quinta-feira, 10 de fevereiro de 2005

O Transitário

por Filinto Elísio




O Transitário



Há uma linha divisória que transparece e Freud há de explicar o nascimento de uma nova geração. Não uma geração no sentido clássico do termo, mas algo transitário a uma atitude cultural que, 30 anos sobre a Independência Nacional, quer um reordenamento. Mário Lúcio disse-o abertamente numa entrevista. Reafirmou-o na Carta de Salvador que ele redigiu, a pedido de Gilberto Gil e a consenso dos delegados culturais da CPLP. O melhor tributo a um Cabo Verde deveras independente, democrático e em desenvolvimento, seria um marcante manifesto que assumisse a política como um objecto compósito e lábil, não se reduzindo a um conjunto de medidas públicas, nem a um mero reordenamento republicano das actividades culturais. Precisamos de um amplo movimento cultural, uma movida centrada na sociedade civil que produza cultura como a radicalização da cidadania. A cultura pode ser agente da prosperidade, da coexistência e do desenvolvimento deste país. Para isso, é urgente redefinir o papel do poder público na vida cultural. A Kultura. Não apenas o local e nacional, mas universal e global. Chegou a hora de universalizar o batuque, o grogue de Santo Antão e os sobrados de São Filipe. Mas também de trazer para o palco das ilhas a excelência da cultura universal. Eis a próxima fronteira. Urge tal antropofagia…



Ricardo…de Deus



Na sexta-feira passada, à noite, tive a grata oportunidade de assistir a um excelente recital de piano do músico brasileiro Ricardo de Deus, no Pátio do Palácio da Cultura Ildo Lobo. Um repertório de bom gosto, passeando da bossa-nova para o jazz, sem esquecer a música cabo-verdiana à qual o pianista parece ter aderido. Momentos altos, como aquele de «Leãozinho», de Caetano Veloso, recriado ao estilo jazzy. Momentos da jamm session, em que participaram dois exímios executantes, o Raul e o Kizó, nomeadamente baterista e baixista da banda Arkorá. Aliás, segundo o Lantuna, Ricardo de Deus trocou o Brasil por Cabo Verde há seis anos. De 1999 a 2001, integrou do grupo Arkora, período durante o qual acompanhou, juntamente com o grupo, o malogrado artista Orlando Pantera. Mas, já que nada acontece por acaso e a boa música tem muito de árdua, vale dizer que Ricardo de Deus começou a estudar piano em 1991. É bacharel em música, pela Universidade Cruzeiro do Sul e ainda frequentou o Curso de Piano Erudito na Fundação das Artes de São Caetano do Sul e o Curso de Musicalização Infantil e Piano Popular, na Universidade Livre de Música Tom Jobim – São Paulo. Mais uma boa escolha da já obrigatória programação cultural desta cidade, com o carimbo do Ciber Bar Palácio/TERA.



Carnaval tá aí, vamos vadiar



Dizem os saudosistas que já tivemos nesta cidade Carnaval que valesse a pena. Outros tempos, bem distantes, pois, desde o antanho, nunca aqui presenciei Carnaval exuberante, digno deste retumbante nome. Das minhas lembranças, apenas o elogio ao feio, ao grotesco e ao indecoroso. Salvaria um ou outro baile que, a pretexto do Olha a cabeleira do vovô, se visionavam novas amizades. Nunca entrei amiúde nessa desfilaria, ficando-me até frouxo o traje dos corsários e rasca a casaca dos benquistos. O Rei Momo exigiria do devoto, além de boa lata, entoado ritmo e pernas de maratonista. Por isso, terça-feira de Carnaval, para mim, foi um dia irritante e atípico, com a chalaça de cantar sambas de quinta e o cortejo a merecer prémio de desolação. Talvez eu não esteja a ser politicamente correcto. Mea culpa. Os saudosistas não me levem a mal, nem queiram ser mais papistas do que o Papa. Mas estou a ser sincero, ultrajado de tanta falta de civismo num pequeno troço da Marginal. Urinar na via pública e estragar as plantas dos canteiros, deixemo-nos de demagogias, é sintoma de mau carácter e, enquanto o delicioso civismo não chega, para a santa democracia era baixar autoridade aos sacristas. Quem sabe, eu me tornei rabugento, lobo uivante ao luar esplêndido. Ontem à noite, o chá de tília já não me soube tão bem. Estava com um gosto de agro tóxico, mas não há de ser nada. Lembrei-me do Pranchinha que, ao levar à boca a pior aguardente, sussurrava Tende piedade de nós! Um cristão e peras, esse meu amigo! Cabe escrever, em abono da verdade, que o cronista também sofre agruras da solidão. Uma dor que dilacera como a brasa adormecida nas cinzas.



Haja Teatro sempre



De que teatro precisa Cabo Verde? Qual é a essência de um teatro nacional para a sociedade de hoje? Para já, são questões necessárias que não obrigam a respostas definitivas. Interessante, pela apresentação e subsequente debate, foi a palestra «O Teatro em Desenvolvimento», proferida por Francisco Fragoso, no Palácio da Cultura. O frisson criado revelou, uma vez mais, que os gostos são livres. E todos legítimos. Que a intolerância não atropele o diálogo. Se todos tivéssemos o mesmo gosto, que seria da cor amarela? E as opiniões, mais do que os gostos, são livres e necessárias. Ademais, não existe teatro em sentido absoluto, com normas permanentes e estáticas, mas vários teatros, muito diferentes, de diversas épocas e quanto mais remotos tanto menos operantes em épocas seguintes. Cada geração engendra a sua própria estética, colocando uma pedra no importante edifício a construir. Indo ao âmago da questão, a Associação Mindelact tem feito muito para a elevação das artes cénicas em Cabo Verde. Além de manter viva, e de boa saúde, um dos maiores festivais de teatro do continente africano, ela colocou o nosso país na rota mundial do teatro. Perante este ganho todo, há que fazer referência ao dramaturgo João Branco. A César o que é de César, pois. Quanto à capital, que já teve o seu momento áureo no zénite do Grupo Korda Kaoberdi, melhores dias hão de vir, pois o teatro é uma arte necessária e urgente. Fala-se, e ainda bem, do ressurgimento do Grupo Korda Kaoberdi. A par disso, precisamos descortinar algumas deficiências estruturais que vêm condicionando o evoluir, com o vigor esperado, o teatro na cidade da Praia. Tais condicionalismos, querem me parecer, são de uma política não muito coerente de facilitação, estreiteza da mentalidade empresarial, insuficiência de debates, projectos não elaborados, enfim, um pouco de tudo isso contribuindo para uma baixa intensidade de iniciativas teatrais.







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