sexta-feira, 15 de outubro de 2004

Paraíso Apagado por um Trovão

Há muito que José Luís Tavares, nascido em Santiago de Cabo Verde a 10 de junho de 1967, residente em Portugal, onde estudou literatura e filosofia, escreve poesia. Dizer que começou a publicar tarde, aos 36 anos, é advertir o leitor para o processo de autoconsciência que este autor realiza, face à sua escrita, depurada e rigorosa. José Luís Tavares, com o seu único livro publicado, «Paraíso Apagado por um Trovão», conquistou o prestigiado Prémio Mário António da Fundação Calouste Gulbenkian, juntamente com a poeta angolana Ana Tavares.
Exigente para consigo próprio, José Luís Tavares possui uma voz peculiar e uma imagética intensa, que revelam uma sábia incorporação da tradição e uma mestria singular no modo como opera sobre a linguagem poética.

Maria João Cantinho – Começas o teu livro por um belo poema, “Limiar”, em que dizes assim: “Descer – ao chão antigo,/ agreste, familiar; às ombreiras/sem brasão onde nem trompas/matinais nem plenipotenciária/voz de mando//Regressar – à vida rude, elementar(…)”. Que limiar é este, de que aqui se fala? Regresso ou recomeço?

José Luis Tavares – Tomemos limiar na acepção de ponto que marca a transição de um espaço, topológico ou simbólico, para outro. No caso vertente, sem cair na tentação auto-hermenêutica, diria que é uma espécie de para-texto que foi colocado para indicar uma deslocação de motivo, dado que no ordenamento dos livros inéditos «Paraíso...» vinha em segundo lugar. O primeiro, «Agreste Matéria Mundo», que vai sair no próximo semestre na Ed. Campo das Letras, na sua parte mais extensa, intitulada «a deserção das musas», é uma longa meditação sobre a condição do poeta e da poesia em pleno século vinte e um. Por outro lado, intentava ser uma forte restrição hermenêutica, dado que o motivo do livro, sendo o autor de onde é, podia prestar-se às costumeiras sandices que os especialistas da coisa debitam sempre que uma obra parece encaixar-se nos seus esquemas apriorísticos, sem cuidar da novidade que é o trabalho da invenção linguística.

M.J.C. – Porquê o título "Paraíso apagado por um trovão"? Recusa da nostalgia, ruptura e choque como método poético? Se por um lado, o título me faz pensar isso, existem versos – que me levam no sentido inverso - como: Entrega-nos o sono, a essa luz/tão de outrora, os ressurrectos/nomes dos mortos.

J.L.T. – O poemático é sempre a manifestação duma instabilidade. Daí que o mais importante não é rastrear-lhe as significações, mas apreendê-lo enquanto aquilo que é. Poeta não é aquele que está fora do mundo, mas o que demanda as fronteiras e os limites, atento aos vagidos da origem e aos estertores do aniquilamento.
A ruptura, nunca, neste livro, está anunciado enquanto projecto, mas quem escava poços de sangue, revisita séculos de ignomínia e escassez, tem de encontrar um modo apropriado de o fazer , nos dois movimentos tensionais do poema – o prospectivo e o arqueológico - sob pena de soçobrar sob os escombros que tal fito acarreta.

M.J.C. - António Cabrita salientou o teu livro como um “dos melhores primeiros livros de poesia” que ele havia visto em anos. À luz desta afirmação, parece-me que há um laborioso trabalho oficinal e uma maturidade que não é vulgar, nos poetas jovens. Como foi esse processo de crescimento entre o início da tua escrita e a publicação deste livro? Isto é, quanto tempo amadureceste este livro?

J.L.T. –. Primeiro: não se é jovem poeta quando se publica aos 36 anos, com quase vinte anos de escrita sistemática por trás. Não creio que se tenha chamado jovem poeta ao António Osório quando em 1978 publicou o seu primeiro livro. Nem ao Manuel Gusmão quando em 1990 se estreou em livro. Quando muito, serei um novo poeta, e assim me considero, pelo menos no âmbito da literatura caboverdeana.
Segundo: este livro tem uma história curiosa – em determinado momento, aí por meados dos anos noventa, relendo os meus poemas, com o fito de organizar uma colectânea, noto que há um motivo que atravessa alguns daqueles poemas. É a partir desse momento que a ideia deste livro se me impõe claramente, vindo a concretizar-se num conjunto de quarenta poemas em prosa, que viria a destruir por considerá-los completamente falhados. Passado algum tempo, vou visitar uma exposição da Graça Morais e vejo umas fotografias sobre cabo verde da Inês Gonçalves, publicadas no suplemento de um jornal lisboeta. Estes dois acontecimentos viriam a constituir o impulso detonador da retoma do projecto, vindo a saldar-se num conjunto de cerca de duzentos poemas que depois de retalhados, peneirados, montados – literalmente montados, com o uso da cola e da tesoura, dado que só a partir do verão de 2003 passei a utilizar o computador – culminariam no livro que o leitor tem entre mãos.

