sexta-feira, 30 de abril de 2010

Esse mar revisitado

(A palavra mar morreu há muito.
Esse mar, quem sentiu mar?
Mas tu, de acreditares em fénix e
nas cinzas dos caminhos, profanas.
Impiamente, profanas esta quietude)










Quando pronuncias a palavra mar
Este ilhéu diante de ti se liquefaz
E vira ele próprio metáfora e parte
Como onda para o abraço das terras...


Só de o teres ementado, os peixes
Saltitam no assombro das pedras
E as sereias saem, loucas das lendas,
E aproximam-se ao cio das marés...


As algas, limos, areias, espumas -, tudo
Soletra-lhe ali em maresia e de tão longe
Estará ele navio na solidão do mundo...


Nesse surrealismo tão bizarro e vão
Quão poemas de longe e de saudade
De repente, substantivos de quem os ouve...

 
Filinto Elísio

terça-feira, 27 de abril de 2010

Trípticos de ti e outros múltiplos

Sou uma pergunta


Vou deixar que o sol te queime no vagar e de mansinho. Leio-te Kaputi Kinjila e o sócio dele Kambaxi Kiaxi, uma fábula angolana, escrita por Luandino Vieira. O que me transfigura para além da conta e o que me amanha mais que a mágoa do sol-posto, és tu. Às vezes, não sei se 1) escrevo a poética dos nossos dias; 2) anoto a estes momentos, as horas todas e as hordas de as coisas acontecerem; 3) ou faço esse cronista de serviço entender o tanto de imbecil seu pensamento quanto de plagiada sua pena – quando não, já em múltiplos de ti, 4) retrato, por A+B, minha metafísica, o que meu inconsciente grita e, naturalmente, 5) denuncio as dores do mundo, não querendo que os homens sejam registados por códigos de barra. Outras vezes, nem isso. Estará ausente quem vos escreve, se calhar descendo ele, como Rimbaud, a uma Estação no Inferno. E podendo, julgando poder ao menos, ao seu inter-texto postar Ô Saisons, ô chateaux, por coevo exemplo. E, ainda, antes que de facto anoiteça, queria ler todos os livros que, embora essenciais, se lhes protele para mais tarde. Enfim, deixar que o sol te queime no vagar e de mansinho. Tenho sempre este porte universal e existencial. Intenções e achados estilísticos ou algumas notas desconjuntas – umas engraçadas, outras sem nenhuma graça. O resto em mim é poeta, senão pura dúvida. Escrevi a um amigo pelo Facebook, se tanto, serei um homem perplexo e que duvida. Sou um pouco Clarice Lispector: “Eu acho que sou uma pergunta”.

Também eu no Bateau Ivre

De azuis manchas de vinho e vómitos escuros, escrevo eu também Me_xendo no baú. Vasculhando o u. Aliteração eterna em u, como só tu podes ver. Métricas rebeldes e rimas sem censura. Escarnecidas, mesmo se enternecidas, palavras do meu glossário escabroso. Deve-se recusar à tentação ecóica de fazer mais que ao número a tragédia, já que viver é tomar uma bica transcendente e assistir esse pessoal a jogar xadrez na esplanada. Teria dito a Óscar Niemayer, nós subindo as escadas para a Suite 37, que o Poeta Arménio Vieira lhe prestigiara em verso. Mas quisemos nós, não caviar e champanhe, mas à meia garrafa de tinto e CD de Bau tocando no computador, prestigiar o arquitecto. E fazia então Brasília 50 anos e Ouro Preto celebrava mais uma Inconfidência Mineira.

Proezas e framboesas

A esfinge, quando avistada, vira pedra e seu rebrilhe. E o pessoal, esquecido a ser cidade da Praia, divide-se em actores-narradores, narradores-personagens e nadadores-salvadores. Destes, são os nadadores-salvadores a tribo dos cosmopolitas. À mesa do Café Sofia, claro. Quando avisada, mais em riso que em siso, a escrita (não a esfinge desta feita) é um confeito de proezas (umas) e framboesas (outras). O resto - de deixar que o sol te queime no vagar e de mansinho -, fica à sotaina seu denodo. E a pertinácia de tudo que te conto:


Kalumbinga kia kinjila
Kinjila uadiboto
Kalumbinga kia kinjila
Kinjila uadibondo…


É o que te leio, de Luandino Vieira. Não se percebe, que é quimbundo, mas tudo o que assim canta, me encanta. Mais que a mágoa de sol-posto. Não é bonito?

