quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Corpo Presente

1.
Quando Daisy veio à casa contar aquela tragédia, não escondeu a ambivalência dos seus sentimentos. Foi buscar à estante o livro “Corpo Presente”, de Anne Enright e leu em voz alta: “Há algo maravilhoso numa morte, como se tudo fecha e todas as formas como nos julgámos vitais não são sequer vagamente importantes”. Daisy deve ter ficado horas esquecidas a mirar o corpo. Era jovem. Pouco mais que uma criança. Chegou a sentir saudades da sua própria infância. Das cantigas de roda. Da grande cozinha que dava para o quintal. Da soleira das portas em noites de luar. Os murmúrios. Os gemidos escutados às janelas dos vizinhos. Memória da infância – de um lado, vagarosa e carinhosamente; doutro lado, sinistra, como um filme de vampiros. O suicídio da dona Judite, naquele sobrado azul. Bela, como uma princesa, a senhora entrou em estado depressivo e degolou-se com uma faca de pão. Daisy tinha ido, à frente de uma meia dúzia de meninos, ver o corpo. Aquela lagoa de sangue. Fora há tanto tempo…


2.
No conforto do Hotel Vittoria, Norberto acordou a meio da manhã e viu a imagem da sua mãe em frente à janela. A princípio, parecia-lhe uma sombra informe, que mal deixava ver a silhueta da Basílica para lá da Via X Giornate. O que era uma imagem em composição foi dando corpo a uma bela mulher septuagenária. Não duvidava que era a sua mãe. Mais tarde, a madrinha telefonara a contar do assassinato do jovem thug, às cinco da matina. “À mesma hora da aparição da tua mãe”, disse ela. Norberto encontrava-se ali em repouso, a ver se conseguia terminar um livro de poemas. Andar entre os feirantes do centro da cidade, dava-lhe alento e motivação. Só a Eluana, com as suas ideias de Feng Shui e de Ioga, defendeu esse retiro pelas terras italianas. O resto da família desaprovara a aventura, sobretudo aquela parte de ir a Veneza andar de gôndola.


3.
Cinthia dormia profundamente. A mãe diria que era o sono dos justos. Ressonava até. Não dava fé dos telefonemas, nem atentava para o sol que amanhecia como uma laranja. Durante a noite, longe dali, uma mão enluvada rodava a maçaneta de uma porta. Uma figura de preto (andrógina figura, diga-se) entrava pelo quarto. Uma espelunca. O covil dos ratos. Mas ela vinha sorrateira e sem fazer barulho. A figura empunha um cano cerrado. De manhã, quando a polícia descobriu o thug morto, a dúvida ia entre a carabina 12 e cano serrado. O Escorpião era vezeiro em arma de guerra. Parecia um assassino serial. Cinthia dormia profundamente. Completamente nua. No silêncio dos inocentes. Quando acontece o disparo, longe, a milhares de quilómetros dali, as pombas voaram da cúpula da Basílica que ladeava a imagem daquela mulher à janela…

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