M.J.C- Suspeito aqui de muita leitura, muitas dívidas por pagar. Concordas?

J.L.T.- Nenhum poeta vem ou faz-se do nada. Desconfiai sempre do poeta que diz que não lê para não ser influenciado por aquilo que lê. Não é, manifestamente, o meu caso – eu pratico uma espécie de canibalismo poético, em que tudo aquilo que leio é digerido e transformado em carne ( linguagem) própria. Um autor só o é quando possui um individualidade própria e um timbre inequivocamente seu. No meu caso, se ainda não o encontrei, estou próximo disso, tanto que não temo que os envios, glosas, citações, pastiches, sejam reconhecidos.
Se dívidas há – de certeza que as há – é no sentido de a leitura de todos os poetas me ter ajudado a ser o poeta que sou. E ser o poeta que sou é a minha maneira de saldar essas dívidas.

M.J.C.- Mas esse processo de incorporação é lento, moroso. Foi fácil para ti encontrares essa individualidade?

J.L.T.- Claro que não é fácil encontrar a individualidade poética, nem estou certo de tê-la encontrado já, porquanto, avesso a dogmas teóricos ou poéticos, o que me caracteriza enquanto poeta é uma permanente disponibilidade para a mudança, mantendo, no entanto, aqueles traços mínimos que permitem identificar um rosto.

M.J.C.- Que poetas se atravessaram mais no teu caminho?

J.L.T.- Para a formação de um poeta concorrem vários álveos, nem sempre fáceis de identificar. No entanto, posso dizer que os meus processos de escrita devem muito à leitura dos textos teóricos e poéticos do Ezra Pound, mesmo quando deles divirjo; Rilke é uma referência importantíssima; mas o meu universo tem mais a ver com Nemésio, Seamus Heaney ou João Cabral de Melo Neto.

M.J.C.- Acaso se poderia encontrar na tua poesia a presença de um Herberto Helder? A força imagética de alguns poemas sugere essa leitura.

J.L.T.- O rastrear de possíveis genealogias é um escrutínio a que está sujeito todo o poeta que publique o seu primeiro livro. Herberto é, porém, para mim, uma referência e não uma influência. A sua poesia é um dos lugares cimeiros de reinvenção desta língua que é minha, apesar dos tempos de dieta metafórica que se vivem em Portugal; o seu «Photomaton&Vox» é o mais notável livro de teoria literária que já se publicou em portugal. A minha pulsão estilística, para meu desconsolo, corre por leitos bem menos magmáticos.

M.J.C.- Sei que conheces muito bem a poesia portuguesa. Qual é tua opinião acerca da chamada « nova poesia portuguesa»?

J.L.T.- Penso que a mais recente vaga de poetas veio quebrar alguns impasses que persistiam na poesia portuguesa. Nalgum deles avulta, aliás, um conseguimento prosódico e formal notável. Não devem é fechar-se num círculo em que o único critério é o de um gosto comum – não esqueçamos que alguns deste poetas são também críticos de poesia – por um universo urbano em derrocada, onde crescem as mais niilistas pulsões. O gosto é apenas uma via de acesso, não critério de juízo. O juízo é de natureza estética, é esta que permite a universalidade do juízo. (Convém não confundir questões de estética com questões de poética). Mas a necessária universalidade do juízo não pode ser dada a partir de uma categoria vazia. Com isso se autorizaria o crítico a julgar a obra a partir de um critério externo e pré-suposto. A verdadeira avaliação da obra é a consideração dinâmica que dela se faz, isto é, o confronto da obra tal como ela é com a obra tal como ela própria queria ser.

M.J.C.- Encontras algum diálogo na poesia cabo-verdiana com os poetas portugueses?

