quinta-feira, 14 de outubro de 2004

Meu edipiano tributo à Dona Malvina

Mal entro em casa dos meus pais, a Dona Mindoca alerta-me sobre a morte da Dona Malvina, nossa vizinha de toda uma vida e mãe dos meninos que entram no filme da minha infância, com destaque para Emanuel, o meu dilecto. Triste, triste, triste, todo poema de Valentinous Rodrigues, recito mentalmente as primeiras palavras de «O Estrangeiro», de Albert Camus: a mãe morreu. Ponho-me, acto contínuo, a recordar as minhas idas quotidianas à casa da Dona Malvina, cujos refogados ainda hoje me encantam o olfact. E a sua voz – quando eram musicas da Igreja do Nazareno – solfejava, cristalina no labirinto da saudade, sobre a das filhas. De todas, Esther era a mais entoada…

Dona Malvina era uma figura simples, leve, singela. De um pacifismo de pássaro que lembrava a minha avó Amália. E pessoas assim são mundos incríveis. Têm de longe mais interesse do que os poderosos que fui conhecendo na vida. E o escritor, perdoem-me os deuses da esquina, deve olhar os olhos dos mansos de espírito e nunca aqueles que - Torga versejava «Era uma vez lá na Judeia, um Rei» - não gostavam de crianças. E como não ser cronista se, tal como os outros, o meu destino é severino? O meu lugar, um tanto indistintamente, é a ilha. E o cosmos. E o meu tempo – onde estaria a metáfora a dar horas, minha gente? -, é uma espécie de clepsidra que se esfuma na fina areia. Ao pó retornarei e sei-o de um molde quase abusivo. À fina areia que se extingue na simplicidade da vida.

Por tudo isso, Dona Malvina faz parte da minha história, porque a verdadeira história é aquela existencial. Eu abomino hinos e uníssonos, para o governo da navegação. Como bem-disse Albert Camus, a história oficial às vezes é como uma máquina pesada que esmaga a vida. Dona Malvina…a sua voz maternal – de todas as mães do mundo - ocupa um espaço aqui na minha memória. E se a perco, estas palavras já não são nada. Assim, esta memória é transferida como uma capacidade de resistência, entendida não como uma oposição a algo, mas, digamos, como uma necessidade de voltar a existir. E de olhar o mundo de outra forma…

Entrementes, em jeito tão-somente de epílogo, quis o meu amigo que eu cravasse os pés num continente e ficasse, certo e absoluto, dono de uma alma sem labirintos. Mas, fosse eu de assaz verve, sereno das verdades e apaziguado dos caminhos, outro, que não este, traria ao sol quotidiano o escrever destas linhas.

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