sábado, 30 de setembro de 2006
Eu era poeta, dizias
Eu era poeta, dizias,
Devido ao halo dos pães, das broas e dos bolos,
E dos recém saídos do forno, os pastéis de massa fina
Davam-me sonetos pastosos regados
Ao vinhaço de Alentejo…
Poeta, porque eu dançava
Aos teus riscos e rabiscos, e sorria
Dos bonecos que, da magenta do quadro,
Corriam pelos becos – sem frutos, repetias,
Sem pecados de expulsão divina…
E às vezes, pedia-te um lapso de atenção:
Pousada na flor, a borboleta em tons laranja
E o gato azeviche, com olhares verdes, rasgava-lhe
As pequenas sombras da tarde…
Tu juravas ser eu poeta
Pelos meus neurónios cor-de-rosa
E a cinza dos meus olhos viam
(sem alarde) a rua amarela…
E escutavam também os meus sentidos
A melodia com que um girassol prateado
Volteava (embriagado e tonto) seus seios
No fantástico zen da lua…
Filinto Elísio
Fenway Park
John Updike
de folhas caídas, em Fenway Park
e tu (a cores) parecias um ovo de Páscoa
e levavas no coração uma canção desesperada:
Pablo (seria o nome) -,
não se sabe se de Neruda
ou de Picasso, que também amavas…
Filinto Elísio
sexta-feira, 29 de setembro de 2006
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .
(...)
Álvaro de Campos
quinta-feira, 28 de setembro de 2006
quarta-feira, 27 de setembro de 2006
terça-feira, 26 de setembro de 2006
Neurótico
Feedback…em síntese
Podem chamar-me de neurótico. Tragam mais adjectivos de má qualificação. Não seja por masoquismo, mas eu mereço. Dir-se-ia que meço as coisas pelo meu estado da alma e isso não pode ser assim. Levei uma vida para ter 45 anos e não abro mão deste estatuto. E, para que não fiquemos assim impunes, valham-me a barriga já proeminente e este olhar de quem já viu o mundo pelo avesso. Por mim passava horas esquecidas diante do calçadão da Praia de Santa Maria da Vitória. Digo-lhe o nome assim corrido, com quem vinga desta coisa imerecida. É isto o S/Cem Margem, meus amores…
A cidade merecida, a realidade e duas horas históricas
É dos livros que a realidade nem sempre tem casos com a verdade. O que não tem faltado é realidade sem verdade. Um pouco por todo o lado. Sobretudo, nesta minha cidade, onde os gregos e troianos assaltaram e querem que nós, os praienses, lhes façamos as graças. Continuo hermético? Ali no cais, na rampa de São Januário, viera Vasco da Gama em 1498 a caminho da Índia, e o lugar em vez de ser santuário histórico e turístico, virou mictório público dos transeuntes. Estes nem respeitam o obelisco à tragédia da Assistência e às vítimas da Fome. Já sei ainda não estou a ser suficientemente claro. Já viram a Praia Negra, esse crime ecológico? Ela não era assim, mas um parque natural frondoso e bonito, onde os citadinos iam passar os seus fins-de-semana. Além da natureza, ela tem história interessante, não fosse ali um dos grandes espantos científicos de Charles Darwin, em Janeiro de 1832. It was on Santiago that Darwin made his first curious discovery. O cientista colhera ali as suas primeiras impressões tropicais, de plantas e animais, que determinaram sobremaneira a sua ciência futura. O lugar foi transformado em lugar de memória? Qual quê? Mas sim num escoadouro de excrementos urbanos, lixeira hospitalar e dejecto de industrias duvidosas, além de ancoradouro das velharias e barcos encalhados. Na baía onde ancorara o navio Beagle, imaginem. É que eu não poderia ser mais claro e directo. Não procuro a realidade, mas a verdade. A não ser que, em vez de crónica, prefiram prescrição médica. Com os seus efeitos colaterais. Naturalmente…
SMS
Estava ali a piscar no telemóvel: + chuva em CV, bjs, té +. Dos emails que recebi, um me deixou pensativo. Dizia assim: I don't think you have any idea of what I went through those days. Albatroz era o meu título no blog e Filas o meu nick no ICQ. Isto é para quando estou virtual…Continuem a mandar as vossas críticas. Acho que a Constituição prevê tais liberdades. Ela já tem 14 anos…pudera!
