sexta-feira, 31 de março de 2006

Notas soltas...com leite de côco

1.

Dia mais ou menos livre. Ontem, entreguei o meu Plano de Trabalho à AGÊNCIA e aguardo o feedback. Hoje, estou mais doméstico. Enquanto isso, faço a ménage do meu apartamento e a panela coze um guisado de frango com mandioca. E com leite de côco, esqueci-me de pontuar. Da mesa da escrita, o Denzel e o Pablo, meus pássaros, sorriem para mim da moldura fotográfica.

O funaná entra, lento e melodioso, pelo meu portátil. É a Rádio de Cabo Verde, repescada pela www.nave.cv . Zeca di nha Reinalda e a sua voz inconfundivel:

Oh, Segunda, kela ka ta fazedu…

O noticiário diz que anda um Director da Prisão, agora demissionário, a contas com a Justiça. Pelo entendido, há uma grande nebulosa sobre o caso. Que o mesmo não seja partidarizado, como quase tudo o que acontece. O importante é que a Justiça funcione…

2.

A Justiça funciona? Acho que funciona sim, ainda que malmente. Há dias, apareci diante de um Procurador a depor, como testemhuna, contra a agressão a que uma advogada foi vítima. Isso me fez lembrar uma queixa contra mim, porque Visaonews publicou um artigo não assinado e que caiu no desagrado de um dos nossos deuses pés descalços. E, por ironia do destino, não tinha sido eu o autor do artigo! Eu era (e sou) apenas um dos accionistas desse jornal online, por sinal presente em Cabo Verde na altura. Não entendi a queixa contra mim, mas Freud explica. Ele tem costas largas. Na altura, quis usar aquele dispositivo constitucional de mandar tudo e todos às urtigas, mas deixei correr a palhaçada e, como se previra, não deu em nada. A questão acabou plasmada no Relatório dos Jornalistas Sem Fronteiras e no dos Direitos Humanos, do Departamento de Estado Americano. Mas a Justiça funciona. Ela, por exemplo, convocou o Manuel Delgado, jornalista senior da nossa praça, por telefone a comparecer “daqui a duas horas” e este, tão brilhante quão irreverente, contou-me das ternuras que disse à “autoridade”. Funciona sim, e como funciona! Eu, por exemplo, fui agredido por um animal raivoso e à traição, e até esta nada. Arrependi-me mil vezes não ter revirado a afronta na hora, saldando ali as contas com o “amofinado justiceiro”. É um detalhe tão somente, mas, como diria Flaubert, “le bom Dieu est dans le détail”…

3.


Não sou daqueles que diaboliza o Estado e, importando lixeiras ideológicas, vocifera pelo seu fim. Defendo antes um Estado democrático e social, sobretudo num país como o nosso. Cabo Verde precisa de Estado ágil, moderno e forte. Isso não significa a defesa de uma economia sem mercado ou de uma cidadania esquecida do bem-estar e da qualidade de vida. A riqueza é gloriosa, vaticinou Deng Xiaoping, algo que os pós estalinistas, trotskistas e “trotskeiros”, bem como os tais deuses pés descalços, nunca entenderam. O buraco tem sido sempre mais em baixo, companheiros. Temos de ter um Estado que assuma a Educação, a Saúde, a Segurança, a Justiça e a Política Externa. Para o resto, valha-nos Deus, terá de ser a sociedade…civil, ora.

4.

Março, mês do Teatro, termina hoje. E queria não só saudar João Branco e Francisco Fragoso, cada um imprescindível à sua maneira, mas também fazer uma homenagem a Sammuel Bekect, cujo centenário do nascimento já se comemora em todo o mundo. Entrementes, da cozinha, ressalta o aroma do frango guizado com mandioca. Tresandada a leite de côco. Quanta fome…

