terça-feira, 29 de novembro de 2005

Ronda nº 1

(Seis imigrantes africanos morrem afogados a sul das ilhas Canárias, devido ao naufrágio da embarcação clandestina. Livros lidos e desafios à vista. Amanhece na cidade da Praia. Ontem, houve fogo de artifício. E eu numa melancolia de bom tamanho)



Zero

O editor e o leitor me perdoem a impertinência, mas hoje queria escrever em retrospectiva. Prometo ir e vir ao sabor do vento. Ao bom gosto do teclado, direi. Assim, como quem não quer a coisa….Uma das personagens do meu tempo era Balela (nome trocado, naturalmente), que fez grande carreira de vagabundo na cidade e tinha um português muito parecido a alguns deputados de hoje, teimosos em não levarem a oratória para o crioulo. Balela dançava no meio da praça, ao som da Banda Municipal, que, ao tempo, chamávamos de “musguêros”. Venham ver Balela a bailar o cha-cha-cha! E era a felicidade da meninada vê-lo dançar. A malta trocava o lanche de casa pela passada do dito e ficava a desoras a aprender as piruetas que o mesmo ensinava. Naquele tempo, a praça era um lugar bonito, ajardinado e alinhado. E o coreto ali imponente e o chafariz com repuxo de água. Outro tempo, aziago em muita coisa, mas em que o calcetamento não demandava cooperação internacional e outros trâmites cabeludos, sabe o leitor como são. E Balela era o rei e o senhor de tudo, porque elegante e amigo das crianças, vagabundo da primeira apanha, gente finíssima. Lembrei-me dele de repente e acho que estou a ficar velho. Ou, se tanto, a ficar mais rabugento e impaciente comigo próprio. Ou tão-só a morrer devagar. Arre, que estou numa melancolia de bom tamanho…


Amanhecendo

O amanhecer é um espanto. Da janela, temperados pela insónia, pedaços do luar banham o bocejar das horas. É-se feliz em lapsos de tempo. O resto é a mesmice que nos força à vigília. Apetece flutuar no imponderável e no improvável. Apetece saltar o cerco, correr, fugir e fazer dos confins um refúgio que seja…sonho. Ou, então, ficar calado, sereno e quieto à espera que as nuvens se dissipem sobre a manhã. Tremeluzem estrelas, ora em bocados de luz, ora em danças distantes. O que dirá o Zodíaco desta minha vida? O que será traduzido nos horóscopos e noutras leituras de premonição? Silva o vento, uiva o cão e canta o galo. Este último canta para contrariar a ideia de ser cosmopolita esta cidade. O gajo canta como um desaforado bardo e as galinhas, ensonadas ainda, convencem-se do atavismo entre o canto e o amanhecer. Mas as manhãs não cantam, mesmo que os nossos pequenos deuses prometam, de mãos juntas, acordes, ritmos e melodias. Tudo não passa de um ciclo que a cada volta de expande e deixa na minha solidão o travo da morte. Tudo é falso, falácia, ilusão. Ou, quem sabe, incandescente verdade que não interessa. Enquanto isso, cá estou a testemunhar as horas que, monocórdicas, marcam o caminho das coisas. Espreito, da fresta da minha alma, e vejo a rua ainda deserta. Amanhecendo…


Leituras do mês

Embora Novembro tenha sido um mês estressante, pude ler três livros interessantes. Li, e recomendo, "Animal Tropical", de Pedro Juan Gutiérrez, escritor que afirma, em máxima irreverência que, mau grado o “global player” e o seu embargo arrogante, o povo cubano continua a fazer amor, a andar de bicicleta, a dançar salsa e a comer arroz com feijão. Outro livro excelente é “Os Limites da Interpretação”, de Umberto Eco, em discurso directo para o leitor semântico e o leitor crítico. O livro é composto de vários ensaios sobre a semiótica como instrumento matricial da interpretação. O terceiro livro (oferta do meu irmão António) é “Historias Mal Contadas”, de Silviano Santiago, crónicas saborosas, meio densas, meio soltas, como só uma certa geração de brasileiros sabe contar. Um dia, quando for grande, hei de escrever as minhas histórias mal contadas. Prometo-vos…

Desafios

Faltam cumprir dois momentos essenciais, duas eleições importantes. À nossa maneira, apoiaremos os nossos candidatos, dando o máximo de nós, onde eventualmente sejamos mais úteis. Seria bom que cada cabo-verdiano defendesse a sua dama e consolidasse com isso o processo democrático. Pessoalmente, somos pelo PAICV e pelo Presidente Pedro Pires. Pelas bandeiras que defendem. Em prol de Cabo Verde. Não seria hora de falarmos nisso, pois o tempo das campanhas ainda não começou. Mas já há cartazes na rua, por incongruência ou provocação. O jeito é soltarmos todas – TODAS – as amarras. Uipooooooooo!

A festa acabou

E a festa acabou. Com muito cansaço e alguma saudade. Qualquer pecador teria o seu merecido descanso. Sombra e água fresca. Mas não. A vida continua. Dura, rasca e marra. Faltam erguer estátuas na minha cidade. Levantar vigas rente aos céus e desafiar a paisagem urbana. Aturdido pelo turbilhão de gente, entro no carro a cortar a marginal. O mar descansa um bocado. O imenso azul, o iodo nauseabundo e a espuma na areia. Uma ave marinha, branca, branca, branca. E, de regresso, passo em frente ao ilhéu de Santa Maria e a sua silhueta lambida na baía. É uma espécie de adeus. Dizem que em breve os chineses tomarão conta daquilo – uma decisão historicamente irresponsável e um negócio, no mínimo, da China. De facto, a festa acabou. Deixou de fazer sentido. Mas estou exausto. Na semana que vem continuo…

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