quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O sonho de King: Free at last



“Change has come to America”
Baraka Obama





Mote


Quem não se lembra daquela negra (Rosa Parks, se estivermos lembrados) que se recusou a levantar do assento no autocarro para dar lugar a um branco? Deep South, nos anos sessenta do século passado! Que corajosa, para não dizer temerária, essa grande mulher! Atrever-se a mexer com os alicerces da segregação racial nos Estados Unidos era quase uma condenação à morte. Martin Luther King Jr sonhou em ver “os filhos de antigos escravos e os filhos de antigos senhores de escravos sentados juntos à mesa da fraternidade” e foi assassinado. Malcolm X, por expressar o direito dos negros à “revolta activa” também foi assassinado. Muita água rolou sob essa ponte. Hoje, a América provou ser uma Grande Democracia. Em primeiro lugar, a América ganha o seu primeiro presidente negro, concretizando assim o sonho de Martin Luther King Jr. e da geração dos direitos civis. Por isso, o simbolismo da vitória de Baraka Obama é maior, muito maior, do que a sua própria realidade. Só por isso, Obama representa "uma revolução mental enorme". Depois, a América passa a ser não o império dos capitalistas e dos especuladores, mas sim como o empório de oportunidades para todos. E, finalmente, aguarda-se uma viragem política e geoestratégica de grandes proporções, a nível mundial.

1.


Os Estados Unidos da América são uma Grande Democracia. Em primeiro lugar, o primeiro estado republicano dos tempos modernos, erigido com a independência, onde ficou instituído a separação dos poderes – os Government Branches – em Executivo (encabeçado pelo Presidente, conferindo o sistema político como Presidencialista), o Legislativo (diferenciado entre o Senado, representando o engajamento dos Estados ao Federalismo, e o Congresso, representando a vontade constitucional dos cidadãos, dos Commons) e o Judicial (enformado no topo pela Suprema Corte). Este sistema, desenhado por Thomas Jefferson e sancionado, primeiro pelos Founding Fathers e depois pelos cidadãos corporiza a constitucionalidade americana, cujo texto confere poderes sagrados à vontade do Povo. Aliás, o texto constitucional americano tem uma virtude de ter como matriz “We the People”: Nós, o Povo.


2.


Outro aspecto importante, é o liberalismo económico e a consagração do direito à propriedade, bem como o direito individual, que confere aos EUA o estatuto de país geneticamente capitalista. Aliás, a revolução americana, contrariamente à francesa e à russa, foi o triunfo da burguesia. A classe média e comercial, frustrada nas suas expectativas em relações aos ingleses, demanda e conquista a sua autodeterminação e a sua soberania. Tocqueville, que estudou bem a revolução americana, repara que não é uma revolução dos desesperados, mas daqueles que querem mais esperanças para um modelo de vida de sucesso e de bem-estar. Defina-se o bem-estar, a acumulação e a ascensão como o ideário, o sonho americano, que Max Weber, mais à frente, vem analisar como o corolário da Ética Protestante, baseada no trabalho, na acumulação e no estoicismo da produção.


3.


Aspecto não menos importante é que a América surge no começo do século XX, como uma das 5 potências económicas. Acontece-lhe a primeira crise financeira em 1929. A Grande Depressão. O intervencionismo do Estado não só salva a Bolsa de Nova Iorque do crash, como transforma-a em maior bolsa do Mundo. A economia americana, com salários baixos, devido à mão-de-obra imigrante e negra, e à bolsa revitalizada, torna-se pujante. Com o fim da 2ª Guerra Mundial, a América é a grande credora da Europa e do Japão – o Plano Marshall – que a permite gerir os juros e consolidar o seu poderio geoestratégico junto a esses países, tornando-se (ao invés da Inglaterra e Alemanha) na maior economia do Planeta. Igualmente, intacta do impacto da Guerra, a América lidera o confronto ideológico entre o capitalismo e o comunismo, assumindo a Guerra Fria que, aparentemente ganha com a Queda do Muro de Berlim e com a instauração do ideal neoliberal, baseado no capitalismo financeiro (bolsista, bancário e monetário), pós industrial, a nível planetário. Alguém chamou isso, devido ao impacto global dessa nova economia, de Globalização.


4.


