Sou a camisa do toureiro morto,/a cal magra, a casca, a casa que ele vestia/à maneira de um pássaro/que o calçasse inteiro/e protegesse, de modo que/seu peito já não se lembrasse
que o maciço compacto de minha alvenaria/era só uma fiada e outra/de algodão e fresta,/nó e fenda./Sou o muro/estreito
e bem cortado, o reboco, a parede/delgada, a camisa que morreu/com ele, o muro, o metro/exato e reto que, no entanto,/ já não pode tal corpo/ que, extático, parece alastrar-se
como árvore, ao avesso, porque morta,/rio, ao avesso, morto, poça/de terra e não de água, de terra/que se derramou para voltar à terra./O que em mim era casa/deixou fugir as vigas, descolou-se, emagreceu dos ossos, tornou-se aéreo./Um morto é inquilino que não me serve e já/ outras paredes vêm chegando:o paletó/ de pinho ostenta cadeados definitivos,/colarinho de barro e lata.Morto,/nenhum veludo orna as ruas
sinuosas de seu intestino; músculos nus,/açúcar o que era arame. Sou a camisa/ encharcada de água em que se ferveu a carne,/o peixe, o adubo gorduroso da cabeça,/da língua, dos olhos daquele que amei, que amei/como uma casa ama a chama de sua régua.
Eucanaã Ferraz, no livro Rua do Mundo (ed. Cia. das Letras)
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