terça-feira, 16 de maio de 2006

Boat people e o copo meio cheio ou meio vazio




0.
A crónica desta semana não será sobre o 19 de Maio, como havíamos prometido a um velho amigo que também comunga um desmedido amor pela cidade da Praia. Desmedido e incondicional, nas antípodas daqueles que a desamam e projectam nela frustrações cabeludas e agouros também peludos. A crónica desta feita incide sobre os ‘boat people” e o sistemático tráfico de seres humanos que cruza os nossos mares e, por vezes, ronda as nossas costas.

1.
Para contextualizar melhor os leitores, deitamos mão à premissa das Nações Unidas que consideram o tráfico de seres humanos como um dos grandes crimes contra a humanidade, ilícito que ombreia com o tráfico de armas e o tráfico de drogas. Em relação a isso, não se pode excluir que estes os três hediondos “movimentos” não estejam a utilizar, com mais frequência do que pensamos, as águas de Cabo Verde.

De vez em quando, um navio é interceptado, prova que as nossas autoridades, apesar da escassez de meios e recursos, estão empenhados na luta contra tais ilícitos transnacionais. A meio do caminho das rotas atlânticas, Cabo Verde também é geoestratégico para os grandes tráficos. Ultimamente, o tráfico de seres humanos nos parece mais incidental pelas nossas águas. Será que estamos preparados para lidar com isso?

Líamos, há dias, e ficámos caídos de mágoa, sobre um barco à deriva com onze cadáveres a bordo. Nas águas de Cabo Verde. O barco terá sido descoberto a boiar no oceano por um pesqueiro. As autoridades foram notificadas e, dois dias depois (fazer o quê) a guarda-costeira vai tentar interceptar o barco, entretanto já desaparecido. O facto, noticiado marginalmente pela Comunicação Social, não moveu tanto a opinião pública cabo-verdiana. Entretanto, a situação era diabólica. Mais do que greves em fome, pelo menos. Era uma cena dantesca que transcende a soberania, a fronteira e o Estado. Tem a ver com os seres humanos. Com os Direitos Humanos. Com a Humanidade…

2.
Cabo Verde teve outrora a tristíssima glória de ser o grande entreposto dos escravos no Atlântico Médio. A Europa mercantilista se fez graças ao tráfico humano. A grande riqueza do Ocidente tem fundamentos sangrentos. E Cabo Verde, mercê da sua posição geoestratégica, foi uma base avançada e crucial para a transposição dos seres humanos, em mão-de-obra forçada. A cena repete-se. Infelizmente… Os seres humanos transportados nas balsas e botes não passam de vítimas e de desesperados à procura de alimento para os seus filhos. Não passam de escravos modernos, em condições piores e mais vergonhosas do que a dos escravos antigos.

Desde a abolição da escravatura, o tráfico e o comércio internacional de seres humanos voltou-se para fins de exploração e prostituição. Sabe-se também de outras actividades lucrativas, como a mutilação de crianças para sua utilização como mendigos, ou a extirpação de seus órgãos para bancos de transplante clínico. Este comércio tem um padrão visível: os escravos são provenientes de regiões pobres e levados para as regiões ricas.

Quanto não morrem, como outrora, na travessia. Os corpos mumificados à deriva no Atlântico, ei-los. Gente morta pela fome e sede, na desesperada tentativa de um norte qualquer. Estes seres humanos não saem para o largo oceano por razões prazeirosas, mas por razões de sobrevivência. Se permanecem, morrem à fome, doença ou guerra. A saída é inexorável e implacável. Com as suas consequências…

Naturalmente que entendemos as razoes do Estado e o estado da Razão. Apoiamos a posição de mão dura para com o tráfico dos seres humanos. Mas o combate ao tráfico tem a ver com a destruição implacável dos traficantes e suas conexões, e não com a falta de solidariedade humana com as vítimas. A abordagem de Cabo Verde tem de ser cuidadosa, delicada e humana.

3.
De repente, há gente que olha a segurança colectiva do Estado e da sociedade como Sancho Pança via os moínhos. Apenas pela sua externalidade. Pelos seus significantes. E esse olhar pode ser perigoso e irresponsável, pois não exige uma análise de conjuntura e muito menos de profundidade. Qual o papel de Cabo Verde em face do surto dos “boat people”? Qual a melhor abordagem em face de um problema que ora nos ultrapassa e nos interpela de molde recorrente?

A geopolítica não exige de nós um olhar apenas Atlântico, mas aquele interatlântico e quiçá mesmo transaltlântico. Mas a existência nos obriga a um olhar humano e humanista. Contra a hedionda escravatura moderna. E quem está na linha média, charneira e divisória, de muitos universos (geoestratégicos, económicos, outros), no Atlântico Médio diríamos, terá de reformular o seu olhar no que toca ao papel a desempenhar. A vulnerabilidade dos pequenos estados insulares também reside em ficarem a meio dos tráficos (armas, drogas, minérios, seres humanos). E essa vulnerabilidade pode ser pensada, isto é estrategizada. Em prol dos nossos interesses e princípios. A conceptualização dependerá da lógica de mirar: ou o copo meio cheio ou o copo meio vazio…

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