Oh, Segunda, kela ka ta fazedu…

quarta-feira, 29 de março de 2006

A lacónica flor da língua

A flor do lácio e o roteirista de surpresas

Para alguém, como eu – do antanho apaixonado pela museologia e pela língua portuguesa –, o Museu da Língua Portuguesa, inaugurado recentemente na cidade de São Paulo, é um bálsamo. Fico a imaginá-lo de longe e a namorá-lo no pensamento. Ou, então, a acariciá-lo virtualmente, pelo Internet. Ele permite de facto um conhecimento intensivo e exaustivo da língua portuguesa e nos confirma a pujante (e ainda não totalmente acordada) existência da lusofonia. Outrossim, ele se revela, a um tempo, real e fantástico. Como adoraria aprofundar o meu conhecimento sobre museus interpretativos, que usam as tecnologias de comunicação de ponta para embalar conteúdos de assaz interesse colectivo. Importava reafirmar que os museus hoje em dia não apresentam apenas artefactos, mas ideias e imaginação. Anteriormente, o curador era um guardador de peças, agora ele e um roteirista de surpresas. Isso me encanta…


Sucessão no MpD ou algo mais sério

A propósito da sucessão no Movimento para a Democracia (MpD), acertada depois do duplo desaire eleitoral, o meu confrade Manuel Delgado tocou num aspecto realmente importante ao dizer que o deputado Jorge Santos, para ele o melhor posicionado, “apesar de ser preto, é de Santo Antão”. E, o pior, ele assume isso como um “defeito” em conexão a que denomina o “badiuísmo que inquina a elite política cabo-verdiana”. Amigo, respeitador e ciente da pena de Manuel Delgado, procurei ler o artigo sob vários ângulos antes de me pronunciar. Mas não pude deixar de ficar intrigado com o vector nele impregnado. Ora, os “defeitos” de Jorge Santos não se radicam em ser “de Santo Antão”, o que em Cabo Verde não será condição suficiente para ganhar e/ou para perder qualquer pleito. E muito menos a pretitude, seria condição sina qua non da ascensão e/ou queda de alguém na Ilha de Santiago. Os seus “defeitos” serão com certeza outros…Ademais, não é o “badiuismo” que inquina a politica cabo-verdiana. Mas sim o regionalismo estreito e letal, o bairrismo besta (vamos botar besta nisso), de uma elite, que, a continuar, poderá indicar caminhos tenebrosos e desavindos. O “badiuismo”, assim como o “sampadjudismo”, seriam faces opostas da mesma moeda, há muito fora da circulação, mas que sub-repticiamente gente bem localizada utiliza como cavalo de batalha. A indivisibilidade de Cabo Verde e os fundamentos da cabo-verdianidade, conceitos eivados de significado, revelam que realmente somos um povo coeso e único, e que a diversidade dos nossos jeitos e trejeitos, longe de ser um condicionalismo, é a nossa grande oportunidade. Por isso, uma outra abordagem, por favor…

Torres verdes para Nova Iorque

Em Nova Iorque, tornou-se importante e correcto construir prédios ‘ecológicos’. Isto é, edifícios projectados para diminuir o impacto sobre o ambiente – com sistemas para economizar a água e a energia eléctrica. As maquetas dessas novas edificações estão expostas no museu dos arranha-céus, em Manhattan. Há pelo menos uma dúzia delas, nomeadamente a nova sede do jornal The New York Times, o corporativo "The Hearst Tower", residencial "One River Terrace" e a Torre da Liberdade, que será construída no "Ground Zero" (terreno onde se localizavam as torres gémeas do World Trade Center), entre outras. Mas tudo indica que, muito em breve, as casas ecológicas se tornarão populares nos Estados Unidos e no resto do Planeta. Em Cabo Verde, agora que pretendemos dar vida (e sustentabilidade) aos ZDTIs, a questão poderá perfeitamente ser levantada com acuidade. A ecologia deveria encarada como pré requisito para o investimento imobiliário e turístico. E para que não fiquemos a ver navios, os nossos edis e arquitectos deveriam fazer-se por uma sensibilidade ecológica. Verde que te quero verde