Politicamente, a América é um sistema multipartidário. Há partidos (vários) da direita à esquerda, bem como organizações independentes e assumidamente radicais. Mas de há muito, se calhar desde os primórdios, que se conformou a prática da bipolaridade: Republicanos (os conservadores, os da direita e os do centro-diretita) e Democratas (os progressistas, os da esquerda e os do centro-esquerda). Esse campo que permite a bipolaridade se chama “Mainstrean” ou seja o principal fio condutor do sistema, onde há grandes consensos já institucionalizados sobre os fundamentais da política (inclusive a externa), da economia e da constitucionalidade. No “Mainstrean” da Política é que tem gerado a dinâmica da alternância governativa, tanto no Executivo, como no Legislativo (nas duas câmaras) e no Judicial. Os partidos ou grupos políticos fora do “Mainstrean” têm uma expressão mais cívica, cidadã e social do que propriamente governativa, considerando haver na sociedade americana a tradição da acção cívica alavancadora de petições, impugnações, referenda e re-calls (anulações e repetições eleitorais), previstas na legislação americana. Em verdade, apesar da força real dos dois grandes partidos, o enformar das vontades políticas decorre da vontade arregimentada da cidadania. Aliás, a América corrigiu a ideia-quadro, herdade da visão grega da democracia, de um regime da maioria para um regime da cidadania, num quadro legal e institucional bem definido, onde imperam os direitos. Vejamos o caso do processo histórico dos afro-americanos na América que, nos anos 60, assumiram os Direitos Civis (num afrontamento dramático) e, mais tarde, conquistaram plenos direitos políticos.


5.


No âmbito do “Mainstrean”, as eleições presidenciais e outras, à excepção das locais, onde os independentes e grupos de cidadãos têm tido notável protagonismo, a alternância afirma-se entre Republicanos e Democratas. O ciclo político das presidenciais têm sido de dois mandatos, salvo raras excepções, marcadas pela crise, escândalo e/ou impugnação. Há um padrão, baseado numa prática costumeira, de 10 anos de Republicanos e de 10 anos de Democratas, igualmente salvo raras excepções. O ciclo e o contra-ciclo políticos iniciam e findam, na lógica costumeira do “Mainstream, respectivamente entre republicanos e Democratas. Assim, depois dos 10 anos da Administração Clinton/Democrata, sucedeu-lhe os 10 anos da Administração Bush/Republicano. O Democrata Al Gore/Vice-Presidente de Clinton, apesar de comandar as sondagens e a quantidade dos votos expressos directos, não conseguiu suplantar a lógica do contra-ciclo, bem enraizada nos delegados que iriam convencionar a escolha do novo Presidente (Bush, no caso), já que quem elege, em última instância, o Presidente é um Colégio Eleitoral, expressando a vontade colhida da cidadania. Por conseguinte, a entrada de Bush na Casa Branca marcou, não apenas o regresso dos Republicanos, mas de um segmento mais conservador com ideias mais arreigadas sobre as principais agendas públicas no momento: a geopolítica em relação ao petróleo, o terrorismo, a droga, os direitos humanos, o Iraque, o Afeganistão, a NATO, a Rússia, a China e a Europa. A Administração Bush ficou marcada pelo recuo de alguns direitos sociais, gastos militares, 11 de Setembro, a invasão do Iraque e o intervencionismo no Afeganistão e nos Balcãs. A classe média americana, a grande força cidadã dos EUA, começa a perder o seu poder de compra, afoga-se na dívida (sobretudo dos investimentos imobiliários e da ruptura dos cartões de crédito) e ressente, pela primeira vez em muito tempo, a subida dos combustíveis. Gera-se o descontentamento devido à guerra, a inflação e a má administração da coisa pública.


6.


O contra-ciclo político era favorável aos Democratas. Em tese, era a vez dos Democratas. Os Republicanos, numa missão difícil, apresentam-se os seus candidatos às primárias. Ganhara o menos parecido com George W. Bush, aliás aquele que o desafiara nas antigas primárias e dele fizera duras críticas – John McCain. Os Democratas apresentaram, não só a proposta de alternância, mas, pela primeira vez, a ideia da alternativa no quadro do “Mainstrean”. Vão às primárias com uma mulher – Hillary Clinton – e um mestiço – Baraka Obama (filho de um queniano e de uma americana branca). As primárias americanas denotaram a necessidade não só da alternância, mas dessa alternativa, tanto que preferiram aquele menos próximo aos anteriores poderes: o Senador de Illinois, Baraka Obama. Cedo, tanto na mobilização dos cidadãos e dos delegados, como na recolha de fundos para financiar a campanha, Obama mostrou-se mais dinâmico e mais adaptado à vontade dos cidadãos na reinvenção do “Mainstrean”. Escolhido oficialmente pelos democratas, o afrontamento passou a ser entre John McCain e Baraka Obama. Tanto as sondagens, como os debates, bem como ainda as angariações de fundos, denotam a clara vantagem de Baraka Obama que, não só acentua a ideia do contra-ciclo, como aproveita, com forte capacidade de liderança, o cansaço dos americanos em relação da guerra em duas grandes frentes e a crise financeira que vem minguando o seu poder de compra. A crise é tão acentuada que McCain não conseguiu se descolar completamente da imagem de Bush (com baixíssimo índice de popularidade) e das opções desastrosas dos Republicanos.


7.


