(Seis imigrantes africanos morrem afogados a sul das ilhas Canárias, devido ao naufrágio da embarcação clandestina. Livros lidos e desafios à vista. Amanhece na cidade da Praia. Ontem, houve fogo de artifício. E eu numa melancolia de bom tamanho)
Zero
O editor e o leitor me perdoem a impertinência, mas hoje queria escrever em retrospectiva. Prometo ir e vir ao sabor do vento. Ao bom gosto do teclado, direi. Assim, como quem não quer a coisa….Uma das personagens do meu tempo era Balela (nome trocado, naturalmente), que fez grande carreira de vagabundo na cidade e tinha um português muito parecido a alguns deputados de hoje, teimosos em não levarem a oratória para o crioulo. Balela dançava no meio da praça, ao som da Banda Municipal, que, ao tempo, chamávamos de “musguêros”. Venham ver Balela a bailar o cha-cha-cha! E era a felicidade da meninada vê-lo dançar. A malta trocava o lanche de casa pela passada do dito e ficava a desoras a aprender as piruetas que o mesmo ensinava. Naquele tempo, a praça era um lugar bonito, ajardinado e alinhado. E o coreto ali imponente e o chafariz com repuxo de água. Outro tempo, aziago em muita coisa, mas em que o calcetamento não demandava cooperação internacional e outros trâmites cabeludos, sabe o leitor como são. E Balela era o rei e o senhor de tudo, porque elegante e amigo das crianças, vagabundo da primeira apanha, gente finíssima. Lembrei-me dele de repente e acho que estou a ficar velho. Ou, se tanto, a ficar mais rabugento e impaciente comigo próprio. Ou tão-só a morrer devagar. Arre, que estou numa melancolia de bom tamanho…
Amanhecendo
O amanhecer é um espanto. Da janela, temperados pela insónia, pedaços do luar banham o bocejar das horas. É-se feliz em lapsos de tempo. O resto é a mesmice que nos força à vigília. Apetece flutuar no imponderável e no improvável. Apetece saltar o cerco, correr, fugir e fazer dos confins um refúgio que seja…sonho. Ou, então, ficar calado, sereno e quieto à espera que as nuvens se dissipem sobre a manhã. Tremeluzem estrelas, ora em bocados de luz, ora em danças distantes. O que dirá o Zodíaco desta minha vida? O que será traduzido nos horóscopos e noutras leituras de premonição? Silva o vento, uiva o cão e canta o galo. Este último canta para contrariar a ideia de ser cosmopolita esta cidade. O gajo canta como um desaforado bardo e as galinhas, ensonadas ainda, convencem-se do atavismo entre o canto e o amanhecer. Mas as manhãs não cantam, mesmo que os nossos pequenos deuses prometam, de mãos juntas, acordes, ritmos e melodias. Tudo não passa de um ciclo que a cada volta de expande e deixa na minha solidão o travo da morte. Tudo é falso, falácia, ilusão. Ou, quem sabe, incandescente verdade que não interessa. Enquanto isso, cá estou a testemunhar as horas que, monocórdicas, marcam o caminho das coisas. Espreito, da fresta da minha alma, e vejo a rua ainda deserta. Amanhecendo…
Leituras do mês
Embora Novembro tenha sido um mês estressante, pude ler três livros interessantes. Li, e recomendo, "Animal Tropical", de Pedro Juan Gutiérrez, escritor que afirma, em máxima irreverência que, mau grado o “global player” e o seu embargo arrogante, o povo cubano continua a fazer amor, a andar de bicicleta, a dançar salsa e a comer arroz com feijão. Outro livro excelente é “Os Limites da Interpretação”, de Umberto Eco, em discurso directo para o leitor semântico e o leitor crítico. O livro é composto de vários ensaios sobre a semiótica como instrumento matricial da interpretação. O terceiro livro (oferta do meu irmão António) é “Historias Mal Contadas”, de Silviano Santiago, crónicas saborosas, meio densas, meio soltas, como só uma certa geração de brasileiros sabe contar. Um dia, quando for grande, hei de escrever as minhas histórias mal contadas. Prometo-vos…
Desafios
Faltam cumprir dois momentos essenciais, duas eleições importantes. À nossa maneira, apoiaremos os nossos candidatos, dando o máximo de nós, onde eventualmente sejamos mais úteis. Seria bom que cada cabo-verdiano defendesse a sua dama e consolidasse com isso o processo democrático. Pessoalmente, somos pelo PAICV e pelo Presidente Pedro Pires. Pelas bandeiras que defendem. Em prol de Cabo Verde. Não seria hora de falarmos nisso, pois o tempo das campanhas ainda não começou. Mas já há cartazes na rua, por incongruência ou provocação. O jeito é soltarmos todas – TODAS – as amarras. Uipooooooooo!
