sábado, 6 de dezembro de 2008

TERRA-LONGE/DIÁSPORAS

(POEMA DE NZÉ DI SANT´Y ÁGU)


in memoriam do meu tio Mano Lópi,
do meu irmão Rui e do meu sobrinho Guey
ao meu filho Z'Hay
aos manos Mariazinha e Benny
aos amigos Turíbio, Cipriano, Markito e Xeu



Lembras-te, Nando
do desabrido chiar
das varetas de verga
nos arcos de ferro dos meninos
da vertigem ébria
dos pneus dos rolamentos
das trotinetes das motorizadas
feitas de restos de madeira
e de outros desperdícios
das noites longas de Assomada?

Lembras-te, Ima
dos carrinhos de arame
carregados das ervas dos frutos
dos tempos das chuvas
seguindo sinuosos
pelos trilhos de lama
pelos atalhos da vila
pelas caminhos da ilha
pelas estradas do sonho
até desembocarem
nas alamedas
nas largas avenidas
de nova york
reluzindo feéricas
nos écrans do cinema
e nas noites longas de Assomada?


Todos nós éramos
emigrações inscritas
no esqueleto das montanhas
navios de todos os atlânticos
ancorados na fisionomia
raquítica e contorcida
das purgueiras ao sol
da rala vegetação
nas raízes da fome e da carestia

Todos nós éramos
irmãos dilectos ajuramentados
nas recorrentes lástimas
nas prementes blasfémias
contra o destino aziago
e a triste desventura dos rostos
rumando
em demanda
de baleias e américas
nos conveses dos veleiros
transportando
nos porões dos vapores
as nossa almas à deriva
e os nossos diminutos esqueletos
de sobreviventes da inanição
para a crioula comunhão
para o solidário interconhecimento
para o recíproco reconhecimento
nas úberes e vorazes plantações
das ilhas do golfo da guiné
e de outros lugares do sul-abaixo

Todos nós éramos
corpos nómadas
sonhando navegar
nas noites hedónicas
inesperadas de amesterdão

rostos marinheiros
tiritando de frio
no mar do norte
no porto de roterdão
nos fiordes da escandinávia

almas penadas peregrinas
convalescendo de saudade
do lar materno de nhagar
e das suas mulheres
de ancas largas redondas
e de cabelos negros
insinuando-se
sob os lenços coloridos
soltos nos cochichos
nos sorrisos tímidos marotos
e nos ínvios caminhos da arribada
propícios ao rapto ao amor
à intimidade do sangue
jorrando dos hímens
rasgados destroçados
sobre a sua terra árida e bufa
salpicada de verde e ausência


Lembras-te, Kanpion
dos tempos embalsamando-se
na fronte absorta de finan
debruçada sobre os enigmas
e os mistérios inscritos
nos bancos do ori nos jogos de damas
nas morosas escaramuças do xadrez
exaurindo-se nos tabuleiros da moléstia e da vida
alheios aos neurónios desocupados
aos nervos desempregados estridentes
de joão cabral

e de outros rapazes
retornados
das urbes ultramarinas
das noites caboverdianas diaspóricas
das chuvas diluvianas das roças de san tomé epríncipe
dos tempos esgotantes das plantações de moçambique
da alegria subversiva dos musseques de luanda
das florestas húmidas impenetráveis do mayombe
das chanas incendiadas do leste de angola
das bolanhas armadilhadas da Guiné
das noites inquietantes das terras dos makuas
desenganados pelo espanto pela guerra
pela quotidiana humilhação pela compaixão postergada
pela indignação camuflada no ricochete pleno
das máscaras enfeitiçadas dos macondes e dos bijagós
dos seios tesos das raparigas negras das moças mulatas
oferendas da cumplicidade de kalunbinga matulukela
soba grande dos matos de ngola baxu


e de outros mocinhos
expulsos da retinta condição de segundo europeu
de portugueses de lei de guerreiros do império
de crentes na fé católica apostólica e romana
rastejando-se pelas fazendas pelos colonatos
pelas chefias dos postos administrativos
pelas repartições públicas pelos camuflados
pelos cinturões de orgulhosos enganados flechas da pátria
pelas jóias da coroa do império ultramarino português

e de outros emigrantes
deportados da aguada e branca solidão de lisboa
dos insultos públicos canibalescos
das vozes estrangulando-se
nos tempos emudecidos amordaçados
dos caminhos cancelados
das promessas abortadas da europa

e de outros patrícios errantes
lançados tangomaos luso-africanos
catanhós cavêde tongas portunhaga
kabunka black portugueses caboverdji
grunhos negros renegados afro-atlânticos
crioulos africanos insulares