O Papa e o colunista
As opiniões de Ratzinger não deviam condicionar Bento XVI, que tem outras responsabilidades. Mas elas não justificam ameaças, tensões e guerras. Religiosas, ainda por cima. Pior do que isso é o bombardeamento e a destruição do Líbano. Ou então, o colunista local que o defende, confundindo barbárie com liberalismo. Fui…
domingo, 24 de setembro de 2006
De quinta a domingo: Zebra Entrance e “Silent Prayer”
(…)
Ainda não escolhi o meu orientador. Tenho tempo. No iPod, escuto New York State of Mind, de Billy Joel, enquanto procuro o livro “O Marketing das Nações”, de Phillip Kotler. Um telefonema de Cabo Verde. Não digo de quem, mas pergunto, Qual a sistemática para a declaração do estado da calamidade pública? Em situações de desastres ou de caos, torna-se mister tomar medidas excepcionais e de urgência, a vários níveis. Olha, fiz-te estes sonetos incompletos:
O azeite aloirando a cebola
Onde a batata palha e o bacalhau
Refogam no alho e na salsa
Um Natal onde se era feliz…
Diante do tacho, estavas tu
Ares de deusa, perfume de rosa,
O meu Édipo de noz-moscada
Ao teu olhar de mesa farta…
Desculpa-me que perdi os tercetos, mas os versos eram também inconsequentes. Como o apagão recorrente da Electra. Aqui, em Fortaleza não há apagões, nem dia de água. Mas sente-se saudades de Cabo Verde. Que está verde, verdíssimo, havias de dizer…
(…)
A Praia caminha para 120 mil habitantes, cerca de ¼ da população de Cabo Verde e tem uma população flutuante de mais de 20 mil diariamente, sem contar com a crescente imigração estrangeira, não recenseada. A pressão demográfica ultrapassa de longe a capacidade de resposta e, em face disso, as pessoas vivem mal na cidade, sem espaço para a qualidade de vida. Nos últimos anos aumentaram o tráfico e o consumo da droga, o furto e o assalto, a casa clandestina e o comércio na calçada, o lixo e a doença pública. Aumentaram também o desemprego, a pobreza e a mendicância. Com a época das chuvas, a cidade apresenta-se fétida, doente e impraticável. A zona baixa tornou-se um verdadeiro pântano, o paredão que sustentava a zona do Brasil ruiu e as casas nas encostam correm riscos de desabamento.
Sexta-feira
(…)
Aulas na Universidade. Estudar, estudar, estudar…na biblioteca apinhada de jovens. A maior parte, delicia-se no chat. Uma minoria estuda. Ou pensa que estuda. Eu penso nos meus filhos e no que fazem. À tarde, vou ter com o Prof. Anastácio, na Federal. Ele está a caminho de Cabo Verde, a convite da Câmara Municipal da Praia. Na sexta-feira à noite, jantei no Colher de Pau, em Varjota. Além do pão de alho, a entrar, havia boa música, ao violão. O jovem solitário imitava Djavan. O prato principal foi um salteado de cordeiro com mandioca – que tu adorarias! - e a sobremesa de papaia do nosso livro da imaginação: receitas e versos…
(…)
Leio nalguns blogs a campanha para “desmistificar” Orlando Pantera, o que não deixa de ser uma enorme falácia. O nosso reconhecimento em relação ao grande génio já falecido ainda está aquém do merecido. Orlando Pantera, para lá de exímio compositor, era um hardcore de alta voltagem. Disposto a mexer com os vários géneros da nossa música — morna, coladeira, funaná, choro, batuque, ele fez…uma revolução. O Pantera, apesar de vida meteórica, nos disse ao que veio, com as suas novas texturas sonoras, os seus arranjos de outra alquimia, a sua marcação dissonante e as suas letras de quem reinventava a poesia. E ele mantém ainda a sua marca de água impressa na voz e na atitude (sobretudo, na atitude) dos mais novos, mesmo daqueles que, por despeito ou ressentimento, o recusam. Que eternize a sua alma de criador. Só nos resta agradecer a Deus e sair de fininho por Cabo Verde ter tido Orlando Pantera.