A festa acabou
E a festa acabou. Com muito cansaço e alguma saudade. Qualquer pecador teria o seu merecido descanso. Sombra e água fresca. Mas não. A vida continua. Dura, rasca e marra. Faltam erguer estátuas na minha cidade. Levantar vigas rente aos céus e desafiar a paisagem urbana. Aturdido pelo turbilhão de gente, entro no carro a cortar a marginal. O mar descansa um bocado. O imenso azul, o iodo nauseabundo e a espuma na areia. Uma ave marinha, branca, branca, branca. E, de regresso, passo em frente ao ilhéu de Santa Maria e a sua silhueta lambida na baía. É uma espécie de adeus. Dizem que em breve os chineses tomarão conta daquilo – uma decisão historicamente irresponsável e um negócio, no mínimo, da China. De facto, a festa acabou. Deixou de fazer sentido. Mas estou exausto. Na semana que vem continuo…
terça-feira, 29 de novembro de 2005
terça-feira, 22 de novembro de 2005
Da última marcha
Seja esta a última marcha e venha depois outro tempo. Em fila e em parada, como se fossemos militares. Blocos e mais blocos. Bandeiras. Cores e hinos. Seja esta a última revista e desça depois sobre nós a estação das flores. E de repente, termos sido o halo de uma breve fumaça. Esvoaçante. Livre. Para dançarmos ao crepitar dos fogos. Hirtos, lá vão eles a cantar o novelo dos dias. Cidade erguida agora com monumentos. Cidade de ruas incaracterísticas, onde a canalha urina e defeca nas esquinas. Cidade que amamos com, se necessário, sangue, acima de todas as outras. Cidade, toda ela útero, tomada de visco dos transeuntes. E dos automóveis enlouquecidos nas rotundas. Venha depois outro tempo e sejas para mim a dançarina misteriosa na praça vazia. E o resto, lua, luar, tua dança nua. Dessa nudez de última marcha…
Monte Birianda
Estive e nunca estive neste lugar. Há qualquer coisa de topo do mundo. Para além do falso horizonte das achadas e das várzeas. Vi o teu olhar nos olhos de muitas mulheres. E de muitos homens que, de soslaio, também miravam o desfiladeiro. Mentalmente declamei poemas desconexos. Bocados de Pessoa salpicados aos de Borges e os meus pobres versos de permeio. Este lugar tem música. Cada pedra guarda acordes inaudíveis e tu sabes o que significa música nas pedras.