J.L.T. – Nalguns poetas cabo-verdianos – e não são muitos – há rastos de leituras seminais de poetas portugueses como Pessoa ou Jorge de Sena. Isso, porém, não é o mais importante. O que importa é a boa poesia que ali se produz em português, e não só.
É o caso do poeta João Vário que vem produzindo essa obra monumental a que deu o título de «Exemplos», ( indo já em doze volumes) à semelhança da «Poesia Vertical» do argentino Roberto Juarroz. O que me surpreende é a quase nula atenção que Portugal (e Cabo Verde) têm dedicado a esse notável criador. Espero que a atribuição próxima do prémio Camões venha pôr cobro, ainda que tardiamente, a tamanha distracção.

M.J.C. – Acreditas na inspiração? Ou suspeitas dela?

J.L.T. – Eu não sei o que é a inspiração. Se for um estado de luminosidade interior tal que nos tornamos apenas instrumento do ditado, não; mas se ela é tomada no sentido de estar obsediado pela coisa, à qual temos que dar expressão, aí sim, talvez a aceite.
Sei, porém, que mesmo a mais consciente deliberação pode ter na base um obrar subterrâneo completamente imperceptível, dando razão àquele dito de Espinosa de que ninguém sabe o que pode um corpo. No meu caso, a inspiração é procurada no trabalho metódico e continuado, avesso de qualquer bênção divina, da qual descreio.

M.J.C. - Este livro foi reconhecido pelo prémio Mário António da Fundação Calouste Gulbenkian. Que significado tem esse reconhecimento para ti?

J.L.T. – Um prémio não transforma uma obra apenas estimável numa obra de mérito. Eu sempre achei que tinha hipóteses, sem, no entanto, dar nada como adquirido porque, para além da subjectividade própria dos elementos do júri, este prémio tem uma vertente institucional e de consagração bastante acentuada. Tanto estava convicto dos méritos deste livro que, não tendo encontrado editor para ele em Portugal, avancei para uma edição de autor, vindo a ter uma recepção crítica e de público que nunca imaginei, nem mesmo nos meus sonhos mais coloridos.
Há ainda o lado material, que me vai permitir uma maior disponibilidade para os muitos projectos que tenho entre mãos e, provavelmente, tornar mais fácil encontrar editor para os próximos livros.

M.J.C. – E que futuros projectos são esses?

J.L.T. – Dois livros de sonetos, sendo que um deles é a revisitação do universo de Paraíso apagado por um trovão, um livro de ficção e um libreto.

M.J.C. - Faz sentido escrever livro de sonetos, actualmente?

J.L.T. – Tal questão pressupõe a distinção entre forma e formado, que em poesia não existe.
Eu não quero dominar uma fórmula e repeti-la ad nauseam. Depois de três livros escritos queria fazer alguma coisa que me colocasse dificuldades novas. Nesse sentido, o soneto pareceu a opção adequada. No entanto, bem vistas as coisas, esses poemas não são verdadeiros sonetos, mas contrafacções desta forma clássica (nos momentos mais auto-reflexivos, avulta um irrefreável desígnio paródico), na medida em que não me guio por um grande rigor métrico, mas sobretudo pela intuição prosódica. Se formos ver, esses aspectos formais, como as assonâncias, as rimas internas, as cesuras, os enjambements, ainda que de forma não sistemática, estão muito presentes na minha poesia.
Perguntar se faz sentido escrever sonetos hoje em dia, é como perguntar se faz sentido pintar paisagens, figuras humanas ou naturezas-mortas depois do abstracionismo. Ninguém pode ser um inovador se não tiver o mais alargado domínio da tradição.

M.J.C. – Como se dão o poeta e o ficcionista? Não são universos diferentes? A respiração entrecortada do poeta não se atrapalha na ficção?

J.L.T. – Espero que não se atrapalhem.

M.J.C. - Sei que vives há quinze anos em Portugal. Podes afirmar que és um poeta caboverdeano? Ou pode falar-se de um hibridismo, na tua obra?

J.L.T. – Sou poeta e sou caboverdeano. O ser caboverdeano está subsumido na condição de poeta. Clandestino na ditadura do mundo, como o definiu Herberto Helder, o poeta nunca é de um só lugar, de uma só língua, de uma só tradição. Híbrida e viajante é a sua condição, e, no meu caso pessoal, ainda mais, em decorrência do ethos, das peculiaridades históricas e do longo afastamento do solo pátrio.

M.J.C. - Por isso a melancolia do teu livro? Nostalgia como matriz fundamental?