nos rios da guiné do cabo verde
na senegâmbia na terra firme das costas da áfrica

nas três américas e suas caraíbas antilhas
aruba bonaire curaçau e ensenada
e seu surpreendido parentesco de falas

nas quatro estações das europas
— mais a estação do frio
do medo e dos rostos da saudade —

repatriados da rebeldia
da mão súbita humaníssima
levantando-se contra a degradação
à condição de indígena
ao estatuto de preto-negro
contra o surripio da inocência
das forças exaurindo-se
em portos fábricas plantações
selvas discotecas ruas sujas
bairros degradados climas
inclementes almas extraviadas

e de outros andarilhos ilhéus
regressados
para os campos áridos
para os campos desvairados
traumatizados
pela duradoura deserção das chuvas
e pela castanha ressaca
da catástrofe ecológica de 1968
para o brevíssimo fulgor da alma
com a primeira aguardente do dia
incerto quebra-jejum dos tempos secos
dos tempos nossos dos tempos de caboverde
e das noites longas de Assomada?

Ai noites de Assomada
dos vaticínios augurando
a ressurreição da alma e do corpo
dos que como órfãos umbigos
como desterrados cordões umbilicais
enterrados em longínquas terras
em setentrionais frias vegetações
inumados sob meridionais pantanosas paisagens
ondulam feitos crespos verdes estandartes
nos cabos de além-mar

Ai noites de Assomada
das pragas soterrando
a triste sina da saudade
dos que se finaram
na avareza dos crepúsculos
na mutilação da memória
na emudecida elegia
dos trovadores e das cantadeiras

Ai noites de Assomada
dos presságios exumando
os sinais pesarosos da extrema-unção
aos que sobreviveram
no enlevo da milonga e do tango
no contágio do lundum e do samba
na estridência do jazz na dolência do blues
nos cultos a deus ao lord jesus christ ao soul
aos orixás ao gospel aos negros spirituals
sombras escuras coloured shadows
darker bothers
do sabor vermelho dos morangos
das flores do algodão dos lodos do cais
das algas do atlântico das escuras silhuetas
da grande migração para as terras livres do norte

renascendo nas rezas
do beato simão salvador
preto caboverdiano da argentina

recompondo-se nos silvos
nos trinados no festim de sons
do jazzman horace silver
e dos seus capeverdeans blues
e dos seus songs for my father
mornos cálidos de nostalgia islenha

ressurgindo na sagacidade dos sermões
do reverendo sweet grace
fundador de rituais eucarísticos
de igrejas cheias negras
na imensidão da américa do norte

refundando-se com o pastor joão josé dias
portador de boston para as ilhas
da palavra do nazareno
para a tardia conversão de nho tatai
aos hinos religiosos aos cânticos evangélicos
e à ratificação da sua irrenunciável paixão
à medida maior que deus
ao bem ainda maior de amar o kretxeu
santificado entre os cardeais e as buganvílias
da terra da morabeza das ilhas do amor
e das noites longas de Assomada

Ai noites de Assomada
nas noites dos bravas dos black portugueses
nas américas solfejando livres o crioulo
entoando a morna ensaiando o fox trot
adormecendo ao som das estórias das ilhas
inventando uma nova alvorada
versáteis anónimos camaleónicos
entre brancos negros hispânicos
açorianos índios asiáticos chicanos
e outros nativos e outras vítimas
e outros garimpeiros e outros reféns
do sonho americano

Ai noites de Assomada
nas noites laboriosas lacrimejantes
de dionísio lopes e de outros mercanos
cativando os rumores da saudade
de tuna júlia luna zulmira
e das suladas e dos xailes
de outras mulheres de fonteana

entre as intransponíveis linhas da segregação
da humilhação e das leis de lynch e jim crow

entre a insularidade da alma
e o branqueamento do espírito

entre a sublimação das evidências epidérmicas
e a doméstica confraternização das cores
contra a vituperação do ku klux klan
e de iguais cavaleiros da camélia branca

entre a negação da separação racial
e o vagaroso estrépito do arco-íris
no alisamento dos cabelos
no lento crepitar do black power
sob a sombra erudita poética rebelde
de langston hughes ella fitzgerald richard wright
louis armstrong duke ellington thelonius monk
na lição de dignidade de frederick douglas
w. dubois martin luther king ângela davis eldrige cleaver
na inflexível e irredutível rebeldia de malcom x
na resistência da nação negra do islão
nos cabelos afro dos black panthers
acesos alumiando as noites longas de Assomada