segunda-feira, 21 de novembro de 2005
Monte Verde
Deu-me um branco. Um blackout na mente e, de repente, não vejo nada. Nesse relapso, o mundo parou. E tudo deixa de fazer sentido. Nem a tua mão faz sentido. Nem a rosa friorenta no alto do Monte Verde. Nem a portentosa baía e a frenética malha urbana. Nem o Vasco no seu tibetano exílio. Nem os falcões, nem as águias. Os corvos que grasnam pelas encostas. As pedras silenciosas à mercê da ventania. As nuvens vagarosas. Tudo a marcar o instante de nada. E esvai-se o branco. As cores regressam aos céus e algumas ilhas, e ilhéus, aparecem no painel do meu pensamento. E a tua mão recomeça a fazer sentido…
quarta-feira, 16 de novembro de 2005
Crónica tardia ou ninguém escreve ao coronel
(A campanha eleitoral aproxima-se. Tcheka ganha prémio em Dakar. José Maria Neves reafirma em Lisboa o papel geoestratégico de Cabo Verde. Chove. Chovendo mansamente, menina. Em Paris, nada está tão líquido. Há uma música de Caetano Veloso que não me sai do pensamento. Haverias de dizer que o desamparinho imortaliza. A nós, pelo menos…)
Monte Babosa
A solidão é uma espécie de espelho. Esse tempo que demora uma estrela cadente nos meus olhos. Mirada de transeuntes apressados, diria. Hora do rush. O sol a pôr-se em cores estivais. Pensar, de relance, em alguém. Fugaz o dia que acaba. E nunca mais regressa. Mesmo que na boca, sinta ainda o gosto do retorno impossível. No meio das pedras, uma insistente flor. A cidade estendida, do monte até ao mar. Sou andarilho de muitos mundos. Retirante…
Geração Pantera
A candura, a competência e o amor parecem ser os ingredientes de uma nova geração que, a força de expressão e a poesia deste tempo, chamaria de Geração Pantera. Orlando Pantera, o profundo Pantera, estivera uma vez no Instituto Cabo-verdiano de Menores à procura de emprego. A directora do ICM quis saber o seu currículo académico e ele respondeu não ter grandes estudos, mas que amava as crianças. Conta-o José Vicente Lopes num memorável texto sobre esse artista que mudou a música cabo-verdiana. Não estarei a exagerar se disser que há um antes e um depois Orlando Pantera, nem estarei a brincar se sublinhar de que mudou o tropos do cabo-verdiano. Quem é da Geração Pantera? Apenas músicos? Artistas? Penso que a malha é mais alargada. Em tempos, Mário Lúcio me dissera, na plena azáfama do Fesquintal de Jazz, que a revolução já estava instalada. Em todos os cantos do país. Em todos os quadrantes da nação. Basta ouvir José Maria Neves a discursar, a falar de amor, como um novo paradigma político. Experimente-se ver os quadros novos a projectarem o futuro. Até mesmo na economia o fenómeno está instalado. Geração da Independência. Noutra pauta, Geração Pantera…
Je danse avec l’ amour
Mayra Andrade, em dueto com Charles Aznavour, é simplesmente um luxo. Parcerias do tipo também ajudam a internacionalizar Cabo Verde. A multiculturalidade de um encontro assim traz à superfície uma série de coisas. Encontro de gerações, de géneros, de culturas, de estilos. Mayra Andrade e Charles Aznavour interpretam juntos Je danse avec l’amour. Album de Charles Aznavour. O da Mayra Andrade começou a ser produzido agora, em Paris. Aznavour canta o amor. Canta-o com beleza e sentimento. No melhor da canção romântica francesa. E hoje, como nunca, o amor deixou de ser meiguice para se afirmar como uma subversão do mundo. Estamos em tempos de terrorismos. Do Estado e do anti-Estado. Por isso, cantar o amor é cantar a paz, a existência, a vida. O amor de todas as formas. Agora veio-me à lembrança aquele conto de Woody Allen em que um professor da City College se evade para uma edição de bolso do Madame Bovary, de Flaubert, tanta era sua paixão por Emma. O protagonista sai de Manhattan contemporâneo para se refugiar em Yonville do século XIX. De todas as formas, dizia. Uma amiga confessava-me que todo o ser humano precisa fazer amor em Veneza. Quando não, em Porto Seguro onde a natureza é mais pródiga e o dólar vale muito mais. O ser humano precisa voar, rematava. Ícaro tinha razão. Ou, pelo menos, emoção…
Objectos transcendentes
Retirante, emociona-me que Tcheka tenha ganho o Prémio “Músicas do Mundo”, da RFI, em Dakar. A candura, a competência e o amor, Tcheka em pessoa. O resto, havendo campanha, ninguém escreve ao coronel. Agora que o sol morreu ou, quem sabe, ele seja vida noutro lugar, sei que a canção de Caetano Veloso se intitula Livros. Eis um cheirinho:
(…)
Apontando para a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo
(…)
Monte Babosa
A solidão é uma espécie de espelho. Esse tempo que demora uma estrela cadente nos meus olhos. Mirada de transeuntes apressados, diria. Hora do rush. O sol a pôr-se em cores estivais. Pensar, de relance, em alguém. Fugaz o dia que acaba. E nunca mais regressa. Mesmo que na boca, sinta ainda o gosto do retorno impossível. No meio das pedras, uma insistente flor. A cidade estendida, do monte até ao mar. Sou andarilho de muitos mundos. Retirante…
Geração Pantera
A candura, a competência e o amor parecem ser os ingredientes de uma nova geração que, a força de expressão e a poesia deste tempo, chamaria de Geração Pantera. Orlando Pantera, o profundo Pantera, estivera uma vez no Instituto Cabo-verdiano de Menores à procura de emprego. A directora do ICM quis saber o seu currículo académico e ele respondeu não ter grandes estudos, mas que amava as crianças. Conta-o José Vicente Lopes num memorável texto sobre esse artista que mudou a música cabo-verdiana. Não estarei a exagerar se disser que há um antes e um depois Orlando Pantera, nem estarei a brincar se sublinhar de que mudou o tropos do cabo-verdiano. Quem é da Geração Pantera? Apenas músicos? Artistas? Penso que a malha é mais alargada. Em tempos, Mário Lúcio me dissera, na plena azáfama do Fesquintal de Jazz, que a revolução já estava instalada. Em todos os cantos do país. Em todos os quadrantes da nação. Basta ouvir José Maria Neves a discursar, a falar de amor, como um novo paradigma político. Experimente-se ver os quadros novos a projectarem o futuro. Até mesmo na economia o fenómeno está instalado. Geração da Independência. Noutra pauta, Geração Pantera…
Je danse avec l’ amour
Mayra Andrade, em dueto com Charles Aznavour, é simplesmente um luxo. Parcerias do tipo também ajudam a internacionalizar Cabo Verde. A multiculturalidade de um encontro assim traz à superfície uma série de coisas. Encontro de gerações, de géneros, de culturas, de estilos. Mayra Andrade e Charles Aznavour interpretam juntos Je danse avec l’amour. Album de Charles Aznavour. O da Mayra Andrade começou a ser produzido agora, em Paris. Aznavour canta o amor. Canta-o com beleza e sentimento. No melhor da canção romântica francesa. E hoje, como nunca, o amor deixou de ser meiguice para se afirmar como uma subversão do mundo. Estamos em tempos de terrorismos. Do Estado e do anti-Estado. Por isso, cantar o amor é cantar a paz, a existência, a vida. O amor de todas as formas. Agora veio-me à lembrança aquele conto de Woody Allen em que um professor da City College se evade para uma edição de bolso do Madame Bovary, de Flaubert, tanta era sua paixão por Emma. O protagonista sai de Manhattan contemporâneo para se refugiar em Yonville do século XIX. De todas as formas, dizia. Uma amiga confessava-me que todo o ser humano precisa fazer amor em Veneza. Quando não, em Porto Seguro onde a natureza é mais pródiga e o dólar vale muito mais. O ser humano precisa voar, rematava. Ícaro tinha razão. Ou, pelo menos, emoção…
Objectos transcendentes
Retirante, emociona-me que Tcheka tenha ganho o Prémio “Músicas do Mundo”, da RFI, em Dakar. A candura, a competência e o amor, Tcheka em pessoa. O resto, havendo campanha, ninguém escreve ao coronel. Agora que o sol morreu ou, quem sabe, ele seja vida noutro lugar, sei que a canção de Caetano Veloso se intitula Livros. Eis um cheirinho:
(…)
Apontando para a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo
(…)
segunda-feira, 14 de novembro de 2005
Monte Babosa
A solidão é uma espécie de espelho. Esse tempo que demora uma estrela cadente nos meus olhos. Mirada de transeuntes apressados, diria. Hora do rush. O sol a pôr-se em cores estivais. Pensar, de relance, em alguém. Fugaz o dia que acaba. E nunca mais regressa. Mesmo que na boca, sinta ainda o gosto do retorno impossível. No meio das pedras, uma insistente flor. A cidade estendida, do monte até ao mar. Sou andarilho de muitos mundos. Retirante…
quinta-feira, 10 de novembro de 2005
Crónica tardia ou versos de estradas
(Lia-se Fernando Pessoa e a noite estava cálida, mas havia vento, um ventar que sabia à música, fiozinho de nada por onde as palavras navegam. Tirando o relógio, tudo era um conversar ao sabor dos momentos. O autor, serenado de tantas uvas, dirá que o vinho é tinto e que tudo é o que vem depois do Verbo. Assim diz o Livro, sabias?)