Viva Pantera! Sempre…
Sábado
(…)
O filme "O Diabo Veste Prada" é interessante. Uma comédia sobre o mundo da moda e uma interpretação sobre o quotidiano de Anna Wintour (a directora da Revista Vogue América). Como estou a estudar a hiper competitividade, sou fã de Meryl Strip e das músicas de Madonna, gostei do filme. Nada que me fizesse cair na reflexão existencial, mas algo que me ajudou a passar este sábado à tarde. Longa espera e uma esperança. Eye of beholder. Com um sorriso ainda triste…
(…)
Não faltarão aqueles a dizer que a população não ajuda. Um palavreado jurássico e dito para desresponsabilizar alguns. “O praiense não tem civismo” – não é o que se ouve por aí? O Bispo alertou que a Praia “está uma lixeira”. Muito antes disso, Mário Fonseca (poeta e lúcido) afirmara que a cidade estava “uma cloaca”. E a culpa é da população? Que preconceito! E o preconceito é o pensamento sem juízo, nem ethos. Incapaz de formatar alternativas, mergulhado no breu da fatalidade. Criminalizar a população é uma estratégia discursiva que esconde os mandantes e só revela dos mandados. Lá chegaremos…
Domingo
(…)
Domingo foi de muito estudo. Tenho um exame cabeludo para breve e tenho de estar com o Micheal Porter, com a sua teoria das cinco forças, na ponta da língua. Mas à noite, não muito longe do meu apartamento, pude reconfirmar que a Peixada do Meio tem a melhor badejo no forno da cidade. Badejo com aboborinhas e arroz de coentro. Um cortejo de campanha eleitoral passou diante do meu 10° andar e não me emocionei nem um pouco. Já não tenho idade para pornografias…
(…)
O que fazer? De imediato, era o decretar o estado da calamidade pública. Quanto custaria fazê-lo? E quanto seria não o fazer? A longo prazo, as soluções teriam de ser encontradas de molde mais sustentável. Elas passariam pelo debate (mais sério e consequente) sobre o Plano Urbano Director, o Estatuto Especial e os Custos da Capitalidade. Mas vê-se que em relação a tais aspectos prevalece um estranho silêncio, quase uma conspiração. A quem interessa tudo isso? É que há mais perversão no status quo do que supõe o nosso ingénuo ideal republicano…
P/S: Noite branca, como há mais de 16 anos. A casa vitoriana. O Franklyn Park. Zebra Entrance. Era uma cidade em Outono, folhas caídas e o coração aquecido. Como nesse conto de Woody Allen, ele dormia com a amada e amanhecia no guarda-roupa. Olha, que está a tocar “Silent Prayer”, de Doky Bros. Naturalmente…
sábado, 23 de setembro de 2006
quarta-feira, 20 de setembro de 2006
Do Emmanuel College...
Olhavas para lá das pedras
Terras e mares, outros ares,
Medras de amoras em flor,
Tua tralha de cada viagem…
E ao fim desse cipreste,
Qual ave turbulenta, contas
Moinhos, monstros e tantas
Robustas sombras de ti…
Caindo a noite, nesse parque
Como em teu coração, choravas,
Baixinho, o apanágio divino,
Flagrantes de outros amores…
E depois, em nada, puro vazio,
A paisagem se anulando longe,
Pétala caindo de tua figura breve
Fugaz de um amor sem limites…
Filinto Elísio
Um sonho
brilho azul-branco
olho-água, vermelho da calha nua
tua ilharga lhana
mamilos de rosa-fagulha
fios de ouro velho na nuca
estrela-boca de milhões de beijos-luz
lua
fruta flor folhuda
ah! a trilha de alcançar-te
galho, mulher, folho, filhos
malha de galáxias
tua pele se espalha
ao som de minha mão
traçar-lhe rotas
teu talho, meu malho
teu talho, meu malho
o ir e vir de tua
o ir e vir de tua ilha
lua
toda a minha chuva
todo o meu orvalho
caí sobre ti
se desabas e espelhas da cama
a maravilha-luz do meu céu
jabuticaba branca
Caetano Veloso, in Cê
A um toureiro morto
que o maciço compacto de minha alvenaria/era só uma fiada e outra/de algodão e fresta,/nó e fenda./Sou o muro/estreito
e bem cortado, o reboco, a parede/delgada, a camisa que morreu/com ele, o muro, o metro/exato e reto que, no entanto,/ já não pode tal corpo/ que, extático, parece alastrar-se
como árvore, ao avesso, porque morta,/rio, ao avesso, morto, poça/de terra e não de água, de terra/que se derramou para voltar à terra./O que em mim era casa/deixou fugir as vigas, descolou-se, emagreceu dos ossos, tornou-se aéreo./Um morto é inquilino que não me serve e já/ outras paredes vêm chegando:o paletó/ de pinho ostenta cadeados definitivos,/colarinho de barro e lata.Morto,/nenhum veludo orna as ruas
sinuosas de seu intestino; músculos nus,/açúcar o que era arame. Sou a camisa/ encharcada de água em que se ferveu a carne,/o peixe, o adubo gorduroso da cabeça,/da língua, dos olhos daquele que amei, que amei/como uma casa ama a chama de sua régua.
