segunda-feira, 9 de junho de 2008

Duas cartas a mim mesmo no dia dos meus

1.

Descrê, meu amigo, dos rútilos usos
da palavra poesia — o animal
que lavra em ti move-se nos esconsos
lugares de penumbra,
afeito à íngreme maturação da fala.

O que perdeste, e agora recordas,
te seja doce precipício,
longe da comum expectativa
e seu eco mil vezes repetido.

Duvida do lugar que dizem
pertencer-te — perdidas pátrias
jamais havidas, a sombra do que
amaste ressumando em cada verso,
são a inóspita morada que te não protege
do naufrágio em estranhos portos e fronteiras.

Aí saberás que a dor é sem partilha,
e o cautério da luz requer essa íntima
cegueira que nenhuma alba fende
com o latido dos deuses diurnos.

A imperfeita medida destes versos,
seu ritmo sobressaltado, te ensinem
que a ignorância do que mais amas
é a razão desta arte de perder-se.


2.

Que razões sustentam o voo de um sino
declamando « a equação celeste do destino»?
Raros os dias em que a sina escura
não grafa nas veias uma lei mais dura.

Mas faz da tua vida uma arte de recusa:
da pátria, em que célere te amortalham,
tu que só nos versos os sinais que salvam
vislumbraste ( aos ór
fãos da antiga musa,

confortará qualquer placebo edulcorado);
da fama, que é a subtil cília com que
tentam domar teu verbo escuro. Giza

com a tua fala o incomum destino anunciado
nos levantinos portos de embarque — a vida
é o que desborda deste molde de decalque.



José Luis Tavares

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