quarta-feira, 3 de agosto de 2005

Angelus Novus

1.



Gosto de passear pela orla marítima da cidade da Praia. Ver a baía, o apelo uterino da paisagem, o seu abrigo que antevê o mundo com um certo vagar. Ando pela calçada da marginal, os transeuntes circulam em azáfama de fim do dia e um bando de aves pousa na areia da Praia da Gambôa. Gosto de passear, assim sozinho, pela orla marítima e é quase certo que andamos sempre em espiral.



2.



De repente, percebe-se que a identidade existe não só pela origem comum, mas pelo destino comum. O vivermos colectivamente como destino é o grande leimotiv do desenvolvimento. E esta consciência interpela a todos e, no âmago, a cada um particular, para a saga colectiva. Tudo não passa de um grande périplo rumo ao infinito afinal. Entrementes, o tempo existencial do indivíduo pode ajustar-se ao percurso épico de um povo. Senti isso, na pele, ao participar nas comemorações do 30º Aniversário da Independência Nacional. Parafraseando Padre António Vieira: a festa mais de todos e a festa mais de cada um. Dir-se-ia que o vento trans-histórico bafejou a minha face e me deixou marcas por fora. Já nem direi do que me vai cá dentro. O tempo, que nasce com o homem, não pode ser compreendido de molde apenas objectivo. Deve ser visto crítica e historicamente no modo como ele é vivido pela complexidade do sujeito. Há um quadro de Paul Klee intitulado Angelus Novus. Vale a pena conhecê-lo. Ele representa um anjo a afastar-se de algo que encara fixamente. Os vários elementos desse quadro dão a ideia da Fortuna, mas o Anjo encara-os como uma catástrofe única, à qual é preciso fixar os olhos com consciência de que toda a construção carrega a sua própria ruína. Assim, estes foram dias reais, mas com quê de metafísico. E, como diria Jorge Luís Borges, em El Aleph, o final da história só se pode contar em metáforas pois passa-se no Reino dos Céus, onde o tempo não existe…



3.



Escuto, com causa, o último disco de Tcheka Andrade. Este entendeu que a diversidade cultural é preciso. Cabo Verde só chegará à internacionalização e à globalização se conseguir apresentar, com qualidade e excelência, a sua Cultura. Isso de forma mais diversa possível. A sociedade cabo-verdiana reflecte, em sua própria génese, o pluralismo cultural. Somos uma síntese inter cultural e não apenas um mosaico de culturas. A nossa idiossincrasia está no aceitar a diversidade e transformá-la em matriz da nossa identidade cultural. Esta realidade intrínseca é a verdadeira teia que mantém a rede da nação cabo-verdiana, cerzida na sua geografia insular e da diáspora. Tcheka Andrade entendeu-o como poucos. Já agora, seria importante que a sociedade cabo-verdiana se inteirasse dos debates em curso sobre a diversidade cultural.

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