J.L.T. – Eu não coloco as coisas em dois planos: um, da anterioridade vivida, outro, da posteridade rememorada através da escrita. É evidente que há imagens, sons, cheiros, cores pregnantes, mas se a memória é o lugar onde as coisas acontecem pela segunda vez, na arte é o lugar onde acontecem pela primeira vez. Não é o plano do vivido, da Erlebnis, mas o plano da linguagem e da invenção que importa. Doutro modo, estaríamos a colocar a criação poética na dependência de um modelo de que ela seria apenas um eco contrafeito.
M.J.C. – O poeta é, portanto, um taumaturgo, aquele que cria pela palavra?

J.L.T. – Estás a dizer que escrever um poema é análogo ao fiat lux divino? Em todo o caso, eu tento situar-me, pelo menos teoricamente, no plano da pura imanência, de modo a que a experiência da forma e do sentido surja liberta da influência do teofânico.

M.J.C. –Do que falas quando referes o ethos do poeta? Que função é a da poesia? Advertência? Insubmissão?

J.L.T. – A arte, dado que ela é poesia na sua essência poetante, é a única figuração possível da existência, na medida em que o vivido comporta uma opacidade que só a distância artística pode iluminar. Daí o seu carácter paradoxal: a arte tem de se afastar da vida para poder ser a sua expressão mais autêntica, ao mesmo tempo que mergulha nela constituindo-a como seu substrato. No entanto, em tempos de indigência, a missão do poeta é poetar sobre a vocação poética e sobre a essência da poesia. Ele é quem faz as perguntas fundamentais, e é o único dentre os mortais que pode descer aos abismos onde repousam os deuses foragidos.

M.J.C- Mas haverá ainda um lugar para o poeta na polis?

J.L.T- O poeta é um sismógrafo que detecta, regista as mínimas oscilações; vê aquilo que ninguém mais pode ver, não que seja um iluminado em sentido órfico, mas porque há nele uma clarividência amarga e triste, e uma secreta intimidade com as coisas e os seres.
Platão, que não era parvo nenhum, compreendeu bem a natureza da poesia – por isso a exilou da sua cidade ideal. Nessa condenação há um aspecto decisivo que não tem sido convenientemente explorado – o de que a soberania só reina sobre o que é capaz de interiorizar. Ainda hoje, cada ataque, cada mau juízo, apenas repetem os ecos dessa condenação primeira. Mas quer pensemos em termos de fundamento ( Heidegger), quer em termos de afundamento( Deleuze); quer de um ponto de vista axiológico, quer de um ponto de vista ontológico, a poesia está sempre primeiro, porque sendo doação, fundação e excesso, comporta em si o carácter não mediatizado a que chamamos o princípio.

M.J.C. – Aqui toca-se um aspecto caro à relação arte/vida. Concordas com a necessidade de um afastamento entre arte e vida? Isso não acarreta um desdobramento ou o contrário é que pode trazê-lo?

J.L.T. – No acto da criação, tem que dar-se a dissolução do sujeito empírico ou trivial, para que haja uma intensificação de forças – que o transforma em sujeitos fictícios – transportando-o para além do plano da existência comum. Há sempre um devir múltiplo no acto da criação estética.

M.J.C. – O poema deve, então, ser entendido como instância dramática?

J.L.T. - Desde os antigos gregos, pelo menos, que sabemos que toda a poesia é dramática. Assim a entendeu Goethe, e também o modernismo, para quem o sujeito elocutório do poema é uma máscara (persona), uma personalidade assumida pelo poeta para através dela veicular uma identidade que, na sua distanciação, expressa ideias cuja existência se objectiva no plano do poema, sem uma correspondência necessária com qualquer extravasamento da subjectividade pessoal do autor.
A literatura, como intuiu Deleuze, só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos despoja do poder de dizer eu.

M.J.C. – Portanto, já não é o poeta que fala, mas um eu cindido.

J.L.T. – Exactamente. Em Hegel, por exemplo, a auto-consciência era a verdade da certeza de si mesmo. Hoje apenas significa a reflexão do eu como perplexidade, como percepção da impotência – saber que nada se é. É desta impossibilidade de dizer eu (o eu da escrita é imanente à obra; constitui-se pelo acto da sua linguagem), deste estilhaçamento do sujeito que nasce a arte.

M.J.C. – As imagens poéticas que utilizas são muito intensas, como que procurando um correlato pictórico visceral. Outro aspecto é o modo como tangencias um certo surrealismo poético. Concordas?

