quinta-feira, 14 de outubro de 2004

Glosa, nota e pautas

«Vai, pensamento, vai viajar de navio»
Djavan


Podia ser glosa…

Da última vez que estive em Bissau, apercebi-me de que o centro do poder (ou dos poderes) não estava nem na presidência (interina, note-se), nem na prematura. Tão-pouco estava entre os legisladores. O poder estava nos quartéis. Ou, melhor dito, no estado-maior das forças armadas. Em consequência, o grande problema da Guiné-Bissau, ainda que custe acreditar, continua a ser de reconciliação. O desenvolvimento jamais chegará a uma sociedade irreconciliada. A morte continua a fazer das suas nesse chão e foi de cortar o coração ver o filho do general Veríssimo Seabra a espernear de desespero em cima do caixão do pai. E foi revoltante ver também os cúmplices, políticos e diplomáticos, a teatralizarem alguma decência no enterro do malogrado. A Guiné-Bissau, com golpes e contra-golpes, ficou com uma legitimidade complicada. Dir-se-ia ser preciso zerar o país. E dar as cartas de novo.

Nota…

E me presto a este à-parte, porque a Guiné-Bissau faz parte do meu eu (colectivo e individual) e sinto cá dentro o latejar das suas veias abertas. De resto, saíamos do buraco, da cloaca mental de termos olhos fechados para a Humanidade. Somos. Somos? Sejamos, aqui e agora, cidadãos do mundo…

Numa pauta…

Por mais que não queira, a Electra exige um texto à altura, algo como uma pedrada bem na testa do abuso e da incompetência. Exige-o até por um acto de cidadania. Para não dizer, de soberania. Ou, então, do novo – mas história do arco-da-velha que se tornou o dito – aeroporto da Praia. Ou mesmo, do fulano que desanca no Ludgero Andrade, sem civismo nem gramática, como se as nossas necessárias (e saudáveis) contradições tivessem de ser levadas a fio de espada. Civilização? Em verdade, assuntos não me faltam, ainda que indecorosos alguns, para destilar a prosa e cumprir a loisa. Só que no âmago, que é a solidão interior, ao cronista o repto é das belas letras, deixando as palavras tortas para os sindicalistas da vida (com devidíssimo respeito). Claro que não me é indiferente o Plateau desempedrado, entre a vã promessa do asfalto e do calcetamento. Tão-pouco fico despreocupado pelo aumento dos gafanhotos do deserto pelos Vales de Santo Antão. Se lágrimas ainda tenho, elas serão vertidas pelas boas causas e aquela, de apoiar gente nossa a vegetar nas roças de São Tomé e Príncipe, é uma delas. O Pranchinha insiste sempre em entrar na minha crónica, mas estou reticente. Falta-lhe meio-termo, sei lá bom senso, e, nesta meia-idade, já não há paciência para radicalismos. Nesta pauta, entro e saio como o cuco dos relógios, terei para o leitor a mágoa e o riso colectivos, mas…


Noutra pauta…

Nunca mais regressarei aos contos caudalosos da minha infância. Talvez pela ausência de tempo. Ou quem sabe pela presença dele. O tempo quer-se hoje electrónico, mais que dinheiro e para lá de megabyte. Só eu sei com que credo li Deus Deslizando atrás do Muro, de José Eduardo Agualusa, sorvendo no vagar de uma melopeia cada palavra, como se, de repente, tivesse baixado em mim o santo do antigamente. Ou, então, aquela canção de Djavan que diz «vai, pensamento, vai viajar de navio».

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