terça-feira, 19 de setembro de 2006
segunda-feira, 18 de setembro de 2006
China Town não, obrigado
Recentemente, falando com um amigo e vizinho, voltamos à velha, mas cada vez mais necessária ideia da Associação dos Moradores e Amigos do Plateau. Não apenas para abordarmos a lástima que se tornou o Ribal Praia, mas para reflectirmos sobre as soluções e as alternativas existentes. Para já, o exorcizarmos a premissa de que o Plateau seja um problema (ou mesmo uma problemática), quando ele é uma grande oportunidade (de cultura, turismo, negócios, finanças, educação, etc). Falando amiúde com o meu amigo chegamos à conclusão de que o Plateau corre sérios riscos de degradação e de ostracismo. Em verdade, não se percebe que uma das áreas mais preciosas de Cabo Verde seja “abandonada” à descaracterização e ao avanço desenfreado do comércio especulativo e outro, bem como da venda ambulante (diria até, rabidante) dos informais. A continuar esse ritmo desenfreado, dentro de cinco anos, viveremos numa autêntica China Town. Esta não é do Pranchinha, coitado, mas vaticínio de todos quantos abordam a questão. Não que eu tenha algo contra a presença dinâmica dos estrangeiros e dos forasteiros na cidade. Antes pelo contrário, Praia tem uma vocação metropolitana e cosmopolita e há que ser coerente em relação aos seus caminhos. Entretanto, chamaria aqui a atenção no tocante ao controlo e à gestão dos fluxos migratórios e à necessidade de gentrização do espaço, transformando completamente a forma e o conteúdo social da cidade. A questão é humana, em todos os seus quadrantes, Eis a pergunta abismal: existe Plateau fora do horário comercial e administrativo? Existência, no significado profundo do termo. Diga-se em abono da realidade que essa fatia urbana precisa de urgente reabilitação, tarefa que envolve tudo e todos, sobretudo a edilidade e o governo. O papel do Estado como indutor torna-se extremamente relevante. Aliás, a opção de plantar ali a Reitoria da Universidade de Cabo Verde, por exemplo, foi mais que bem pensada. A de praça digital também. Mas é preciso algo mais. É preciso um processo integrado de recuperação da área que se pretende salvaguardar, implicando o restauro dos edifícios e a revitalização do tecido económico e social, no sentido de tornar a área atractiva e dinâmica, com mais competitividade e melhor condições de habitabilidade. À margem, mas não neutro, diante da euforia imobiliária, urbanística e outra que toma conta de alguns espíritos, reafirmo ao meu amigo e vizinho sobre a premência da nossa Associação. Estou crente que todos (os de boa fé e boa-vontade) irão aderir. Tem a ver com requalificar Cabo Verde, pela cidadania ora. Em prol do Plateau. Sem saudosismos em relação ao passado, mas com assumida saudade do futuro...
sábado, 16 de setembro de 2006
Xoo em cumpre anos
Eros, como a noite, também faz anos
Brisa vagarosa de praia deserta
Onde eu também fora Deus
Antes do Verbo
Eras ontológica, sereia
Arenosa aos meus passeios
De solilóquio e assim
Soletrava-te em sonhos
Eres tan solo versos de Paz
Uma vez, lua, outra vez estrela
Palavras daqui soletradas
E tântricas do teu corpo…
Eros, eras, eres…esses e efes
Todas as letras tatuadas
No balbuciante dos teus lábios
Quando não beijam…
Filinto Elísio
sexta-feira, 15 de setembro de 2006
Roteiro de Dimas Macedo
Como jurista e cientista político, publicou: Política e Constituição (Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2003). E no campo da crítica ou do ensaio, é autor de: Leitura e Conjuntura (1984; 3ª edição: 2004), A Metáfora do Sol (1989; 3ª edição: 2003), Ossos do Ofício (1992), Crítica Imperfeita (2001) e Marxismo e Crítica Literária (Florianópolis, 2001).
Dimas Macedo integra o Conselho Editorial de vários jornais e revistas culturais: Espiral e Literapia (Fortaleza), Literatura (Brasília) e Morcego Cego (Santa Catarina), entre outros. Compõe também o Conselho Editorial das Edições da UFC, o Conselho de Publicações da Editora Códice e o Conselho Editorial do Museu – Arquivo da Poesia Manuscrita. Participou, com poetas e estudantes do Curso de Direito da UFC, da criação da revista e do movimento literário Molec.
Poemas e textos literários de sua autoria foram vertidos para o inglês e o espanhol e publicados em Portugal, Espanha, Inglaterra, Argentina e Estados Unidos, tendo trabalhos de sua autoria divulgados nos principais jornais e revistas do Ceará e do Brasil. A sua produção no campo da cultura literária ou da reflexão filosófica abrange um conjunto de trinta livros editados e mais de trezentos artigos, versando a maioria deles sobre literatura e autores de língua portuguesa.
Desenvolvendo uma intensa atividade literária, cultural e artística, que se projeta no campo editorial e na área da defesa da cidadania e da justiça, Dimas Macedo, além do livro Política e Constituição, acima referido, publicou o livro A Face do Enigma (2002), este último sobre a trajetória biográfica e a obra literária do grande escritor cearense José Alcides Pinto.
Presidente da Comissão de Direito Ambiental da Procuradoria Geral do Estado do Ceará e membro da Comissão de Direitos Humanos, da Comissão de Estudos Constitucionais e Vice-Presidente da Comissão de Ensino Jurídico da OAB-CE, Dimas Macedo tem artigos publicados em revistas jurídicas especializadas, entre elas, a revista Nomos, do Curso de Mestrado em Direito da UFC; a Revista de Humanidades, do Centro de Ciências Humanas da UNIFOR; a Revista de Informação Legislativa, do Senado Federal; a Revista da Faculdade de Direito da UFC; a Revista dos Tribunais – Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, da Editora RT; e a Revista Trimestral de Direito Público, da Editora Malheiros, São Paulo; sendo ainda autor dos livros Ensaios de Teoria do Direito (1985), O Discurso Constituinte/Uma Abordagem Crítica (1987), ambos já em segunda edição, e Pesquisas de Direito Público (2001), onde discute, respectivamente, temas de Filosofia do Direito, Sociologia Política e Direito Constitucional.
