do radical Clube do Bode, em sábados caudalosos de boa boemia. O Clube é uma resistente agremiação de poetas, músicos, artistas, políticos e leitores em geral, criada pelo Pai-de-Chiqueiro mor e editor dos caprinos, Sérgio Braga, no dizer do escritor e também amigo Airton Monte. Fora ali ocasião para o grogue de Santo Antão, verdadeiro orgulho nacional (ora em confraria, com entronização, coisa e tal), destronar a cachaça do mui amigo Lúcio Alcântara, ex Governador do ceará, produzida nos seus alambiques de São Gonçalo do Amarante. Com perdão deste aparte, o Dia Mundial da Poesia é dia em que me lembro com saudade e com afecto o "quanto de virada" o deu este criar literário que, ainda modesto, se permitir o azo às frutas. Enquanto Dimas Macedo, em táctil, gustativo, visual e olfactivo das suas vivências corpóreas e da alma, refazia "Sintaxe do Desejo", eu, no linho de iguais sentidos (e crenças, já agora), compunha na cesteira do meu íntimo banquete o livro "Das Frutas Serenadas".

sábado, 20 de março de 2010

Madrigal nos entremeios do rio

Acordei gente, doutro rio e o rumorejo só de água,

Que ao poeta, nas viagens distraído, silencioso cio,
Navegam-lhe palavras de não haver princípio e fim,
Quão também astuciosa, lhe são sêmeas as margens…

Acordei gente, deste mundo, que a mata me pulsa
E tudo – dos Suruí, uns, e dos madeireiros, outros -,
Esse canto do tucano lhes pressagia tão más novas,
Como esta lágrima de chuva entre Rondônia e Acre…

Eu, ainda na rede, em cururu de sapo, acho que uva
Que a vista me turva, tudo ser quente, quanto melaço
Ou pedaço de fruta para o tanto desfrute de acordar…

O açaí de cacho e como também me olhas, o destroço,
O que se lambe caroço, turmalina em removida terra,
Parindo das sêmeas das margens, de certas manhãs…


Filinto Elísio
in Caliban driblando Prospero na Amazónia

DIA MUNDIAL DA POESIA NA CIDADE VELHA

A INVENÇÃO DO AMOR:  DANIEL FILIPE DITO A TRÊS VOZES


“A Invenção do Amor” (de Daniel Filipe) dá expressão ao Dia Mundial da Poesia na Cidade Velha. No dia 21, às 19 horas, o Terreru di Kultura, na Baixa da Cidade Património da Humanidade, serve de palco a esta celebração que faz parte do calendário da UNESCO. “A Invenção do Amor” será dito a três vozes (as de José Braga-Amaral, de Sueli Duarte e de Nuno Rebocho), num ambiente adequado ao dramatismo expresso neste grande poema do autor cabo-verdiano que tem lugar de destaque na história tanto da literatura portuguesa, como das literaturas lusófonas.

Nascido na ilha da Boa Vista em 1925, Daniel Filipe foi levado muito novo para Portugal, onde cresceu e se fez homem. O seu inconformismo com o regime totalitário então vigente em Portugal, fizeram dele um autor que o colonial fascismo salazarista tentou silenciar. Mas os seus poemas (como “A Invenção do Amor”, 1961, e “Pátria, Lugar de Exílio”, 1963) tornaram-se denúncias e armas altissonantes que nem a Censura nem a PIDE (polícia política de Salazar) conseguiram neutralizar. Democrata convicto, Daniel Filipe foi dos primeiros a tomar partido pela candidatura presidencial do Marechal Humberto Delgado, em 1958, escrevendo a este respeito um romance notável, “Manuscrito na Garrafa” (1960).

“A Invenção do Amor”, escrito e publicado em 1961, ano em se intensificou a luta contra o regime de Salazar e nas colónias dominadas por Portugal eclodia a luta armada que conduziu às suas independências e ao derrube do totalitarismo português, deu continuidade ao intervencionismo de Daniel Filipe, saliente nos seus textos na revista “Seara Nova” e sobretudo na importantíssima revista cultural de que foi um dos fundadores e também director, “Notícias do Bloqueio”.

Daniel Filipe morreu novo, em 1964. Veio falecer a Cabo Verde, nunca escondendo a sua esperança de liberdade para os dois países nos quais decorreu a sua vida – Portugal e Cabo Verde, cuja independência e democratização desejou. Deixou uma bibliografia de notável qualidade, onde, além dos títulos já citados, são também de referir “Missiva” (1946), “Marinheiro em Terra” (1949), “O Viageiro Solitário” (1951), “Recado para a Amiga Distante” (1956) e “A Ilha e a Solidão” (1957), este distinguido com o Prémio Camilo Pessanha.

A Câmara Municipal da Ribeira Grande de Santiago, que promove esta sessão em colaboração com Terreru di Kultura, orgulha-se de celebrar assim o Dia Mundial da Poesia.

Tendo como seus Cidadãos Honorários poetas como Mário Fonseca e Oswaldo Osório, Cidade Velha chama todos os seus amigos a festejar, com mérito, a Poesia num lugar que já construiu incontornáveis tradições culturais. Será uma sessão a não perder.

Câmara Municipal da Ribeira Grande de Santiago, 19 Março 2010

segunda-feira, 15 de março de 2010

domingo, 14 de março de 2010

Madrigal no Rio Tarauacá

Acordei crente, túrgida manhã e me alteio doido,
Acordei tão sem ossatura, mas ajaezado e devoto
Kama Sutra, ocre doce, como lacre, vento e sal,
Semente de prosa, desgosto de não te ter comido…

Carrego, do que te arrenego, piracuru no rio
O desconforme das flores lá onde és cachoeira.
És também riacho que radiosa acordas, zoeira
De pássaro voando as cores que te respingam…

Juruá e Moa, no longínquo Acre, distam lagos
Esses afagos de rede e de sesta, fresta das horas
Travessas de versos, repentista e cigana à mão…

Vistos e lidos poemas nos pulsos, sulcos e traços
Dos dedos quantos fossem contar pelo despertar
Das aventuras, de tua cama e cana, no canavial…


Filinto Elísio
in Caliban driblando Prospero na Amazónia