Estradas
Mas devo? Já estradas andado, começar a minha crónica tardia assim:
(…)
Alcantilado amarelo,
crua miragem, passei
crente do amor e alma
que haviam de jorrar
para os inocentes.
Mas quem me dava
inocência ou magia?
(…)
Não apenas pelos versos, estes últimos de Fiama Hasse Pais Brandão. Mas há estradas que marcam. O perder lugares tão-somente. E as paragens. Em momentos onde a lua se deleita na noite. Ou apenas suscitam madrugadas a desaguar em sol. É que há lugares parecidos connosco. Estradas andado, reparo que as tuas mãos seriam de atar pela jornada. E, quem sabe a dois (ou a sós, como tu dizes), eu sentisse menos náusea em tudo que seja vida. Mas adiante que há reaccionários reabilitados…
Os ditos reaccionários e as ditosas rosas
Ricardo Reis, dos muitos versos imortais, escreveu estes que são da minha cabeceira: Prefiro rosas, meu amor, à pátria/ E antes magnólias amo/ Que a glória e a virtude. Ora, isto é redutor, meus caros. Chegará a hora de zerar a dinâmica binária dos ditos e entender o mundo na sua complexidade reconciliadora. Os causídicos perdoem esta minha incursão por seara alheia, mas, convenhamos, que céu é grandi, mundu é largu. Este desabafo nada tem a ver com a nossa reconciliação, a desmerecer alguma verdade. Os heróis não se decretam. De resto, os reaccionários saíram mesmo de moda. E não se confunda mátria com pátria. Mas nem por isso deixarei eu de preferir as rosas. Quão ditosas. E de amar as magnólias…
Último acto
O velho continuava enfim o solilóquio. Agora saíste da varanda e entras no quarto. Não queres que te repita como foi, como não foi. Dizes que estou obcecado com isto. Talvez esteja, na minha pobre dimensão humana. Somos tão frágeis! Do pó viemos e ao pó iremos, inexoravelmente. Mas adiante. Resumia-se aquilo ao vemo-nos por aí. Uma frase sem grandeza para o adeus de qualquer coisa. E a foto de um farol. Mais precisamente do Farol D. Maria Pia. E seria preciso colocar as fichas sobre a mesa e estar na vida com alguma poesia. Não poderia ter sido apenas frisson, essa coisa na pele, o arrepio na espinha. Teria de ser mais compromisso. Com a vida. Naturalmente…
Mensagem II
Mas antes do encerrar da cortina, um intervalo para te contar do álbum Mensagem II, agora editado no Brasil, com os versos de Fernando Pessoa. Ao Mário Lúcio, músico nosso celebrado pela crítica internacional e, em paradoxo, apedrejado pela mediocridade caseira, coube a faixa D. Diniz, musicada pelo artista brasileiro, André Luis Oliveira. Pessoa escrevia, em Mensagem, e Mário Lúcio canta-o nessa linha:
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
o plantador de naus a haver,
e ouve um silêncio múrmuro comsigo:
é o rumor dos pinhaes que, como um trigo
de Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar,
e a falla dos pinhaes, marulho obscuro,
é o som presente desse mar futuro,
é a voz da terra anciando pelo mar.
E porque já estamos mesmo no fim desta crónica tardia, queria inaugurar daqui uma nova fase de escrita. Corpo e alma renovados pelo sopro da poesia. Ou da Arte, que é a melhor forma de amor. A melhor forma de achar um oceano qualquer…
Estradas
Mas devo? Já estradas andado, começar a minha crónica tardia assim:
(…)
Alcantilado amarelo,
crua miragem, passei
crente do amor e alma
que haviam de jorrar
para os inocentes.
Mas quem me dava
inocência ou magia?
