A Joilson Portocalvo, por falarmos as mesmas línguas:
a poética e a portuguesa.
Gosto de ficar silencioso à varanda e sentir a imperceptível alma das borboletas. Os leitores já alguma vez sentiram a alma das borboletas? Eu tenho-me tornado num homem distante. Em estado zen, procurando Nirvana. Tenho estado muito no meu canto e nunca dono das vossas enormes e caudalosas verdades. Não entro em tertúlias convosco para ganhar. Já agora ganhar o quê? Até tento partilhar o meu ponto de vista, numa de apenas colocar a minha mão amiga, deixando ao outro a sua opinião. Não vejo grandes motivos para vos impor a minha. E, em boa verdade, que diferença faz essa fugaz vaidade de vencer uma polémica? Das borboletas, queria sim…a alma.
Acontece que alguém toca clarinete no meu apartamento. É o CD de Geraldo Pessoa, tocando no meu Lap. Edith Piaff nos telhados de Ouro Preto. Acho que me enlouqueço neste vagar - trilogia tão psicótica quão filosófica: Deus, Tempo e Morte -, não apenas porque danço sozinho e há um ronrar debaixo da minha cama. Ou, no Albatrozberdiano, policiando os confrades meus textos e subtextos. Mas porque estou mesmo para o nostálgico, a querer a leveza das crónicas e, tal como Job, o sentir quanto pesa o mundo às costas. Clarinete no meu apartamento, dizia-vos. Esse Affonso Romano de Sant’ Anna, com quem partilhei a mesa na Bienal Internacional do Livro do Ceará 2006, em Fortaleza, e de quem me tornei quase confidente, queria une petite légèreté às minhas crónicas. Devo reconhecer que, mesmo estando estas mais fluidas ao clarinete, a vida é que me tem sido pesada.
A vida, isto de repente, é um lugar escuro. Está-se sob um absurdo cerco kafkiano. Apetece: sair por aí a disparar, como um desvairado? O orgasmo de calar uma metralhadora, esvaziando o seu tambor como num conto de Rubem Fonseca? Ainda bem que há hiato entre intenção e gesto. A parvónia ficaria menos desalmada? O Estado é o detentor do monopólio da coação, ora. Será que desarma o estertor e o cobertor das coisas por dizer? Tenho as minhas dúvidas, mas assino por baixo, a ter de ser o Leviatã, dialogasse Ele com todos. Outras vezes, a vida é a fluidez deste clarinete que toca agora a Dança das Árvores. E as árvores também dançam? Olhem que isto está cada vez louco.
O que leio? Mas isto é uma entrevista ou quê? Estou a ler um livrinho de bolso do meu novo amigo Joilson Portocalvo. O título é simplesmente genial: “Mamãe, deletaram a vovó?”. Sobre a doença de Alzheimer, que acomete a muita gente nossa, mas atribuída à senilidade da idade. Portocalvo dedica o textozito (diminuitivo que não configura depreciação, naturalmente) a pessoas que, sem se aperceberem, se ausentam e a quem aprende a suportar o vazio sem também se ausentar.
Poeta, eu? Um gato lá no alto, de Arménio Vieira, aquele que não atende, nem escuta a ordem de ninguém. Alguns toureiros, de João Cabral de Melo Neto, com mão serena e contida, sem deixar que se derrame, a flor que traz escondida. Ou, simplesmente, O Albatroz, de Charles de Baudelaire, que, exilado no chão, no meio da impura corja, as asas de gigante o impedem de andar. Estes são os meus versos implacáveis. Meus, porque da lavra dos poetas que eu gosto. Mas gosto mesmo é de ficar silencioso à varanda e pensar que o meu pai faz 81 anos em graça e arte em pessoa. Pressinto-o em estado da arte e isto me enlouquece de orgulho. A existência é uma dádiva de não sei que diga. Uma misteriosa dádiva, para além do bóson de Higgs.
No livro Fausto, de Goethe, o protagonista vai nestes termos “O fardo me constrita. A morte almejo, a vida me é mal quista”. Ao que Mefistófeles lhe responde: “Contudo, nunca é a morte aparição bem vista”. Neste momento, exacto como um ponto na estranha geometria da existência, Geraldo Pessoa toca (no meu Lap) Alma das Borboletas…
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