domingo, 26 de março de 2006

Distante do Pranchinha


Nota necessária

O S/Cem Margens entra numa nova fase. Distante do Pranchinha. Os sinais foram dados nas últimas semanas. Fi-lo com enigma, naturalmente. A realidade sem a magia seria “bera”, o leitor poderá imaginar. Mas, sob o diáfano da sombra, deixei as pistas necessárias. A literatura tem a sua vertente confessional e Flaubert teria dito a grande verdade quando, sobre a pressão das autoridades e dos bons costumes, assumiu “Madame Bovary c’ est moi”. Tudo sou eu, ao fim e ao cabo, e daqui a alguns anos alguém dirá terem servido estas notas, em forma de crónica, para algum entendimento do espírito da época. Uma nova fase, repito, mais voltada a aspectos de uma actualidade de acuidade colectiva. Obviamente que, vez por outra, terei uma recaída. Afinal, o escritor não vende, por nada deste mundo, a sua criatividade…e a sua liberdade!

Brasil X Cabo Verde

Numa hora em que Cabo Verde almeja ancoras ou, se tanto, procura parcerias estratégias, não me parece descabido chamar a atenção da opinião pública sobre as relações com o Brasil. As afinidades históricas e culturais não faltam. Aquando a Independência do Brasil, no século XVIII, um coerente movimento da opinião pública cabo-verdiana queria indexar Cabo Verde a esse projecto refundador. Antes disso, milhares de escravos oriundos de Santiago haviam chegado a varias regiões brasileiras – Minas Gerais, Bahia, Alagoas, Ceara e Pernambuco, entre outras –, marcando espaço antropológico e cultural ate hoje pressentido. Em tempos menos recuados e mais contemporâneos, o Brasil manteve no imaginário crioulo e nada sintetizou tanto essa mística quanto o poema de Jorge Barbosa “Você, Brasil”. Alias, o Movimento Claridoso, que teve por arauto Jorge Barbosa, em 1935, e por consagração a Revista Claridade, em 1936, teve, entre as suas influências o Modernismo Brasileiro, mais precisamente a sua vertente regionalista (leia-se nordestina). Em verdade, as afinidades são tantas que não se sabe se o Brasil configura “um Cabo Verde grandão”, como afirma o Embaixador do Brasil Victor Gobato, em rasgo de fina diplomacia. Ou, se como vaticina a morna imortalizada por Cesária Évora, “Cabo Verde e um pedacin di Brasil”. Para lá destes aspectos, um tanto ao quanto sentimentais, continua a existir um grande potencial de cultura, diplomacia e negócios, ainda por explorar e alargar, nas relações entre os dois países. Numa nota afim, diria que alguns questionamentos podem ser levantados sobre o papel de Cabo Verde diante da aproximação brasileira em Africa, sobretudo em Africa Ocidental. Sendo membro da CEDEAO (com a vantagem comparativa da insularidade, da salubridade e da estabilidade político-social), Cabo Verde configura-se como um parceiro estratégico para as empresas brasileiras, de sectores bem determinados, na sua conquista do mercado oeste-africano. E os países da sub-região africana, pelas razoes acima abordadas, não encontrariam melhor parceiro que não fosse Cabo Verde para o import-export com o Brasil. Enfim, estes e outros questionamentos podem fazer sentido na actual fase do desenvolvimento de Cabo Verde, o que só seria coerente se, para alem da CV Investimentos, das Câmaras do Comercio e do próprio Governo, a questão fosse socializada em debate aberto junto a cidadania, sem prejuízo para a sua necessária pesquisa cientifica e académica. E quem diz Brasil, afirma também outras âncoras e parcerias em potencial. Importa, nesta fase transaccional do pais, realinharmos de forma critica e correcta nas Globalizações que interessam!

