domingo, 24 de setembro de 2006

De quinta a domingo: Zebra Entrance e “Silent Prayer”


Quinta-feira


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Ainda não escolhi o meu orientador. Tenho tempo. No iPod, escuto New York State of Mind, de Billy Joel, enquanto procuro o livro “O Marketing das Nações”, de Phillip Kotler. Um telefonema de Cabo Verde. Não digo de quem, mas pergunto, Qual a sistemática para a declaração do estado da calamidade pública? Em situações de desastres ou de caos, torna-se mister tomar medidas excepcionais e de urgência, a vários níveis. Olha, fiz-te estes sonetos incompletos:

O azeite aloirando a cebola
Onde a batata palha e o bacalhau
Refogam no alho e na salsa
Um Natal onde se era feliz…

Diante do tacho, estavas tu
Ares de deusa, perfume de rosa,
O meu Édipo de noz-moscada
Ao teu olhar de mesa farta…

Desculpa-me que perdi os tercetos, mas os versos eram também inconsequentes. Como o apagão recorrente da Electra. Aqui, em Fortaleza não há apagões, nem dia de água. Mas sente-se saudades de Cabo Verde. Que está verde, verdíssimo, havias de dizer…

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A Praia caminha para 120 mil habitantes, cerca de ¼ da população de Cabo Verde e tem uma população flutuante de mais de 20 mil diariamente, sem contar com a crescente imigração estrangeira, não recenseada. A pressão demográfica ultrapassa de longe a capacidade de resposta e, em face disso, as pessoas vivem mal na cidade, sem espaço para a qualidade de vida. Nos últimos anos aumentaram o tráfico e o consumo da droga, o furto e o assalto, a casa clandestina e o comércio na calçada, o lixo e a doença pública. Aumentaram também o desemprego, a pobreza e a mendicância. Com a época das chuvas, a cidade apresenta-se fétida, doente e impraticável. A zona baixa tornou-se um verdadeiro pântano, o paredão que sustentava a zona do Brasil ruiu e as casas nas encostam correm riscos de desabamento.


Sexta-feira

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Aulas na Universidade. Estudar, estudar, estudar…na biblioteca apinhada de jovens. A maior parte, delicia-se no chat. Uma minoria estuda. Ou pensa que estuda. Eu penso nos meus filhos e no que fazem. À tarde, vou ter com o Prof. Anastácio, na Federal. Ele está a caminho de Cabo Verde, a convite da Câmara Municipal da Praia. Na sexta-feira à noite, jantei no Colher de Pau, em Varjota. Além do pão de alho, a entrar, havia boa música, ao violão. O jovem solitário imitava Djavan. O prato principal foi um salteado de cordeiro com mandioca – que tu adorarias! - e a sobremesa de papaia do nosso livro da imaginação: receitas e versos…

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Leio nalguns blogs a campanha para “desmistificar” Orlando Pantera, o que não deixa de ser uma enorme falácia. O nosso reconhecimento em relação ao grande génio já falecido ainda está aquém do merecido. Orlando Pantera, para lá de exímio compositor, era um hardcore de alta voltagem. Disposto a mexer com os vários géneros da nossa música — morna, coladeira, funaná, choro, batuque, ele fez…uma revolução. O Pantera, apesar de vida meteórica, nos disse ao que veio, com as suas novas texturas sonoras, os seus arranjos de outra alquimia, a sua marcação dissonante e as suas letras de quem reinventava a poesia. E ele mantém ainda a sua marca de água impressa na voz e na atitude (sobretudo, na atitude) dos mais novos, mesmo daqueles que, por despeito ou ressentimento, o recusam. Que eternize a sua alma de criador. Só nos resta agradecer a Deus e sair de fininho por Cabo Verde ter tido Orlando Pantera.
Viva Pantera! Sempre…


Sábado

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O filme "O Diabo Veste Prada" é interessante. Uma comédia sobre o mundo da moda e uma interpretação sobre o quotidiano de Anna Wintour (a directora da Revista Vogue América). Como estou a estudar a hiper competitividade, sou fã de Meryl Strip e das músicas de Madonna, gostei do filme. Nada que me fizesse cair na reflexão existencial, mas algo que me ajudou a passar este sábado à tarde. Longa espera e uma esperança. Eye of beholder. Com um sorriso ainda triste…

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Não faltarão aqueles a dizer que a população não ajuda. Um palavreado jurássico e dito para desresponsabilizar alguns. “O praiense não tem civismo” – não é o que se ouve por aí? O Bispo alertou que a Praia “está uma lixeira”. Muito antes disso, Mário Fonseca (poeta e lúcido) afirmara que a cidade estava “uma cloaca”. E a culpa é da população? Que preconceito! E o preconceito é o pensamento sem juízo, nem ethos. Incapaz de formatar alternativas, mergulhado no breu da fatalidade. Criminalizar a população é uma estratégia discursiva que esconde os mandantes e só revela dos mandados. Lá chegaremos…

Domingo

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Domingo foi de muito estudo. Tenho um exame cabeludo para breve e tenho de estar com o Micheal Porter, com a sua teoria das cinco forças, na ponta da língua. Mas à noite, não muito longe do meu apartamento, pude reconfirmar que a Peixada do Meio tem a melhor badejo no forno da cidade. Badejo com aboborinhas e arroz de coentro. Um cortejo de campanha eleitoral passou diante do meu 10° andar e não me emocionei nem um pouco. Já não tenho idade para pornografias…

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O que fazer? De imediato, era o decretar o estado da calamidade pública. Quanto custaria fazê-lo? E quanto seria não o fazer? A longo prazo, as soluções teriam de ser encontradas de molde mais sustentável. Elas passariam pelo debate (mais sério e consequente) sobre o Plano Urbano Director, o Estatuto Especial e os Custos da Capitalidade. Mas vê-se que em relação a tais aspectos prevalece um estranho silêncio, quase uma conspiração. A quem interessa tudo isso? É que há mais perversão no status quo do que supõe o nosso ingénuo ideal republicano…


P/S: Noite branca, como há mais de 16 anos. A casa vitoriana. O Franklyn Park. Zebra Entrance. Era uma cidade em Outono, folhas caídas e o coração aquecido. Como nesse conto de Woody Allen, ele dormia com a amada e amanhecia no guarda-roupa. Olha, que está a tocar “Silent Prayer”, de Doky Bros. Naturalmente…

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