J.L.T – Eu não lhe chamaria surrealismo – aliás, a minha técnica poética é exactamente o contrário daquilo que convencionalmente se designa por esse nome – porque essas etiquetas são sempre perigosas. Posso dizer, no entanto, que há um processo de saturação, uma espécie de exasperação verbal que rompe com a gramática e faz a língua gaguejar. O professor Alberto de Carvalho, da faculdade de letras de Lisboa, deu-se conta desse processo mas não conseguiu vislumbrar-lhe o alcance.

M.J.C. – Para além da abundância imaginativa, há o uso de vocábulos raros, outros já mesmo desaparecidos, que conferem uma certa elevação aos motivos mais triviais e corriqueiros.

J.L.T. – O ideal de grandeza e de elevação, que na arte é sempre um elemento ideológico, foi destruído desde que Van gogh pintou uma cadeira e uns simples girassóis. A partir daí tornou-se manifesto que autenticidade depende tão-pouco da grandeza suposta ou real do objecto da arte. Foi como que o abandono de uma estética do tema em favor duma estética da expressão. Este é um dos perigos que espreita este livro, e para o qual não me canso de chamar a atenção.
O que é decisivo na arte não é a imaginação tout court, nem sequer a imaginação criadora, a que damos o nome de fantasia, mas a sua configuração. É o domínio dos meios de expressão (que não é prévio ao expresso) que confere grandeza ou menoridade ao artista.

M.J.C. – Esta é uma visão claramente formalista.

J.L.T. – Não, não é. A não ser que estejas a pensar na forma como estrutura externa que é colocada sobre um material inerte. Há uma co-determinação entre estes dois aspectos. A matéria da arte só é enquanto matéria formada, o seu devir-arte; e a forma só é siginificativa enquanto rosto plangente da obra. E, no entanto, é evidente que sem aquele elemento de espiritualidade imanente seria puro artesanato.

M.J.C. – Voltemos um pouco atrás, para terminar: não é inevitável que a língua regresse sempre ao balbuciar de cada vez que é retomada pelo poeta?

J.L.T. – Cada poeta funda uma língua particular dentro da língua que é a sua. O acontecimento poético, melhor: o acto poético, como acto abismal, abala a língua pragmática nos seus fundamentos despojando-a do poder da conjunção. Daí que a linguagem poética não é a mais elevada, mas a mais rasteira, por estar perto do princípio e da origem.
Este ponto de vista relaciona-se com dois outros expendidos anteriormente. Primeiro: a verdade poética é uma verdade instável, sempre ligada ao seu acontecimento. Segundo: embora assumindo-se como fundamento, nega-se enquanto tal, devido ao seu carácter abismal.




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1 comentário:

Filinto Elisio disse...

ELOGIO DE SOPHIA E ESQUADRIA

por José Luis Tavares

E eras um nome. Com crepúsculos
e albas dentro. E princesas, marema.
Da grécia, sua nostalgia, fizeste tema.
Que toda a alta arte por sobre os séculos

voa. E teu justo nome era sabedoria.
A que na treva de um tempo escuro
cantou sempre o mais claro dia,
nessa língua agora despida de futuro.

Como numa invenção de braque, clara
linha os esteios que plantaste; ao fio
do tempo, seus ácidos óxidos. E brisas

suaves de verão onde a sombra avara,
mas, concreta, a claridade subindo o rio,
embora toda a alba prometida às cinzas.





INDÍCIOS DE CAOS


1.

Erro, dissonância, qualquer coisa
assim como uma desordem arterial.
(Como saber se a morte que poisa,
dedo em riste fuzilando a parietal?)

Eu, porém, confiava em vagos versos
(demasiados pra tão curtos sentimentos),
e é a eles que regresso, dedos lentos
soletrando essa litania de conversos,

em que o metro é o polícia sinaleiro,
quase divindade que em outra vida
hei temido (por isso este jeito mesureiro),

mas certeza alguma guia esta lida,
nem o medo derramando-se inteiro
sobre a escura trama a que chamam vida.



2.

Poesia é arriscar-se ao erro
sem blindagem ou armadura
não a procura da cor mais pura
mas no mais fundo fedido aterro

irmanar-se à noite escura
sua lei por obscura requer
lâmina metal não por seu ser
recesso mas porque sua luz crua

limpa da enxúndia da cultura
dá-lhe a condição de inculta pedra
ou de coisa que sobrou impura

como este soneto de incerto
metro negra matéria negra
que toda a noite me traz desperto *

• * Do livro « Agreste Matéria Mundo»