terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Praça da Sé

Espelho
Emanoel Araújo



Camaleoa

Com a crise internacional, libertamo-nos do pensamento único neoliberal que se impôs desde a queda do Muro de Berlim. No inevitável mundo novo, que se crê sem a especulação capitalista, a blindagem dolaresca e a economia hipotecária, mercê de uma ética cifronista, as coisas tendem a ser menos injustas e menos desiguais. Naturalmente que não somos utópicos, nem ingénuos. As previsões continuam sombrias para os “deserdados da Terra” e a globalização tende a globalitária na sua estrutura sistémica. Mas haverá sim uma metamorfose, à maneira de luz ao fundo do túnel, de um camaleónico incremento contra a desumanização, esse pendurar a economia do Planeta pelos fios de Wall Street e de falácias afins. Com o socorro do dinheiro público, creio ter chegado o momento de novos padrões para a convivência, a produção e o consumo. Vejo o Brasil e repenso, à luz das sociabilidades necessárias, que nada estará perdido!

Liberdade

Passados vinte e tal anos, eis que regresso a São Paulo, cidade com C grande, em toda a dimensão urbanística, e cosmopolitismo que chega mesmo a doer. O bairro da Liberdade já não é tão japonês como outrora e reparo que os antigos restaurantes já deram lugar a novos empreendimentos. Esta é uma cidade “camaleoa”, como lhe chamou a poeta Maria Helena Sato, cabo-verdiana a reinar no principado das letras paulistanas. Mas a Praça da Sé, declive que vai ao topo génese paulista, memorialista e quase patronímica, do Padre Anchieta, permanece intacta. O silêncio altivo da Sé Catedral, onde percorro a verdade de não saber me ajoelhar, nem benzer. Certos momentos para mim são de alguma religiosidade, mas de nenhuma religião. É falar com Deus (ou com os deuses), sem intermediação dos seus templos. É dispensar a burocracia da fé, administrativismo que não acrescenta sol às minhas angústias. O bairro da Liberdade tão impregnado da minha existência…

O que quer e o que pode esta língua

A conferência da linguista Dulce Almada Duarte introduzira a tónica desviante: o crioulo foi criado pelos cabo-verdianos no século XVI. Ao criar uma língua, esboça-se claramente um processo histórico que recria a Nação Cabo-verdiana. A Nacionalidade, por conseguinte, não nasce nos tardios anos 30 do século XX, com os Claridosos, mas muito antes e em tempos ainda escravocratas. Algo me lembraria do golpe ideológico dado no Simpósio do 50º da Revista Claridade, no Mindelo, em que, doravante, de ideário cultural e estético, Claridade passara a ser uma ideologia. Tendo caído por terra a tese da Unidade Guiné - Cabo Verde, em 1980, o Poder, que ostracizara os Claridosos nos primeiros anos da Independência, repescava ora os seus valores e as suas figuras como novos ícones da Nação e os projectava para o centro do discurso político dominante. Na plateia, fingia-se como se finge agora que nada foi posto em causa e teatralizam-se, como outrora, palmas e mais palmas. Rio-me dos sumptuosos pavões e indago a mim próprio sobre como fazer, o que fazer e porque fazer. Ficar em silêncio elegante e cúmplice das circunstâncias e das onjunturas alheias à minha vontade? Vamos, com sentido de causa e sem medo das consequências, procurar as malhas da Nação…

Museu Afro Brasil

O que mais me encantou em São Paulo foi o Museu Afro Brasil, complexo cultural formatado e "animado" para dar visibilidade ao enorme contributo dos negros na afirmação (identitária e civilizacional) do Brasil, país onde ainda flui um racismo subtil e manhoso. Transcendendo o (pré) conceito da Casa Grande e da Senzala, algo só sublimável com o "empowerment" dos africanos e da vasta Diáspora Negra, o Museu Afro Brasil é, acima de tudo, um espelho em poliedro para que todo o ser humano se reconheça e se projecte como activo da História Universal. O curador e artista plástico, Emanoel Araújo – autêntico "filho de Ogum" – afirma que o Museu "pretende celebrar o que ainda não foi possível celebrar: a inclusão da nossa desconhecida gente". Nossa? Pois, nossa, companheiros.

Haicai nocturno

Maria Helena Sato, que me foi grata revelação, escreveu este poema, intitulado “Praça da Sé”:

Paisagem nocturna.
Os gatos são todos pardos,
Os caminhos, tortos.

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