Ai noites de Assomada
repousadas no escasso crioulo
contaminando as espáduas do júbilo
e a veemência do desamparo
entre os ritmos os gangs as gangas as fábricas
de dorchester boston brockton new bedford
rhode island providence connecticut califórnia
rio de janeiro santos e outros buenos aires
as plantações do mississipi do deep south
entre os seios alegres da estátua viúva de nova york
entre dos umbrais das américas
e as entranhas voluptuosas dos rios
afadigando-se nas noites longas de assomada

Ai noites de Assomada
repousadas no escasso inglês
contaminando a rememoração
das tempestades dos tornados
das brigas dos trágicos silêncios
do inumerável labor em terras estranhas
em rincões desconhecidos
entre o viço arregalado das plantas nos regadios
as pedras em construção os móveis luzidios
a mobília nobre as louças as vitrinas
as cristaleiras o gramofone os cavalos brancos
nos dias lúcidos e portentosos
relinchando nas noites longas de Assomada


Ai noites de Assomada
das rezas em pedra-barro
ecoando no levantamento das esteiras
na invocação dos náufragos
dos mortos de morte morrida
dos perecidos de colectiva inanição
de perplexa dorida resignação
de doença maligna de morte matada
de queda em fundos precipícios
de severino infortúnio
amortalhados
em imperturbáveis precários esquifes
em periódicas famigeradas valas comuns
sete dias depois do seu passamento
chorados
à beira triste das águas dos fundeadouros
meses depois do seu desaparecimento
envoltos nas efígies do luto
confundidos com os madeirames do silêncio
afundados com as viagens do destino
de matilde e de outros veleiros das ilhas

Ai noites de Assomada
das ladainhas em cova-furtado
convocando as notícias perdidas

dos rostos soterrados
nos escombros dos prédios

das almas implodidas
demolidas na azáfama das obras
na promiscuidade das camaratas
nos destroços dos choros
em súbitos ignotos paradeiros

dos rostos escuros devolutos
na crã fragilidade na erma agrura
na agreste desfaçatez nas íntimas refregas
das barracas nos bairros degradados
nos escombros do pânico e do pasmo
entre o aconchego das empenas e da saudade
nas prisões sobrelotadas
nas ruas negras desterradas recentes
da pedreira dos húngaros da cova da moura
de santa filomena da azinhaga dos besouros
das fontaínhas de estrela de áfrica da bela vista
do alto de santa catarina dos arrabaldes de lisboa

nos estaleiros derruídos de alcântara
nas casernas nas camaratas
nos andaimes nos guindastes nas gruas
da lisnave da cuf da jotapimenta
nas minas da panasqueira
nas fábricas de sines
e outras ladeiras outras noites
alongando-se
caminho longe gente gentio
de feições temperadas
e olhar impenitente
caminho longe gente gentil
de gestos brancos fraternos
de corpos calorosos generosos
de palavras fartas férteis do santo e senha
de vozes nuas cifradas cicatrizadas
na subtil experimentação
na sacrificial provação
da pátria solene solidária

Ai noites de Assomada
das mantenhas alastrando-se
chorosas sobre as nádegas do mar
e as lentas vagarosas nuvens

Ai noites de Assomada
das canções clamando
pelas novas e bem-aventuranças

das mãos laboriosas madrugadoras
benzendo as escolas as pontes as auto-estradas
os prédios os estádios recém-inaugurados

das mãos escuras atarefadas
removendo incansáveis
os entulhos o lixo a raiva
o sono o choro das crianças

dos passos sonâmbulos
dos abraços ternos
dos dédalos da saudade
e da música plangendo

pelos becos hostis
pelas vielas pelas ruelas
pelas ruas problemáticas
saturadas de rostos estranhos

pelas tabernas vociferantes
da rua do poço dos negros
dos poiais são bento

pelas almas redivivas
nos jardins da praça estrela
na praça camões no canecão
na lontra no coquenote
na casa de cabo verde
e em outras discotecas
e em outros espaços nocturnos
e outras associações recreativas

pelas ancas alvas escusas
das prostitutas do cais de sodré
e da avenida almirante reis

pelas vivências ressuscitadas
em lugares esconsos cordiais
fraternos na contabilidade emocional
da cachupa e da aguardente

Ai noites da Assomada
das preces em entre-picos
dos prantos em fundura
desenterrando a saudade
definitiva e grave
dos que se foram para nunca mais
dos que nunca mais regressarão


(excertos refundidos do livro-poema Assomada Nocturna
(poema de Nzé di Sant’ y Águ) e do poema inédito
Assomada Nocturna Revisitada, recentemente concluído).

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