Museu dos Correios

Ocupo parte do meu tempo, agora que tomei a decisão de viver da escrita (risco espinhoso, note-se), a formular o projecto da criação do futuro Museu dos Correios de Cabo Verde. Esta nova ocupação, que me permite espaço para uma pesquisa académica, obriga a entrar no mundo fascinante da museologia, algo que deveria ser pensado com mais propriedade e parcimónia em Cabo Verde. Para que servem os museus? Apenas para guardar relíquias de um tempo e um templo distante ou sacralizado? O museu moderno é um pólo de conhecimento e de acontecimento. O seu grande desafio consistirá em oferecer – sem perder as suas especificidades enquanto lugar de conhecimento, de história, de simbologia cultural e artística – mensagens atraentes, proporcionar experiências estéticas, vivências formativas mas também lúdicas, cultural e socialmente ricas. Por conseguinte, o futuro Museu dos Correios de Cabo Verde comporta a história postal cabo-verdiana, desde a época colonial até ao presente. Nele, os visitantes aprenderão sobre as formas e os meios utilizados para a realização dos correios no arquipélago, com ênfase para a correspondência escrita, o telégrafo, o crédito popular, a filatelia, o telefone e as inovações institucionais. Deixo a consideração dos leitores esta afirmação de que os Correios constituem uma das instituições mais antigas, marcantes e úteis do Arquipélago de Cabo Verde

quarta-feira, 22 de março de 2006

As sandálias do peregrino ou recurso a Mulher nua

Ao Amadeu Oliveira, lúcido nesse Templo, que não confunde demagogia com sacerdócio...


« Femme nue, femme noire
Vétue de ta couleur qui est vie, de ta forme qui est beauté »
- Leopold Sédar Senghor


Mote

Enquanto isso, uma corja de labregos e com mandíbulas ao léu, intenta contra a ordem dos dias. De vez em quando, saio assim da cena e deambulo por aí como uma verbo à toa. Deixo-me levar pela brisa que venta, esquecida e serena, acalentando o meu momento. Passa a dita manifestação e eu, pensativo, introspectivo mesmo, não me identifico com nada disso. Apetece-me gritar aqui na crónica, recitar aos labregos os versos Mulher Nua, mas o tempo passou e o leitor, aquele mais obtuso, não iria gostar da estilística. É que morreu o filósofo português Fernando Gil e o pensamento ficou mais pobre. Ele nos ensinara que para se perceber seja o que for, é preciso olhar até à linha do horizonte e ir um pouco mais além. Um grande homem…

Nota para a malta da Campanha

Recebe a faixa presidencial o Comandante Pedro Pires. O acto tem grandeza e, sobretudo, transcendência. O Presidente, de entre os demais, é quem mais defende a estabilidade da nação, razão por que eu e a maioria dos cabo-verdianos nele apostámos. Queremo-lo, por isso, em serenidade e muita saúde, para que possa potenciar (a Cabo Verde) …es paz di Deus. Aos companheiros da jornada eleitoral, recordando-lhes Ildo Lobo em sua ausência, um grande abraço de Homem Livre…

Dos livros

Dos livros que deixo, em boas mãos vale dizer, três foram tão marcantes que lhes devoto um amor táctil e uma ternura física. «Os Lusíadas», de Luís de Camões, «Intérprete de Enfermidades», de Jhumpa Lahiri, e «Confissões de uma Máscara», de Yuko Mishima. Com o primeiro, aprendi o ritmo e a métrica, o engenho e a arte das letras intemporais. Com o segundo, tomei tento à trama com que o novelo se desenrola. E com o terceiro, sonhei que sorria deste imponderável todo. Faço votos que estes três fabulosos livros sejam, para quem os doei, verdadeiras bíblias. Basta que a leitura se alheie do profano. Em verdade, o sagrado nunca esteve nos livros, mas na sabedoria de quem os lê...

Dia Internacional da Poesia

No Dia Internacional da Poesia (e da Árvore), a par das actividades do Ministério da Cultura, quis fazer um tributo particular aos meus poetas dilectos. Dos cabo-verdianos, separei Jorge Barbosa, Ovídio Martins, João Vário e Arménio Vieira para balbuciar seus versos à boca da noite. Dos estrangeiros, transportei para um lugar à-parte Walt Withman, Jorge Luís Borges, Fernando Pessoa e João Cabral de Melo Neto. Os leitores poderão ter um naipe diferente, pois a poesia é um campo vasto e sem tempo. Hoje, por exemplo, apetece-me falar-vos de Leopold Sédar Senghor, um dos expoentes da poética mundial, cujo vate levou aos altos píncaros a negritude. E, a partir dele, extrair, em tributo à “prefaciadora implacável”, as palavras mais belas no manancial do sentimento, quais sejam:

(…) Femme nue, femme obscure
Fruit mûr à la chair ferme, sombres extases du vin noir,
bouche qui fais lyrique ma bouche (…)

As sandálias do peregrino

Chamados à sombra de uma árvore, quisemos contar uns aos outros as estórias das nossas vidas. Enquanto isso, uma corja de labregos, vociferante e besta, insiste em “quebrar” o nosso concêntrico abraço. Em comunhão, repitimos em coro as palavras de Fernando Gil: «Cada coisa, para ser o que é, tem de estar em ligação com todas as outras. A identidade ideal é uma rede de conexões infinitas. Para se perceber o mínimo sobre o mínimo seria preciso conhecer-se tudo». Kírie…meus irmãos!

quarta-feira, 15 de março de 2006

Traz di Som

Anti-Semitismo em Cabo Verde

Fiquei indignado quando li uma nota jornalística, cuja manchete vinha nestes termos: Anti-Semitism subsidized by U.S.? Aid flows to Cape Verde regime that attacks Jews. E também acompanhei a lista dos emails, em forward, até à minha “caixa de correio electrónico”. Somando dois mais dois, vi claramente o quatro e o quadro de gente bem identificada que, uma vez mais e pela falácia, avilta a imagem de Cabo Verde. Não pude deixar de pensar, com náusea diga-se, que há um lado perverso neste nosso jogo democrático. Em verdade, a democracia só nos interessa, se for com verdade, pão e fonema. A democracia só é virtuosa se estribada na liberdade e no bem-estar, conceitos alargados e subjectivos, mas com uma sustentação cognitiva muito clara. O anti-semitismo não existe em Cabo Verde e não seria pelas opiniões irresponsáveis de Florenço Baptista, nem pelas reacções desproporcionadas de José Tomás Veiga que ele passaria a existir. Quase todos nós, cedo ou tarde, tivemos ascendentes judaicos e isso, assim como outras ascendências, não nos torna melhores, nem piores. O sermos mestiços significa que corre em nós o húmus antropológico de origem vária e recusar esta realidade é sermos empobrecedores. Mas o busílis da questão está na maliciosa tentativa de “denunciar” uma situação que não existe, com o fito de “encurtar” ou mesmo comprometer a assistência americana e/ou outra a Cabo Verde. A política do “vale-tudo”. Chegados aqui, peço-vos licença para vomitar…

Assessorando a Cultura

Ter servido no Ministério da Cultura me deu a enorme percepção das mudanças que o sector demanda. E não deixou de ser “uma verdadeira escola” partilhar o dia-a-dia profissional com Manuel Veiga, Ministro da Cultura, como assessor. Longas e caudalosas conversas (e sonhos, porque las hay…) e planos sobre a causa e a coisa da Cultura. Em verdade, precisamos de mudanças radicais a nível do sector, nomeadamente em questões da inclusão, da diversidade, do património, do livro e da leitura, da arquivística, da animação e, sobretudo, da internacionalização. Se quisermos fazer da Cultura um factor importante, se não mesmo aquele determinante do PIB, temos de encetar a triagem e a selecção do potencial, investir pesado na produção e introduzir um novo padrão de qualidade dos bens e serviços culturais. A lógica da subvenção indiscriminada, autentico hábito de FAIMO cultural, não nos levará a caminhos do sucesso e da excelência. É preciso reservar o subsídio institucional para os casos excepcionais e periclitantes. Para a maior parte dos casos, urge instituir créditos, com juros motivadores, que permitam a um tempo introduzir a noção do mercado artístico e a outro tempo estrategizar a inserção internacional da Cultura de Cabo Verde.

