quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Cidade VI


a arménio vieira, jorge carlos fonseca e osvaldo azevedo,
observadores, amantes e críticos da cidade




Nós temos uma cidade.
A nossa cidade nem sequer chega a ser nojenta.
A nossa cidade está de nojo.
A nossa cidade está de nojo pelos sobreviventes da cidade.

Estes deambulam circunspectos pelas ruelas de ponta-belém e pelo que sobreviveu das ruas de
madragoa, de sá da bandeira, de andrade corvo, de serpa pinto, da república, de cândido dos
reis, da horta, da moradia, oh!, pelas antigas ruas cinicamente sorrindo transfiguradas e ainda
aturdidas sob as vestes e os nomes heróicos das placas toponímicas recém-colocadas.
Prosseguem pela pracinha do liceu, descansam por momentos aprazíveis nos bancos dos jardins
floridos.
Postam-se depois nos muros avarandados da cidade e lançam olhares tristes sobre a imensidão
dos subúrbios. Planam o olhar pelos vultos de ponta-de-água, da achada eugénio lima, da achada
grande, do paiol, da fazenda, de lém-cachorro, do castelão, da vila nova, da achadinha, de
pensamento, de safende e de outros bairros postados contra a imponência longínqua das
montanhas do interior da ilha e o vulto translúcido e majestoso do pico de antónio.
Desistem de imaginar o burburinho que irá por achada de santo antónio, tira-chapéu
(ou frouxa-chapéu, para os mais renitentes) e outros subúrbios das proximidades do mar,
agora envaidecidos pela presença próxima da antiga placidez das moscas e das alimárias
e das hortas miraculadas do palmarejo, de símbolos do poder como o palácio da assembleia
nacional popular, as embaixadas da união soviética, da china e de portugal, de vivendas e
residências de ministros, juízes, directores-gerais, inspectores das finanças, auditores das
alfândegas e outros altos funcionários do estado.
Dir-se-ia, pensam de si para si e nos subúrbios que se estendem defronte dos seus olhos
indignados, um extenso mercado de candongueiros um roque santeiro luandense ou um
imenso acampamento de exércitos hititas prestes a invadir mênfis Tebas e outras cidades
egípcias e a destruir a grandeza das suas pedras seculares e a magnificência das suas memórias.
Atravessam a rua do hospital. Alguns dos sobreviventes da cidade encarceram-se no pavilhão
dos alienados, dementes e possessos da quinta enfermaria do hospital central “agostinho neto”
para sessões de consulta psiquiátrica e de meditação sobre o tempo e a cidade ou, melhor, sobre
os tempos da cidade.
Conspícuos, os habitantes da cidade apresentam condolências ao quase-cadáver sorridente da
cidade. As melhores condolências, asseguram, são as que se apresentam aos sobreviventes, as
únicas vítimas de algum mérito e merecedoras de autêntica pena, escárnio que baste e muita
condescendência. Afinal, verdadeiros mortos-vivos, são eles irrefutável memória e assídua
presença das ruínas do futuro!
Ah! os sobreviventes da cidade!
Nem sequer acreditam na ressurreição do seu lugar de natalidade.
Espavoridos e insólitos, sentados na plácida e obesa comodidade das tocatinas e das conversas de
fim de tarde nos bancos da praça grande, observam o crescer dos prédios, a abertura de novas
avenidas e de novos arruamentos, a alegre devoração e as doces guerras dos festivais de música,
a consonântica (mas, admitem, melodiosa) desfaçatez de alguns dos recém-chegados …
Com um certo temor e muito a contra-gosto digerem o impúdico abraço entre o plateau e os
subúrbios. Por isso, declinam os convites para as inaugurações de empreendimentos turísticos e
de modernas vias rápidas que, cogitam, pretendem unificar as achadas, achadinhas, várzeas,
colinas, encostas e ribanceiras numa, profetizam sarcásticos, cidade-menina do atlântico.
Meditativos, os sobreviventes da cidade revisitam os lugares da infância e, pressurosos,
lamentam o entranhado lixo da cidade, a proliferação do comércio ambulante e das quotidianas
feiras de bugigangas, a ruína de lojas tradicionais emblemáticas (como a casa serbam, a loja
herculano, a casa feba, as galerias), a caótica degradação dos bairros, o terramoto da miséria e do
êxodo rural, a invasão dos bárbaros que, dizem, são os sampadjudos das as-ilhas, os badios de
fora (das aldeias, dos cutelos e das vilas do interior da ilha), os cooperantes de carteiras recheadas
e olhos claros omniscientes, os mandjacos (negros, animistas e muçulmanos) da costa de áfrica,
os comerciantes chineses que escudados na monumentalidade chinesa do palácio da assembleia
nacional popular na achada de santo antónio e no baixo preço dos produtos importados da sua ásia
natal têm arruinado os comerciantes locais, não se coibindo sequer de se juntar aos indígenas das
ilhas e instar os mandjacos a irem para a sua terra…
Enfim e para culminar, a plena dakarização das ruas, das mentalidades, da cidade...
Em conversas segredadas asseveram que enquanto uns invadem os leitos das ribeiras e as encostas
e constroem bairros de barracas, outros ocupam a beira-mar e refastelam-se nas vivendas e outros
rostos recentes e antiquíssimos da capitalidade, remetendo os sobreviventes da cidade para a
insignificância e a amnésia, para a irrelevância de moradores antigos e primeiros da cidade-
