quarta-feira, 8 de junho de 2005

As cidades e os versos

Gás lacrimogéneo

Nessa altura, a cidade cheirava a laranja azeda. Talvez não seja curial, nem romântico, falar desse cheiro nauseabundo que, pressentido assim à distância, sempre dá alguma saudade. De qualquer forma, eram tempos mais heróicos de que hoje e os amigos - tão diferentes outrora!, carregavam em simples gestos a dimensão da aurora. Mas não pretendo aqui falar do perfume daqueles dias sobressaltados, às vezes, de prisões na calada da noite, outras vezes, de amigos evadidos. Nessa infância (sim, porque tive aquela entre tantas outras), eu gostava muito dos versos de Ovídio Martins que os meus pais, insidiosos no educar com a necessária subversão, declamavam à mesa:

Mordaças a um poeta? Impossível!

Seria esta uma excelente ocasião para homenagear o grande poeta da resistência cabo-verdiana. É que a história não se compadece com o esquecimento. E a memória é, no mínimo, um acto de justiça. Acto de justiça. Nessa altura, nós estávamos sob bloqueios e só os homens maiúsculos ousavam ser poetas. Tempos depois, soube que a laranja azeda, pressentida numa manifestação em Belo Horizonte, era o cheiro de gás lacrimogéneo. E, ainda que soe paradoxal, sempre deu alguma saudade...

Fenway Blues

Soubeste dos tempos de Fenway Blues, do imenso parque vis-a-vis Queenbury Street. Os amigos ensaiavam na sala e queriam ser, à força e a eito, um quarteto a tocar no Wally´s . O Ney nos seus intermináveis acordes de Charlie Parker. O nosso apartamento era o Birdland. Quando cheguei a Boston, não tinha sobre a cidade uma opinião propriamente simpática. Só mais tarde, depois de a deambular de fio a pavio, é que me aquiesci de que ali estava a minha segunda cidade. A primeira era – e continua a ser - a Praia. Não por ser a mais limpa, nem a mais bonita. Apenas por ser, nas cem razões do amor, a mais querida. A mais limpa, parecia-me Genebra que conhecera num memorável Natal, e a mais bonita, me perdoem as outras, era Rio de Janeiro que amedrontava ao mesmo tempo que encantava. Mas Boston, dizia-vos, era uma cidade demorada de se amar. Ela deixava-se envolver, a princípio, puritana e austera, depois, comedida e mais solta, e, finalmente, alegremente culta. Por isso, fiz nascer os meus dois filhos – big boys, indeed – nessa cidade: o Denzel, em St Margareth Hospital, e o Pablo, em Beth Israel Hospital. De repente, estou na beirada do Charles River. Para ser mais preciso, do lado de Cambridge, onde a cidade de Boston parece de um dourado singular dos fins da tarde. Canoas a remo e pequenos veleiros passam por mim. E tu, se tanto, ficas agora mais aninhada no meu pensamento. Birdland, não me faças rir. Digo-te Birdland, neste vagar das ondas, como se declamasse os versos de T.S. Eliot:

Não sei muito acerca dos deuses
Mas creio que o rio é um deus castanho...


Livros destes últimos dias

O livro 1421: O Ano em que a China Descobriu o Mundo, de Gavin Manzies, diz que uma grande armada chinesa, constituída por 300 navios e 30 mil homens, partira do Porto de Tanggu, a 5 de Março de 1421 e descobriram as Américas e a África Ocidental, inclusive Cabo Verde, antes dos portugueses. Segundo esse autor, em Santo Antão, há uma pedra de estrutura octagonal, datado de 1421, com caracteres hieroglíficos chineses. Baseando em antigas cartas náuticas e em datas astronómicas, bem como nos despojos de navios nas ilhas atlânticas, ele defende que foram os chineses os primeiros a atingir a Cabo Verde, nessa primeira viagem completa à volta do mundo. Não comento certas “verdades” que desconheço, repto para os historiadores claro está, mas recomendo a leitura, quanto mais não seja ficcional, da obra. E por falar nisso...Não sou um fanático pela Teoria da Conspiração, mas o livro O Código de Da Vinci, de Dan Brown, proporcionou-me uma interessante leitura. Um jogo de chaves escondidas, revelações surpreendentes, enigmas complicados, realidades e fantasias históricas, tudo narrado a um ritmo que leva o leitor ao enigma mais fechado da nossa era. Li-o com prazer e curiosidade...

Hermético

Hermético, quem sabe, se influenciado pelas leituras acima descritas. Deixo-vos a chave dos meus enigmas, que os tenho por dever e direito. Há dias estava feliz por ter visto um passarinho verde e parece que um deus castanho não gostou. Do volante do seu jeep, tentou uma, duas e três voltas, a ver se Alonjo Quijano esquecia a sua Dulcineia. Mas quixotesco da silva, já velho demais para saber tanto acerca desses deuses. Enfim, tudo em horas de conhecer alguém, numa casa não se sabe de quem. Ela olha-o de modo tão uterino que outra melodia aquele encontro não poderia ter tido. E dito isto, meus caros, passem o pudor e a prudência, as mesuras todas da escrita e o que mais queiram, a história vos fica neste ponto final.

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