Na área específica da Pós-Graduação, além do Mestrado em Direito da UFC, tem lecionado as disciplinas Teoria do Estado, Organização Federativa do Estado e Normas e Princípios Constitucionais, nos Cursos de Especialização em Direito Tributário e Direito Constitucional, na Universidade de Fortaleza; Processo Constitucional e Teoria dos Direitos Fundamentais nos Cursos de Aperfeiçoamento de Magistrados e Pós-Graduação em Processo Civil, na Universidade Federal do Ceará; e Direito Constitucional Ambiental, no Curso de Pós-Graduação em Direito Ambiental, na Universidade Estadual do Ceará. Por dois mandatos exerceu as funções de chefe do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito da UFC.
Com toda esta multiplicidade de funções e cargos, Dimas Macedo se auto-intitula como poeta. E afirma que “esse mundo fantástico do imponderável, essa transcendência cristã e divina que borbulha em cada um de nós como uma rocha, compreende, em essência, os sentidos daquilo que pedimos e daquilo que achamos a cada passo de nossa caminhada. Aceitar Deus é ouvir a alegoria mais pura da palavra, é sentir a pulsação dos humildes, é ancorar uma nuvem nas areias móveis do deserto, porque os móbiles de sal do pensamento já são, em sua unidade suprema, os códigos de luz de todas as idades do homem”.
Em seu livro Marxismo e Crítica Literária, Dimas Macedo, com propriedade, afirma que “a realidade social concreta, não podemos esquecer, esconde-se por trás de uma cortina de mentiras e falsificações, de forma que assim, gradativamente, a sua face vai se tornando invisível. E se ela não se concentra captada numa obra literária, como exige, aliás, o pronunciamento de Milan Kundera, ela termina aventurando-se a não ser reconhecida pelo leitor, que não tem mais o hábito de conviver com o concreto real. (...) Para libertar a literatura desse processo de escamoteação do real, faz-se preciso que o crítico esteja consciente de que o exercício de sua atividade de decodificador de linguagens está subordinado à compreensão de que a obra literária, assim como o autor e o leitor, encontram-se inseridos num universo conhecido pela designação de contexto social”.
Como bem observa Rodrigo Marques, “os símbolos da infância de cada poeta permanecem vivos e sempre estão a reclamar um poema e a despertar eternas saudades e lembranças”. Não poderia ser diferente com o poeta Dimas Macedo, que homenageia sua cidade natal, Lavras da Mangabeira(CE), com o poema “Lavras”, publicado em seu livro A Distância de Todas as Coisas:
“Longe daqui do tumulto,
lá no meio das coisas,
prostrada para o universo,
posto que existe,
Lavras é a cidade mais bela do mundo,
pois em cada rua
nasce uma saudade
que termina em meu corpo”.
No poema “Elegia Lavrense”, Dimas Macedo conversa com sua cidade que o fez nascer de suas entranhas, e que um dia o viu partir em silêncio. Quantos de nós nos identificamos com este auto exílio da cidade que nos gerou e abrigou em seu berço desde quando nascemos e que, muitas vezes no mudismo de sua história, guarda em suas ruas, parques, avenidas, escolas, clubes e residências o registro de nossa existência com a ilusão juvenil de que morávamos no centro do universo? Como um casulo, ela bem sabe que um dia a borboleta parte e que, por mais que deseje, não mais terá condições de acolher em seu ventre de casulo sua larva que se fez borboleta e que aprendeu a voar. Será, caros irmãos Cineas Santos e Genuíno Sales, que, ao lerem “Elegia Lavrense”, vocês não se lembrarão de Campo Formoso, município de Caracol/PI, ou da fazenda Tamboril dos Sales, ao sopé da serra do sertão de Pedro II, como eu me lembro da minha Parnaíba? Vejam como o poeta Dimas canta a sua terra de berço:
“Lavras,
ainda não quero transformar-te em canto,
quero apenas denunciar-te com uma elegia
para que rememores teu passado
de poemas ainda não escritos,
mas que escreveste
para o contentamento dos teus filhos.
Moléculas desgarradas do teu seio,
lentas para os sonhos de amor
que conquistaste.
Histórias paridas de tuas entranhas,
serenas como o caminhar dos teus transeuntes
na beleza cantante de tuas ruas
e de tuas praças,
ou com a solidão que ostentas
em tuas madrugadas,
com tua avenida enluarada,
serena para a inquietação que te dominava outrora.
II
Lavras, as tuas ruas agora silenciaram,
não mais choram com a sinfonia
dos violões plangentes dos teus seresteiros.