Traz di Som

Não podia deixar de assinalar o lançamento do álbum Traz di Som, de Ângelo (Djinho) Barbosa, ocorrido na última sexta-feira, no Palácio da Cultura. São 16 faixas de boa música, à procura ousada de novas sonoridades e de outras atitudes para com a Música. Projecto generoso e federador, Ângelo (Djinho) Barbosa, conseguiu o feito de reunir, para fazer coisa boa, 35 músicos de diferentes matrizes e matizes. É obra. Num tempo em que precisamos, como pão para a boca, de destrinçar o trigo do joio…

Intervalo

Não me é possível prosseguir esta crónica sem que a tristeza e a saudade aflorem à linha do texto. Os sentimentos invadem-me a escrita e eu nada mais sou do que um cronista de viagem. Queria ser cerebral e frio, pura faca incisiva na carne. Queria não ter pena dos dias soletrados nas horas. Nem lamentar o sol que, desaparecido no poente, voltará amanhã recauchutado e...fatalmente outro. Queria ser estrela cadente e riscar, com ilusória beleza, o silencioso céu. E, quem sabe, poder regressar ciente da minha prefaciadora das crónicas implacáveis. E dela ter, quiçá em retorno, um pródigo abraço...

segunda-feira, 6 de março de 2006

Linda cotovia

Nota para Dolores


Vejo o sol a pôr-se em raríssima beleza e a minha tristeza é uma existência…com poesia. Chamava-a, com respeito e amizade, “linda cotovia”, mercê de uns versos de Xavier Villarutica, poeta mexicano. E a minha amiga dizia amiúde versos de Pessoa quando a ocasião prometia balbuciá-los. E foram poucos, mas bons, os momentos de encanto em que pude com ela falar sobre os livros que, pela fantasia, nos apanharam pela rama. Os livros de Miguel Torga, dizia-me ela. E eu insistia que lesse os de João Ubaldo Rodrigues, devasso das vestes que aprisionam certos intelectuais. E aplaudimos juntos Lauro Moreira, na residência do Embaixador Victor Gobato, a recitar, em eloquente verve, “Alguns Toureiros”, de João Cabral de Melo Neto. Ou tão simplesmente, com uma candura de pássaro, “Estiagem”, de Jorge Barbosa. Pois é, Lica era uma alma boa, doce e pacífica. Uma alma poética. E, sempre que morre alguém próximo da minha saudade, fico a flutuar no pensamento e, sem alarde, deixo a minha solidão ir ver o pôr-do-sol.


Fome


Inaugura-se o Monumento à Fome e às Vítimas do Desastre da Assistência, numa das rotundas da capital. É um obelisco em tríade, a representar a família nuclear cabo-verdiana, disposta de forma concêntrica numa procura de céu…e de eternidade. Os obeliscos são assim: agudos, dramáticos e desafiadores. A cidade irá entender pouco a pouco o significado do Monumento e recriará a partir dele um traço mais estético (e mais futurista) para o espaço. A Fome continuará, por muito tempo, a ser uma referência em Cabo Verde. É uma experiência traumática e matricial inscrita na psique de todos nós, mesmo daqueles que insistem no esquecimento. Assim, no imponderável da velocidade das luzes e dos automóveis, faça sol ou lua, nuvem ou Juno, a nossa memória se sublimará em beleza neste chão da República…


Albatrozberdiano


Entrementes, alguém entoa uma melopeia triste e não consigo identificar quem seja. Sempre a medo de serem as sereias, das que cantam à aventura peregrina, amarro-me ao mastro da minha imaginação e sigo a viagem. Não me importa o que os deuses pequenos pensam dos dias. Estes (os dias, naturalmente) passam indiferentes aos grandes e desaguam sempre na profundidade do destino. Quem souber doutra margem, atire aqui e agora a primeira pedra. Ou tão simplesmente ria o seu riso sapiente que a própria vida tem os seus cabelos brancos. Mas não se julgue ingénuo e abrutalhado este fruto das vinhas. Tem-se nesta hora os dentes todos na boca. E o que era doce acabou: o Supremo já deu o seu veredicto e a Vénus de Milo, como diria Arménio Vieira, está gorda. A partir de hoje, entra-se no realismo pesado e a poesia, a pouquíssima então, desvelar-se-á pelo ralo. Eu já não acredito nas manhãs que cantam. Infeliz, mas lúcido, farei sozinho a minha longa estrada. Sem lenço, nem documento…