Entretanto, estas eleições que culminaram a 4 de Novembro exigem uma análise complexa, multipolar e cruzada. Uma análise crítica de poliedro, onde vários factores interagiram para além da crise económico-financeira e a insatisfação da classe média, que, além de ser força económica real nos EUA, determinam a vontade do Colégio Eleitoral Americano. McCain era um herói da Guerra do Vietname (outro grande desastre e trauma americano) e tem uma trajectória moral impoluta. Mas a escolha de Palim à tabela de Vice não foi bem aceite e tomada como uma adição de soma zero. A Governadora do Alaska é mais conservadora que o Presidente Bush e obrigou a opinião pública a “colar de novo” McCain aos “falcões conservadores”. Isso pode ser um factor evasivo para o Candidato Republicano, para não dizer agravante e penalizante. Quanto a Obama a sua condição de mestiço (negro, para muitos) é um pau de dois gumes: de um lado, lhe garantia voto étnico, mas por outro lado poderia polarizar o debate na cor e na raça. A realidade mostra que apenas 12% dos americanos são negros, 15% são hispânicos, 8% são asiáticos e a grande maioria é branca. O desafio de Obama era ser o mais inclusivo e transversal possível, mostrando-se como candidato da alternância com alternativa para toda a classe média americana, sem deixar o apelo aos menos favorecidos da sociedade (onde estão muitos negros, hispânicos, asiáticos e outros. Em verdade, Obama tinha de se apropriar cada vez mais a matriz da constitucionalidade americana, baseada não em regime de pura maioria, mas na essência da cidadania plena para os americanos.


8.


Regozijamo-nos com a vitória de Baraka Obama. A América, em crise, precisa mudar de paradigma para buscar soluções à crise. Não são os 700 bilhões de dólares injectados pela Administração Bush, periclitantemente aprovados pelo Congresso, a panaceia da crise que é profunda. A América precisa de um novo lidar, que para além de ser jovem e “diferente”, aborde questões globais da crise, em termos financeiros, económicos, ambientais, energéticos, sociais, morais e éticos. O Estado passa a ser interventor na economia e nas finanças, e isso não será tarefa dos Republicanos e dos neoliberais fundamentalistas. A América deve repartir a liderança mundial com a Europa e a China… e nos parece que Baraka Obama está preparado para o “Job”. Vem aí o Brasil, a Índia e a Rússia, só Obama está pronto, sem os estigmas imperiais, para lidar com os novos fenómenos económicos e as suas demandas políticas no cômputo das Nações. Naturalmente, que o Sistema Americano (económico, financeiro, industrial, tecnológico e militar, bem como o geoestratégico) imporá limites a Obama. Ele não será o Presidente das nossas vontades e ansiedades, mas acima de tudo um Presidente americano, ciente dos interesses dos EUA em continuar na liderança mundial.


9.


Acreditamos também que será um Presidente generoso para com a África. A América continuará a ser apoiante do NEPAD e de incrementar os fundos do Milénio. As áreas de interesse – Egipto, Nigéria e África Austral – serão alargadas, demandando um esforço dos novos países para uma focalização na África Ocidental. O mercado da CEDEAO, o petróleo off-shore da Mauritânia e a posição geoestratégica de Cabo Verde (luta contra o terrorismo, a droga e tráfico humano, bem como o posto económico avançado do Atlântico, como já o é a China, e a Parceria Especial com a Europa) podem ser factores atractivos para uma Administração Americana liderada por Baraka Obama. Outro aspecto de domínio bilateral é o incremento da Cooperação Internacional, baseado no reforço do MCA, do AGOA e da cooperação militar. Igualmente, no quadro da Candidatura da Cidade Velha a Património Mundial da UNESCO e da subsequente inserção na Rota dos Escravos, reconectar com os EUA para a afirmação de novos e criativos investimentos no quadro do Turismo e dos Direitos Humanos.


10.


Finalmente, importa analisar as eleições americanas, não apenas como a rotina democrática dos EUA, mas um fenómeno de dimensão global e planetário. Com Obama na Presidência, haverá subida nas principais praças financeiras do mundo: de Nova Iorque a Hong Kong, passando por Londres, Frankfurt e Singapura; de Helsínquia a Joanesburgo, passando por Lisboa, Roma e São Paulo. Inclusivamente, as Nações Unidas, o Médio Oriente, o Darfur, a Geórgia, o Irão, a Venezuela, a Coreia do Norte e Cuba conhecerão novos cenários, quem sabe com novas oportunidades de (re) negociação. O grande dilema, e a isso temos de ficar cientes e conscientes, é se no cair dos novos muros, irão beneficiar as agendas do desenvolvimento, do comércio mais justo, dos pequenos estados insulares, das mudanças climáticas e da Paz como o Grande Activo para a Humanidade. Por tudo isso, as eleições americanas são importantes para o mundo e têm a ver directamente connosco.


Remake


Free at last. Estas eleições mudaram, por isso, a face da América e do Mundo. Passou a haver o antes e o depois de Baraka Obama. Quem não se lembra de Rosa Parks? Yes, We the People…we can.


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