capital, urbe cantada e vilipendiada como rochosa transfiguração da velha e antiga metáfora de
cidade santa, urbe reiterada e secularmente mal-amada por alguns forasteiros que nela e noutras
reinam e todavia reivindicam.…
Sentados no cruzeiro, os sobreviventes da cidade observam o mar e a sua possível transfiguração
em trilho para o além, em viagem ou suicídio desde que seja uma forma definitiva de fuga ao
corpo putrefacto da cidade.
Cidade despojada da praia negra e dos seus coqueiros e pic-nics, substituídos pelos dejectos da
fábrica de cervejas e pelo cheiro nauseabundo dos tanques onde vão sendo experimentadas novas
formas de energia renovável sem qualquer utilidade prática.
Cidade despojada da memória do verde, dos pássaros cinzentos e do canto do bico de lacre no
taiti e nas antigas florestas circundantes do bairro craveiro lopes e da fazenda, para sempre
extintas.
Sentados no cruzeiro, sob os auspícios e a ferrugem dos canhões antiquíssimos, os sobreviventes
da cidade são tomados de um imperecível desejo de evasão da cidade carregada de vento, pó, ruas
esburacadas e de insolentes animais, racionais e irracionais, domésticos e exóticos.
Sentados no cruzeiro os sobreviventes da cidade cogitam utópicos e visionários e ante os seus
olhos formam-se as imagens de uma longa avenida marginal estendendo-se, asfaltada e
movimentada, da gamboa, passando pelo porto, até à praia da mulher branca, com as devidas
e modernas bifurcações para um mais moderno aeroporto internacional e os remodelados bairros
de lém-ferreira, ponta-de-água e achada-grande-trás…
Pesarosos, os sobreviventes da cidade debruçam-se sobre as trucidadas flores da praça grande,
das pracinhas da escola grande e do liceu adriano moreira (os sobreviventes da cidade recusam-se
a pronunciar o novo nome, domingos ramos, comparsa semi-analfabeto de, imagine-se, outros
terroristas, ou de modo mais eufemístico, combatentes do mato, em boa hora neutralizados, como
amílcar cabral, josina machel, eduardo mondlane, chico té, che guevara, justino lopes, jaime mota,
ludgero lima e o ainda mais execrável kwame nkrumah) …
Crispados, os sobreviventes da cidade cogitam sobre a futura reposição da verdade dos lugares e
dos seus nobres e pátrios nomes, como craveiro lopes, alexandre albuquerque, andrade corvo,
serpa pinto, sem esquecer os heróis de mucaba…
Os sobreviventes da cidade rezam sobre as ruínas da cadeia civil e dos sobrados coloniais
amarelecidos pelo tempo e pela decrepitude, os quintais de algumas casas térreas de persianas
verdes, janelas envidraçadas e soalheiras meias-portas e outras casas típicas do planalto da cidade
da praia, urbe outrora chamada de santa maria da esperança e da vitória.
Os sobreviventes da cidade indignam-se com a transfiguração do planalto (recapitulam: capital
de facto das ilhas de caboverde desde o abandono da cidade velha em 1776 e capital oficial da
província ultramarina desde 29 de Abril de 1858) em reles e francófono plateau de uma
cinematografia na qual a cidade se transmutou em mero figurante numa vilã miríade de subúrbios.
Os sobreviventes da cidade continuam deambulando pelas ruelas e constatam com alívio, orgulho
e alguma vaidade que os moradores das casas mais modestas dos quarteirões mais pobres do
planalto-capital recusam terminantemente a deportação para o longínquo bairro da terra-branca
(branca de novos ricos indígenas e de cabelos loiros cooperantes, dizem sarcásticos) ou para
qualquer achada, achadinha ou ribeira, todas flageladas pelo cinzento, pelo abandono, pelo caos,
pelo despojamento de urbanidade, por todo tipo de carências, pela ausência de qualquer memória
urbanística e, sobretudo, pela irremissível circunstância de serem baxu-praia, abaixo da praia,
sub-praia…
Os sobreviventes periféricos e suburbanos da cidade preferem ser despejados. O cubículo ou a
casa térrea de dois ou três quartos e muita promiscuidade não se salva, mas ao menos salva-se a
honra. Ocupa-se a praça e abre-se escritório de conversador na esplanada central da cidade, no
restaurante avis ou no café cachito ou abanca-se como engraxador de sapatos na praça alexandre
albuquerque (arremetem os auscultadores da cidade: mas a polícia nega-se a fazer reluzir as
botas na praça “12 de Setembro”. Quando for o caso não há-de a polícia precisar de botas
reluzentes. Abaixo o boato e a paranóia!)

Os habitantes da cidade estão de nojo. Pelos sobreviventes da cidade ou por si próprios.
Milhafres e vampiros debicando o cadáver da cidade.
Persistentemente. Diligentemente.

Os habitantes da cidade estão de luto. Pela cidade e por si próprios.
Cadáveres futuros sobre o corpo arruinado da cidade.
Irremediavelmente.

Dizia eu, nós temos uma cidade.
A nossa cidade e os seus habitantes nem sequer chegam a ser nojentos.
A nossa cidade e os seus habitantes estão aparentemente de nojo.
Pela cidade e pelos sobreviventes da cidade.
Magnanimamente.

Lisboa, 2003/Julho de 2008
(versão refundida do poema homónimo constante do livro Á Sombra do Sol, volume II, Praia, 1990)

José Luís Hopffer Almada

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