(…)
Não apenas pelos versos, estes últimos de Fiama Hasse Pais Brandão. Mas há estradas que marcam. O perder lugares tão-somente. E as paragens. Em momentos onde a lua se deleita na noite. Ou apenas suscitam madrugadas a desaguar em sol. É que há lugares parecidos connosco. Estradas andado, reparo que as tuas mãos seriam de atar pela jornada. E, quem sabe a dois (ou a sós, como tu dizes), eu sentisse menos náusea em tudo que seja vida. Mas adiante que há reaccionários reabilitados…
Os ditos reaccionários e as ditosas rosas
Ricardo Reis, dos muitos versos imortais, escreveu estes que são da minha cabeceira: Prefiro rosas, meu amor, à pátria/ E antes magnólias amo/ Que a glória e a virtude. Ora, isto é redutor, meus caros. Chegará a hora de zerar a dinâmica binária dos ditos e entender o mundo na sua complexidade reconciliadora. Os causídicos perdoem esta minha incursão por seara alheia, mas, convenhamos, que céu é grandi, mundu é largu. Este desabafo nada tem a ver com a nossa reconciliação, a desmerecer alguma verdade. Os heróis não se decretam. De resto, os reaccionários saíram mesmo de moda. E não se confunda mátria com pátria. Mas nem por isso deixarei eu de preferir as rosas. Quão ditosas. E de amar as magnólias…
Último acto
O velho continuava enfim o solilóquio. Agora saíste da varanda e entras no quarto. Não queres que te repita como foi, como não foi. Dizes que estou obcecado com isto. Talvez esteja, na minha pobre dimensão humana. Somos tão frágeis! Do pó viemos e ao pó iremos, inexoravelmente. Mas adiante. Resumia-se aquilo ao vemo-nos por aí. Uma frase sem grandeza para o adeus de qualquer coisa. E a foto de um farol. Mais precisamente do Farol D. Maria Pia. E seria preciso colocar as fichas sobre a mesa e estar na vida com alguma poesia. Não poderia ter sido apenas frisson, essa coisa na pele, o arrepio na espinha. Teria de ser mais compromisso. Com a vida. Naturalmente…
Mensagem II
Mas antes do encerrar da cortina, um intervalo para te contar do álbum Mensagem II, agora editado no Brasil, com os versos de Fernando Pessoa. Ao Mário Lúcio, músico nosso celebrado pela crítica internacional e, em paradoxo, apedrejado pela mediocridade caseira, coube a faixa D. Diniz, musicada pelo artista brasileiro, André Luis Oliveira. Pessoa escrevia, em Mensagem, e Mário Lúcio canta-o nessa linha:
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
o plantador de naus a haver,
e ouve um silêncio múrmuro comsigo:
é o rumor dos pinhaes que, como um trigo
de Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar,
e a falla dos pinhaes, marulho obscuro,
é o som presente desse mar futuro,
é a voz da terra anciando pelo mar.
E porque já estamos mesmo no fim desta crónica tardia, queria inaugurar daqui uma nova fase de escrita. Corpo e alma renovados pelo sopro da poesia. Ou da Arte, que é a melhor forma de amor. A melhor forma de achar um oceano qualquer…
quarta-feira, 2 de novembro de 2005
Variações em torno do Zero
A José Luís Tavares, poeta
Zero
Presumo que não tenhas entendido o nosso diálogo no 11º andar. Em verdade, era um solilóquio, do tipo que, a cada manhã, se tem diante do espelho. A multiplicidade da interpretação é o grande achado da crónica. E, depois, texto literário não pode ser tão óbvio feito receita médica. Faz parte do encanto trazer a realidade e a fantasia para a leitura, pois ambos são o mister do equilíbrio do leitor. E, já agora, do escritor. É no inusitado que consegues sorrir. Esse sorriso de sol a nascer, que eu gosto e me ajuda a viver. Confesso-te que, vez por outra, tenho tentações de escrever sobre o lixo na cidade da Praia, as crianças que mendigam à porta dos restaurantes e das prostitutas que animam a indústria da noite. Quando não, de escrever sobre as máquinas, em ode triunfal, a cortarem os caminhos da Circular da Praia, da necessidade imperiosa de termos nesta cidade um campus universitário ou de fazermos disto um “porto digital”. A cada quarta-feira, à beira da entrega do texto, o meu dilema é atroz. Estou sempre entre Março e Abril. Mas nada como a sensação de te fazer sorrir ensolaradamente. E, se me permites, recomeça a ler isto como se fosse um intervalo. De qualquer coisa. Por acontecer…