Tudo até parece que dorme sobre ti
pairando entre a timidez paralela de tuas casas.
Teus líderes
ainda acalentam em ti uma esperança,
sim, porém muitos partiram,
aliás, todos.
...
Teu corpo repousa virgem,
envolvido pela monotonia de tua solidão.
E é com essa paz, Lavras,
que te desejo.
Quero-te com as tuas manhãs de domingo,
nostálgicas para mim nas festas do padroeiro,
ou com as tuas tardes tristes
ao som da velha banda que não conheci
mas cuja harmonia
ouço a cada instante
tocando dobrados que ferem a alma.
Quero-te na tua calma,
perdida na tua agonia,
sobretudo quando sofrias a crueldade
dos teus poderosos
e eu não podia te socorrer
na minha fragilidade de criança”.
Reviver o passado é, como bem expressa Dimas Macedo, a nossa própria vida como “uma sucessão de dias e de noites”. O sonho, a angústia, a desilusão, a alegria, a tristeza, a esperança, o desejo, as paixões, e o amor alimentam a própria existência deste grande poeta que se autodenomina como “poeta apenas (...) com as mãos calejadas de versos”, a guardar no olhar “uma imaginação entre planícies”.
“Nas ondas perenes do mar
alternando calmaria com arrebentação
navega o barco do poeta
sem porto onde atracar
Tem como norte a luz
que afugenta a morte
iluminando a alma
nos labirintos da vida
Nos caminhos d’água
segue o homem que sonha
harmonizar direito com justiça
humanizando o mundo com poesia”.
Finalizando minhas modestas palavras, escolhidas que foram para fazer uma breve apreciação sobre a extensa obra do poeta Dimas Macedo, socorro-me de Mário Quintana em sua versão da felicidade, invocando aqui o poema de sua autoria intitulado “A Idade de Ser Feliz”:
“Existe somente uma idade para a gente ser feliz,
somente uma época na vida
de cada pessoa em que é possível sonhar
e fazer planos e ter energia
bastante para realizá-los a despeito de
todas as dificuldades e obstáculos.
Uma só idade para a gente se encantar com
a vida e viver apaixonadamente e
desfrutar tudo com toda intensidade
sem medo nem culpa de sentir prazer.
Fase dourada em que a gente pode criar e recriar
a vida à nossa própria imagem e semelhança e
vestir-se com todas as cores e experimentar todos os
sabores e entregar-se a todos os amores sem
preconceito nem pudor. Tempo de entusiasmo e coragem
em que todo desafio é mais um convite à luta
que a gente enfrenta com toda disposição de tentar
algo NOVO, de NOVO e de NOVO,
e quantas vezes for preciso. Essa idade tão fugaz
na vida da gente chama-se PRESENTE e tem a duração
do instante que passa”.
quinta-feira, 14 de setembro de 2006
Haikus
Mano en la noche.
Un pájaro sombrío,
Sombra de pájaro.
2
La muerte bebe
Su oscuro vino amargo,
Y luego sigue.
3
Fugaz crepúsculo
Que alumbras por las tardes,
Lámpara breve
4
Canto en la noche.
Las sirenas me llaman;
Sueñan mi muerte.
5
Sueño mi muerte,
Los clavos, la madera.
Cuelgo del sueño.
6Piedra o espada.
Excalibur soñado.
Mano que duda.
Carlos Pintado
quarta-feira, 13 de setembro de 2006
An Inconvenient Truth
We will also be posting international release dates in the coming week.
The Los Angeles Times reports: Wildfire Increase Linked to Climate - Higher temperatures over 34 years — rather than land-use changes — have led to more blazes, researchers say. They’re sure it’s not a fluke.
Finally, do you know a person of faith who you’d like to see An Inconvenient Truth for free?
