sábado, 31 de julho de 2010

Beethoven é um erro perfeito



Beethoven é um erro perfeito


De repente, vejo o Pranchinha a comer papel na rua. A chatear a tribo sentada no café. A esmolar ao pessoal que joga xadrez. E, pior ainda, a declamar poemas de Manoel de Barros. Tipo assim:

Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.

O Pranchinha a comer papel na rua. A Semana, A Nação, Expresso das Ilhas. Outros papéis. A brochura da Constituição. Tudo é comestível. A sua amada é vegetariana, mas ele assumiu-se ruminante de papel. Como os caprinos que, vez por outra, ludibriam o cosmopolitismo desta cidade e passeiam pelo Plateau. Come até Bíblia e Alcorão. Menos fruto proibido. E no café, um primata que faz as vezes de segurança, diz que os malucos têm de ficar a sete léguas. Para não cansar os clientes. Nada de roçar as intimidades dos homens que bebem a bica sem aurora. Outrora, os bichos eram entendidos sobre o convívio das lagartixas. Agora, talvez porque anda a mandar o aedis egipty, tempo da dengue, das estradas asfaltadas, das águas por virem, fumava uma beata esquecida no chão imundo. A chatear a tribo sentada no café, imaginem. E se ele se banhasse em querosene e deitasse fogo ao seu andrajoso corpo? Para lá do alarido, dos gritos e dos sirenes, de ficar tudo a tresandar churrasco e os não canibais atirarem a primeira pedra, voltaria tudo ao princípio. Ao descomeço…e o cronista que, para enriquecer esta língua de Camões, se entrega a inventar palavras escabrosas. Beethoven é um erro perfeito. E o Pranchinha a comer papel na rua!

Mumificado em Paris

Andando sozinho pelas tortuosas ruas, como fosse magicando que a poesia tenha, por nascente, as sintaxes sem certeza. Tê-la-á, em crescente, também por esta solidão em que se deslumbra o pensamento. Aperceber-me, não por ser Paris, qualquer cidade do mundo ou teus olhos pretos, o quanto se desabrocha o meu sentimento neste tempo. Sou extraído do lugar, mas contido, diria mesmo embebido, no tempo. Perdoa-me, se ao poeta for isto: o verbo abstrair-se-lhe do começo bíblico. Ele vem de não sei onde e vai para o infinito da incerteza. Nenhuma matemática. Gramática nenhuma. Deus tão pouco. Isto é oco e meio à-toa. Leio-te alguns trechos de “A Morte do Ouvidor”, de Germano Almeida, e bebo um pouco de água que trago no cantil. Um grupo de turistas japoneses sai do autocarro e começa a fazer fotografias. O bas-fond de Paris sabe defender-se. O turismo jamais vai conseguir domá-lo. Olho para os pombos que disputam e debicam pequeníssimas côdeas de pão. Mas, afinal, o que se passa aqui? Ando assim, mumificado em Paris (é o que dá rever Tutankhamon, no Museu do Louvre) ou me entrego ao agrafo dos outros cantos? A múmia do jovem faraó será um serial killer? Bem, por aqui fico: mumificado mesmo. Não gosto de dar muita confiança à cidade grande…

Os calares das casas

De repente, as casas começam a morrer. Uma a uma. Vai a turma à urna. Inexoravelmente. Quero dizer, as casas lá ficam, mesmo quando se arruínam. Os lares é que nascem, crescem e morrem. Podem até parir. Crescer e multiplicar. São lagares do ciclo desta vida descontente. À noite, ratos e morcegos roem o silêncio que delas restam. Réstias de nada, com fantasmas. Coaxos de sapos e ladrares de cães vagabundo. E vaga-lumes, grilos e baratas. Bichos pelas brenhas e gravanhas. Espumas ressequidas de onde as vozes são ruidosas. Os lugares são a sua própria decadência. Agora é o formigueiro que se abeira das portas. Pode o poeta pintá-los a fresco, retocá-los com metáforas. As letras, quais blocos de cimento das almas, são o recurso da indigência. No café, sentados à ruminação das horas, a tribo provinciana afoita-se às últimas da Copa do Mundo. It’ s time for Africa, o providencial golo espanhol a lixar a Holanda e o pintor de frescos (um barrilzinho de encomenda) a chatear. Arre que é tão inútil a poesia de os recensear todos. Casas que começam a morrer. Lares, queria eu dizer-vos…

sábado, 24 de julho de 2010

Proposição

Ano a ano
crânio a crânio
Rostos contornam
o olho da ilha
Com poços de pedra
abertos
no olho da cabra

E membros de terra
Explodem
Na boca das ruas
Estátua de pão s6
Estátuas de pão sol
Ano a ano
crânio a crânio
Tambores rompem
a promessa da terra Com pedras
Devolvendo às bocas
As suas veias
De muitos remos

Corsino Fortes

sábado, 10 de julho de 2010

Je t'aime

Je t'aime pour toutes les femmes que je n'ai pas connues
Je t'aime pour tous les temps où je n'ai pas vécu
Pour l'odeur du grand large et l'odeur du pain chaud
Pour la neige qui fond pour les premières fleurs
Pour les animaux purs que l'homme n'effraie pas
Je t'aime pour aimer
Je t'aime pour toutes les femmes que je n'aime pas


Qui me reflète sinon toi-même je me vois si peu
Sans toi je ne vois rien qu'une étendue déserte
Entre autrefois et aujourd'hui
Il y a eu toutes ces morts que j'ai franchies sur de la paille
Je n'ai pas pu percer le mur de mon miroir
Il m'a fallu apprendre mot par mot la vie
Comme on oublie


Je t'aime pour ta sagesse qui n'est pas la mienne
Pour la santé
Je t'aime contre tout ce qui n'est qu'illusion
Pour ce coeur immortel que je ne détiens pas
Tu crois être le doute et tu n'es que raison
Tu es le grand soleil qui me monte à la tête
Quand je suis sûr de moi.

Paul Éluard