Intervalo
...Não, eu não quero apartar a acidez do fogo/ que me intranqüiliza e me devora/. Eu não quero ofertar em súplicas/ e depois morrer por uns olhos/ que me sugerem messalinas e lambris/ e depois me enforcam. Não. Eu não quero o suicida/ que se despenca do alto da torre. Eu me quero vida para te ofertar rosas/ e te colher a plenitude de espigas maduras. Eu me quero vida para semear o trigo do teu corpo/ e me ceifar em messes de espumas/ e sóis de hipocampos sazonados. (Dimas Macedo, poeta brasileiro)
Starbucks Frappuccino
Falei-vos já (sem a palanquina arrogância do General) de Satyricon, do grande Petrónio – a novela erótica, a menipéia sátira, o mimo da fábula milésia. Leiam-no, pois. Um livro referencial que nos ensina como a civilização romana sucumbiu aos seus próprios vícios. Um verdadeiro afresco contra a sandice do poder. Devia ser pré requisito para a política. Leiam-no e deixam dessa santa ingenuidade que, nestes dias, se tornou vil e aziago. Li-o, por acaso, num Café Starbucks, em Old Boston. Há algum tempo. Entre um frappuccino quente e uns biscoitos inocentes. Numa das tardes em que me apetecia falar com desconhecidos sobre o aquecimento global. Ou, simplesmente, as trafulhas de Nero. O Imperador…
Em tempos de Electra, arre
Mau, mau, mau. Chegou o tão esperado 31 de Outubro e nada de voo internacional directo no Aeroporto Internacional da Praia. Precisamos ter um observatório para saber o que falha. Quem falha. E porque falha. Nadou o oceano inteiro para morrer na praia? Que absurdo! Agora a sério, somos dois, três, mais de centenas de milhar com olho vivo nesse aeroporto de parto difícil. Agora, mais do que nunca, a questão é mesmo séria. Seríssima. E dela dependerá o sol. Dito assim com metáfora para que os chacais não tomem conta do menino. Mas, meu caros, demais faz mal.
Campanha à porta
Mal ou bem já se vive o ambiente da pré campanha. Está tudo a postos para o grande arranque. As sondagens, umas próximas da verdade, outras próximas da mentira, aparecem nas ruas. Apesar dos sinais contrários na Assembleia Nacional, espera-se uma campanha cívica, serena e elevada. Sem maledicência, nem terrorismos verbais. Apenas com projectos e programas para debater. Por isso, vai ser um Natal simplesmente e-s-p-e-c-t-a-c-u-l-a-r! Desta banda, o pessoal prepara-se para vitaminar a campanha e vassourar, uma vez mais, aqueles de triste memória. A festa promete ser bonita, pá. Não vá o diabo tecê-las…
Acontece
Neste momento, o XIº Colóquio Internacional dos Estudos Crioulos. Uma centena de estudiosos (crioulófonos e crioulistas) sobre a crioulística. De várias partes do mundo. Por uma semana, a Praia será a capital cultural da crioulística. Hora de reflectir sobre a oportunidade de valorização consequente da língua crioula, em prol da nossa identidade e cultura. Já agora introduzir a questão sobre a oficialização da língua cabo-verdiana, afrontamento cultural que demanda coerência política. Quais os entraves para a oficialização? A Constituição? A falta da padronização? O não consenso de um alfabeto? O conservadorismo de uma classe dominante? A ignorância das coisas? Os resquícios da colonização? A falta da vontade política? O bairrismo? Imposição da maioria? Imposição da minoria? Quaisquer sejam as razões (mesmo aquelas que a Razão não explica), temos de colocar as ideias em cima da mesa para um grande debate. Luzes, luzes, luzes. Por uma questão da cidadania…
Zero