terça-feira, 12 de setembro de 2006
Cê não me devia maldizer assim
Do lado do cipreste branco
A Fonte. Renato Russo
Em dias como hoje, eu não sei o que escrever. Talvez seja esta sede sem fim. Não tenho o frescor da escrita de Eileen ou de Chissana. Nem o imponderável n ta mora li de Abrão Vicente ou de navega Mayra Andrade. Essa gente nova e descomplexada que anda por aí. Gente inova, diria. Falo-vos, então, da correspondência com o meu amigo, do bom jazz e da boa conversa. Ele, por sinal, nem gostou que eu dissesse: o Estadista não governa para a próxima eleição, mas para a próxima geração. Mal habituado poderoso e senhor do mundo, ele me condenou ao inferno no último email. A dar o troco, permiti que Pranchinha lhe dissesse umas loas. Este, desde Nero até ao último deus da esquina, anda a gozar com os poderosos. Continua nisso mesmo depois de morto, já que estamos no reino do absurdo. Devia ser combatente da liberdade, pois a Pátria se liberta a cada momento (e ainda bem). Unânimes contra o ufanismo a que isto se tornou. O mais bem gerido da África (coitado do Continente!). A Constituição mais moderna do mundo (oh, kanadja!). O 1° (também na África) à vista do MCA. E mais coisas & loisas patrioteiras que a conversa em família já repete à exaustão. Entretanto, é neste – o quê mesmo? - Japão, Hong Kong ou King Kong que acontece o apagão da Electra. Neste Pêdême de cada dia que a malária, erradicada na Colónia, mata de novo. Neste milênio que os novos escravos são barrados no mar, com o reforço estrangeiro, para o inglês ver. Não sei o que escrever, porque quero andar em sentido contrário desse carnaval da loucura, do kásubodi e da narco ostentação. E os poemas que timidamente escrevo, gostaria que fossem de pedra. Não a pedra das infra-estruturas precárias, mas a explosiva pedra com que um apóstolo do futuro construirá a sua Igreja. Petrus et super hanc petram aedificabo ecclesiam meam. Tento escrever o que vejo deste 10° andar. Mas o Calçadão é um frenesi artificial e a cidade grande é uma babel antropófaga. O telejornal diz que Amazonas está sendo desmatada de forma perigosa. O maior terrorismo acaba por ser o ambiental. Pior do que nos transformar a todos em Califado. O Papado tentou-o nos Descobrimentos e ficamos irremediavelmente sadomasoquistas. A Deus nas alturas que, por aqui, apesar das terçãs, nos entenderemos. Em dias como hoje, eu não sei o que escrever. Definitivamente, estou em branco. Quem sabe, um rap à maneira do José Luis Tavares. Ou os versos revisados como Armênio Vieira. Mas terei de falar dos grandes? O meu colega da faculdade telefona a dizer sobre a vernissage de “Cê”, o último álbum de Caetano Veloso. Conto-lhe do King Kong e ele a rir como um louco. Grande Pranchinha! Escuto, nesta tristeza infinda, A Fonte, de Renato Russo. Daqui a pouco saio pela cidade procurando pão quente e o álbum de Caetano Veloso. Diz a televisão que ele canta assim: Eu não me arrependo de você/ Cê não me devia maldizer assim/ Vi você crescer. E eu não vou escrever sobre o quinto aniversário do 11 de Setembro. Não estou a fim de sublinhar o óbvio...
domingo, 10 de setembro de 2006
Melodia
Despeço-me de assaz versos
Como quem se aparta
Da casa onde nasceu...
Por Pedro ou Sísifo
E (soubeste-o sempre) longa
A minha viagem, deixava-te
As palavras que já são pássaros
E este enorme desplante
De rosas nas estrofes...
Por certo, uma frase ou tão-somente
(perfumada crase) de não contida
Crave em pedra e alma tua
O dentro de tais frutos
- nós (digamo-lo também)
Olhando a lua...
Quem sabe, o meu ir desnude
O dia em seu porvir, quando
E antes que – dos versos! –
Nos anoiteça (agora ou no eterno)
A melodia...
Filinto Elísio
quarta-feira, 6 de setembro de 2006
O ÚLTIMO MITTERRAND
Bilinguismo de “trocolansa”
Hoje, quero falar da língua cabo-verdiana. Do crioulo de Cabo Verde, falado em toda a Nação Global e estudado em várias universidades do mundo, mas que continua relegado à marginalização nas oficialidades. Mas que tacanhês, quanta colonização mental! Como não oficializar a lingua do pensamento, da fala e da intercomunicação neste Cabo Verde global? Perigar o português? Não me façam rir. O que periga o mau português falado e escrito em Cabo Verde é exactamente a não definição do estatuto oficial das duas línguas. A tal diglossia, de que nos fala a estudiosa Dulce Almada, tem a ver com a promiscuidade linguística, com o actual bilinguismo de “trocolansa”. Só teríamos a ganhar se dominásse bem as duas línguas que a ventura nos deu: a cabo-verdiana e a portuguesa. Quem já leu Chomsky sabe das vantagens cognitivas do bilinguismo saudável. Para um pensamento estruturado, capaz de pensar a ilha, o arquipélago e o cosmo. Funcionar em dois códigos linguísticos é um valor agregado, a potenciar, meus senhores. Importa não confundir as nossas fobias com a realidade, sobretudo aquela que transcende uma elitezinha medíocre e deformada. Basta dos pruridos de trazer por casa e oficializemos o crioulo de Cabo Verde. Por uma questão de não amputarmos a soberania, nem amordaçarmos a democracia…
Cimboa – muito mais que instrumento
Em conversa com Charles Akibodé soube do projecto de preservação e de valorização da Cimboa, instrumento musical tradicional cabo-verdiano, em vias de extinção. O projecto de Akibodé não se resume ao instrumento em si, como peça da antropologia cultural, mas abraça uma iniciativa mais alargada e mais consequente da promoção da Cultura que se faz em Santiago. A Salvaguarda da Memória da Cimboa resgata o prestígio cultural e social de Mano Mendi, um dos mestres do batuque e na execução da Cimboa. Ela resgata também a técnica do fabrico desse instrumento, a partir de uma abordagem científica do artesanato cabo-verdiano. Charles Akibodé, investigador de profissão, entendeu o que à nossa elite desavisada custa a entender: a verdadeira estética pressupõe uma perspectiva ética.
