sexta-feira, 25 de fevereiro de 2005

Blog Nota 3

Realismo interior

De repente, tive a necessidade existencial de incluir no livro “Das Frutas Serenadas”, um caderno sobre as pedras, assumindo um caminho contrário da ascese fenomenológica. De forma consciente, em vez de procurar partir das pedras até à esfera da metafísica, “viajo” do abstracto (emoções, lembranças, sensações, movimentos da consciência) para incarnar nas pedras, como um concentrado de objectos, “coisas” que acumulam espaço e peso na minha existência. O ideal seria chegar à poética “expressionista”, tirando a conotação histórica do termo, e revelar o tal realismo interior…

O sujeito-eu

Fazer poesia é conceder-me ao sujeito-eu, revelar-me ao mundo e para o mundo. Não falo aqui da salvação, essa coisa judaico-cristã da salvação… mas quando consigo um poema, experimento um prazer sensual, carnal, erótico: consegui chegar a uma êxtase em mim próprio e sou, ainda que por lapsos, feliz. Nada a ver com a ascese… Escrever é poder desnudar a coisa, tirar o véu, a roupa, o preconceito, o tabu, sorver a luz e a sombra das coisas. A essência das frutas, quando reveladas ou mesmo serenadas pelo desejo humano.

Além da gramática

Não sou um obcecado pela gramática, pela métrica que até muito tempo dourava os versos. Os versos de há muito que desceram do panthéon e caíram na sarjeta. Prefiro a sensualidade da língua: usar uma língua sem afectações ou citações, podendo até recriar termos que se adaptem à ambiência. A poesia fala do Ser, relacional consigo, com o Outro e com as coisas e, por isso, transcende os cânones. O canto é um limite inatingível porque subverte tudo, inclusive a própria estética. O processo criativo sugere a duplicidade e a ambiguidade sempre. A poesia, mesmo quando recupera emoções singelas, subverte o instituído. O quadro Mona Lisa de Gioconda, de Leonardo Da Vinci grita tanto quanto Guernica, de Pablo Picasso.

A bater desvairado

Regresso à Praia, com Mário Lúcio e Mano Preto, dois artistas que me acompanharam na montagem e no desempenho do espectáculo «Das Frutas Serenadas», apresentado, sábado passado, no pub do Mindel Hotel. Na ilha do Porto Grande, ficaram Tchalé Figueira e João Branco, ambos integrantes do projecto, com a promessa de se nos juntarem na capital para a reconstituição da peça, algures em Março. O avião da TACV fez uma aproximação apressada e o touch down foi de acordar tudo e todos. A noite está serena e meio fria neste meu regresso. E penso nas coisas passadas no Mindelo. Já está na hora de eu me despir, de libertar a sensualidade que guardava nesta minha mão…

Viés da pesada

Revejo mentalmente o espectáculo. A parte do altar profanado. O fogo ateado à fresta dos poemas. O sanatório de repente criado. A descontinuidade do recital. Ninguém a sair ileso. Abstenho-me cada vez mais das brigas por reconhecer minhas limitações. Estou perplexo: engavetou-se a sensualidade. O necessário debate cultural caiu em saco roto. Em prol das luzes, nada. Erigiram-se a maledicência e a ignorância para o centro do debate. Quanto pior, melhor. As aspirações foram redimensionadas para baixo. Quando podíamos expressar as grandes ambições em relação às possibilidades estéticas desta nossa geração.

O sujeito-outro

Toda a minha poesia tem mote nesta frase de Clarice Lispector: “Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne e osso”. Sou múltiplo e individuar isso é o grande desafio. A consciência de também carregar o sujeito-outro. E diante do espelho confessar – à Poesis, que outro valor ali fenece – que tenho um nó da tua gravata no meu coração

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