Presumo que não tenhas entendido o nosso diálogo no 11º andar. Em verdade, era um solilóquio, do tipo que, a cada manhã, se tem diante do espelho. A multiplicidade da interpretação é o grande achado da crónica. E, depois, texto literário não pode ser tão óbvio feito receita médica. Faz parte do encanto trazer a realidade e a fantasia para a leitura, pois ambos são o mister do equilíbrio do leitor. E, já agora, do escritor. É no inusitado que consegues sorrir. Esse sorriso de sol a nascer, que eu gosto e me ajuda a viver. Confesso-te que, vez por outra, tenho tentações de escrever sobre o lixo na cidade da Praia, as crianças que mendigam à porta dos restaurantes e das prostitutas que animam a indústria da noite. Quando não, de escrever sobre as máquinas, em ode triunfal, a cortarem os caminhos da Circular da Praia, da necessidade imperiosa de termos nesta cidade um campus universitário ou de fazermos disto um “porto digital”. A cada quarta-feira, à beira da entrega do texto, o meu dilema é atroz. Estou sempre entre Março e Abril. Mas nada como a sensação de te fazer sorrir ensolaradamente. E, se me permites, recomeça a ler isto como se fosse um intervalo. De qualquer coisa. Por acontecer…
Intervalo
...Não, eu não quero apartar a acidez do fogo/ que me intranqüiliza e me devora/. Eu não quero ofertar em súplicas/ e depois morrer por uns olhos/ que me sugerem messalinas e lambris/ e depois me enforcam. Não. Eu não quero o suicida/ que se despenca do alto da torre. Eu me quero vida para te ofertar rosas/ e te colher a plenitude de espigas maduras. Eu me quero vida para semear o trigo do teu corpo/ e me ceifar em messes de espumas/ e sóis de hipocampos sazonados. (Dimas Macedo, poeta brasileiro)
Starbucks Frappuccino
Falei-vos já (sem a palanquina arrogância do General) de Satyricon, do grande Petrónio – a novela erótica, a menipéia sátira, o mimo da fábula milésia. Leiam-no, pois. Um livro referencial que nos ensina como a civilização romana sucumbiu aos seus próprios vícios. Um verdadeiro afresco contra a sandice do poder. Devia ser pré requisito para a política. Leiam-no e deixam dessa santa ingenuidade que, nestes dias, se tornou vil e aziago. Li-o, por acaso, num Café Starbucks, em Old Boston. Há algum tempo. Entre um frappuccino quente e uns biscoitos inocentes. Numa das tardes em que me apetecia falar com desconhecidos sobre o aquecimento global. Ou, simplesmente, as trafulhas de Nero. O Imperador…
Em tempos de Electra, arre
Mau, mau, mau. Chegou o tão esperado 31 de Outubro e nada de voo internacional directo no Aeroporto Internacional da Praia. Precisamos ter um observatório para saber o que falha. Quem falha. E porque falha. Nadou o oceano inteiro para morrer na praia? Que absurdo! Agora a sério, somos dois, três, mais de centenas de milhar com olho vivo nesse aeroporto de parto difícil. Agora, mais do que nunca, a questão é mesmo séria. Seríssima. E dela dependerá o sol. Dito assim com metáfora para que os chacais não tomem conta do menino. Mas, meu caros, demais faz mal.
Campanha à porta
Mal ou bem já se vive o ambiente da pré campanha. Está tudo a postos para o grande arranque. As sondagens, umas próximas da verdade, outras próximas da mentira, aparecem nas ruas. Apesar dos sinais contrários na Assembleia Nacional, espera-se uma campanha cívica, serena e elevada. Sem maledicência, nem terrorismos verbais. Apenas com projectos e programas para debater. Por isso, vai ser um Natal simplesmente e-s-p-e-c-t-a-c-u-l-a-r! Desta banda, o pessoal prepara-se para vitaminar a campanha e vassourar, uma vez mais, aqueles de triste memória. A festa promete ser bonita, pá. Não vá o diabo tecê-las…
Acontece
Neste momento, o XIº Colóquio Internacional dos Estudos Crioulos. Uma centena de estudiosos (crioulófonos e crioulistas) sobre a crioulística. De várias partes do mundo. Por uma semana, a Praia será a capital cultural da crioulística. Hora de reflectir sobre a oportunidade de valorização consequente da língua crioula, em prol da nossa identidade e cultura. Já agora introduzir a questão sobre a oficialização da língua cabo-verdiana, afrontamento cultural que demanda coerência política. Quais os entraves para a oficialização? A Constituição? A falta da padronização? O não consenso de um alfabeto? O conservadorismo de uma classe dominante? A ignorância das coisas? Os resquícios da colonização? A falta da vontade política? O bairrismo? Imposição da maioria? Imposição da minoria? Quaisquer sejam as razões (mesmo aquelas que a Razão não explica), temos de colocar as ideias em cima da mesa para um grande debate. Luzes, luzes, luzes. Por uma questão da cidadania…
Subscrever:
Mensagens (Atom)