Fantasia, digamos…
Meu caro amigo, do bom jazz e da boa conversa, acabo de assistir ao O ÚLTIMO MITTERRAND, filme de Robert Guédiguian. Mitterrand sim, era um estadista fascinante. Com grandeza. Agora, eu não fico embasbacado diante desse Carnaval. Prefiro coisas mais pedagógicas. Quando não, fico horas diante do oceano. Estou assumidamente numa fase zen. Naquela do zen-mundismo, como diria Gilberto Gil. Meu caro amigo, das piadas inteligentes, não estive, nem estaria por um segundo embasbacado com o processo histérico. Prefiro amar, mesmo vizinho cativo da dor, quem não odeia senão o ódio. A política não é a minha praia. Literalmente. A política tem de se resumir aos seus limites em qualquer sociedade democrática. Ela não pode tudo. Frágil e vulnerável como todos, o político só governa com o aval dos governados. Um Nero a mandar vir hoje seria até hilariante. Já não há paciência mesmo. O Pranchinha, se cá estivesse, faria a reprise daquele Ditador que, do alto da sua arrogância, mandou revogar (imaginem) as Leis da Gravidade. Obviamente que o Grande Líder caiu fulminado por terra. Excesso de peso, meu caro amigo…
Ricardo…graças a Deus!
Não é só o nome que santifica: Ricardo de Deus. É a música também que, mesmo ousando pelo profano, como todo o suíngue aliás, está aqui eivada de sagrado. O álbum Fragmentos foi feito com engenho e arte, corolário de muito bom-gosto e muita técnica, desde a composição à produção, passando naturalmente pela interpretação.
Ricardo de Deus, mercê das suas aparições e das suas aulas de piano, conseguiu já um panteão sonhado por todos e uma serenidade conseguida apenas por alguns. Ele vem a Fragmentos, seu primeiro álbum, com a maturidade de repertório e a mão tão precisa quão concisa na escolha dos músicos, tanto cabo-verdianos como brasileiros e outros. A notariedade de Ricardo de Deus não se traduz em significante, mas sim na profunda e radical simplicidade, apanágio dos iluminados.
Brasileiro, de São Paulo, mas ora serenado nas ilhas de Cabo Verde desde 1999, Ricardo de Deus pegou já o significado da alma crioula, no jeito como nos apresenta a maior parte das 14 faixas que perfilam neste álbum. Diga-se que o Artista assina todas as composições, à excepção de “Lundu” de Arnaldo Rebello, facto inusitado entre a gente que o tinha apenas por exímio pianista. Fragmentos é genuína música cabo-verdiana, mas não engessada a nada. Nem mesmo à toada que se ouve pelas esquinas. É música boa, nova e glamourosa…de Deus, realmente.
terça-feira, 5 de setembro de 2006
sábado, 2 de setembro de 2006
Príncipe das nuvens
Como se rastejassem à soleira
Das nossas almas esquecidas
E olhassem de soslaio a solidão
Também nossa…
Há dias insidiosos, à flauta
Em que o mago engana a serpente
E este, de puro fogo, crepita
À Eva e sua profanada maçã
- ó libidinosas…
Dias há que nos adentram o lar
Pela fresta das janelas e do pensamento
E ficam quietos, como lamentos,
De murmúrios tão-somente
E em desenlace…
É quando a poesia soletra
Na vertigem deste lugar
- chamemo-lo poisio ou viagem –
Onde se refugia o Albatroz,
Príncipe das nuvens…
Filinto Elísio
O Poço
em teu fosso de silêncio,
em teu abismo de orgulhosa cólera,
e mal consegues
voltar, trazendo restos
do que achaste
pelas profunduras da tua existência.
Meu amor, o que encontras
em teu poço fechado?
Algas, pântanos, rochas?
O que vês, de olhos cegos,
rancorosa e ferida?
Não acharás, amor,
no poço em que cais
o que na altura guardo para ti:
um ramo de jasmins todo orvalhado,
um beijo mais profundo que esse abismo.
Não me temas, não caias
de novo em teu rancor.
Sacode a minha palavra que te veio ferir
e deixa que ela voe pela janela aberta.
Ela voltará a ferir-me
sem que tu a dirijas,
porque foi carregada com um instante duro
e esse instante será desarmado em meu peito.
Radiosa me sorris
e minha boca fere.
Não sou um pastor doce
como em contos de fadas,
mas um lenhador que comparte contigo
terras, vento e espinhos das montanhas.
Dá-me amor, me sorri
e me ajuda a ser bom.
Não te firas em mim, seria inútil,
não me firas a mim porque te feres.
Pablo Neruda