quarta-feira, 15 de outubro de 2008

O Escorpião


o corpo sem sentido do morto
o sexo solitário do rato no laboratório
Ricardo Silvestrim
Garanto-vos que isto não é um conto de Rubem Fonseca. Lá porque o jovem estava ali morto, absolutamente acabado, com um espeto de ferro de uma orelha à outra, o cronista não tem de fazer a ressalva que isto é pura ficção. O infeliz tinha ainda a língua e o pénis cortados. "Esvaíra em sangue até às últimas", disse o médico que examinava o cadáver, acompanhado do agente da polícia. "Temos de ir buscar um meia-dúzia de thugs a ver se identificam este corpo", disse o agente, indiferente à multidão de curiosos. Talvez tivesse sido raptado em casa e levado por um justiceiro pelos lados da Quebra Canela. Ademais, o buraco no meio do peito era obra de um carabina doze ou de cano serrado e não de "boka bédju". Duas mulheres não aguentaram a cena e começaram nesse alvoroço de gritos e ataques. "Vocês são da família da vítima?", perguntou o agente, agora encorajado pela vinda de reforços. "Vítima o caneco. Desde que os thugs mataram o filho de uma delas que essas duas irmãs viraram desnorteadas", explicou outra mulher, esta já idosa. Na algibeira do malogrado, havia dinheiro, cartão vinti4, colares, broches e anéis. "Via-se que era assaltante, bandido, filho da puta", comentou, mais tarde, um taxista da assistência. Diante do impasse, uma rapariga dos seus 20 anos, ar de desvairada, gritou "Esse bunda aí foi morto pelo escorpião!", e o pessoal arrancou uma enorme gargalhada. Ela estava perturbada, dizem, na sequência de um assalto e de uma violação. Entrou em transe: "Pelo escorpião. Viva o escorpião!". O cronista não se mete e fica neutro. Encolhe os ombros. Completamente isento. Até porque a manhã já estava encorpada de sol e um pessoal do hospital viera cobrir o corpo com manto branco. Finito...

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