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Edith Piaff nos telhados de Ouro Preto


Ainda dormitas. E sonhas com helicópteros ruidosos chegando a Ouro Preto. O bulício ancestral que a cidade guardava já não se resguarda em dia de feriado. O amanhecer inconfidente e pátrio, entre o barroco que dizes continuar e o Presidente Lula que não vem desta feita à cerimónia do passado, te faz sonhar ainda mais. Olho-te, pelo retrovisor do monitor azulado. Uma deusa, que és adormecida - azulada e suspirada, na pura altivez do sono -, com os teus sonhos de helicópteros e, de repente, sirenes, quando não tantos e renitentes sinos das múltiplas igrejas. Como amo gente tão criativa. Ainda ontem, em Lavras Novas, onde tua metáfora se esconde, falávamos dos Ad Vinhos – meus licores e teu amigo Admilson. Mas o amanho de um homem se passar, de apanhar mesmo pela rama qualquer um, era o tal boteco Batatas Freitas. Eu te mastigaria, ó palavra. Eu te comeria, ó nome da rosa. Com salada, picles e molho tártaro. Ontem ainda, era o show de Geraldo Pessoa. A música “Sentado na varanda pra ver Minas acordar” e uma borboleta na dança de ventre. Nesse corpo à volta do lúdico, queria me perder em ti e pelos caminhos do vento. Bichinha? Não, fruta. Sabes o nome da rosa? Leste aquele livro de Umberto Eco? E, nesta manhã, em verdade todas as manhãs são futuros desenhados, em que se canta a Inconfidência Mineira e tu dormitas (será que flutuas?), o solzinho que perfura e entra pelo quarto de Niemayer. Ainda dormitas e esse solzinho te namora os pezinhos de princesa. Com ansioso olhar de um lobo-guará, olhar-te muito. Para sempre. Muitíssimo. Em toda a longitude. Ouvindo o maquinar ruidoso dos helicópteros que sonhas...


in Tô arrumando os trem & essa fruta tá de quanto

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Praça da Liberdade


Tenho dó das estrelas, luzindo há também tempo

Luzindo há tanto tempo, tenho dó delas

Fernando Pessoa





É quando estamos no afã de “posto em sossego” que nos aparece o Cupido em sua fímbria e nos faz perdoar, sem esquecer todavia, o aceiro da parvónia. Aceiro que fede, diga-se em abono destas mal traçadas regras. E pelo que ali tresanda estamos então nós já conversados. É quando absortos estamos, numa cidade grande – inteira de cosmos, mas rodeada de serra, não fosse esta Belo Horizonte urbe de tantas, cada vez mais tantas, lembranças implacáveis -, na praça sendo, ou só fosse de Liberdade, o povo lhe querendo assim maiúscula. Que lhe coubesse, já agora, o próprio amor. Distraídos também estaremos de ver a flor de cacto e de alteá-la, em como se declina, sua pétala e resina. Seu mais viscoso mel e não me fales agora, antes que anoiteça, do suco de tudo. Tendes outra visão do mundo, mas o que bastaria ao poeta era poder abraçar o mundo todo. Ou, quem sabe, poder acender o luar à tanta lua baça que não alumia fiapos de angústias. Pois é, “posto em sossego”, não que tal flor, por um só dia no terraço do Padre Petricca, nos seja mais inebriante que tão espirituoso vinho, mas pelo acalento bom, o que nos saiba a lindas histórias de Júlia e Julieta, duas lindas gatas sob o altar de sua igreja, uma meiga em assaz felino olhar, outra assanhada e bola não dando ao cálix bento. A mão que me aperta. Será a estranha mão de Deus? Ou senão a tua mão delgada e esquia, com dedos de pianista? E essa boca, que degusta doce de banana e cajá manga será divina boca, aquela que nos eternizaria? Ou tão-somente tua boca louca, a que, profana, dá beijo de batôn na alma, no espírito e na carne? O resto, por encanto ou por recato, resumir este segredo à idade, tão confessional sendo o por natura de o fogo crepitar assim, volte o cronista à sua oficina de gradear o tempo. A fealdade, dir-se-ia sem metáfora, de como Cronos vai devorando seus filhos. E a beleza com que, já distantes do que fora Éden, lhe volteie nesse devorar a não demora do beijo que a cidade é grande, todavia. Agora, balbuciante, no mais baixinho de quando se apaga a vela, solidão de quando só cantaria o esparso galo da aldeia. Nós também teríamos o dó das estrelas...

in Tô arrumando os trem & essa fruta tá de quanto

terça-feira, 13 de abril de 2010

Quem te tatuaria?

Quem,
          me_xendo no baú
          de tua tatuagem
desenhou-te
          (em lápis de cor
                 ou, sei lá, tinta da China)
negro dragão
          tão alva lua
                 e graciosa borboleta?

Quem,
          vasculhando-ú
          de tanta miragem
navegando-te
          (em teu corpo-delito)
pecou maçã
          tâmara
                e manga-rosa?

Sabê-lo ser alguém
de ditoso e de distante
(que é do vaga-lume sem sua noite?);

Sabê-lo,
por teus cantos, demorado
(como pão quente, chá de manjerico e milho novo);

Sabê-lo,
silente de guardado,
ou tão-somente silenciado
(tresandando sândalo e seu pecado)...

Ah, sem tanto alarde,
          desoficinar poesia
(e sabê-lo Deus, todavia);

Ah, mesmo que tarde,
seres lacre que sela
          carta já fechada à língua;

Seres, ainda que cifra,
toda a mensagem de olhos
          tua nuvem virando viagem...

Ou luar,
que comigo assim mexe,
agora que nua te pressinto

          re_mexendo...

sábado, 10 de abril de 2010

Outros sais na beira-mar (derradeira parte de um romance)

#12


Ainda sobre a cidade, Benjamim que até então pouco falara, pediu licença para nos ler uns versos do poeta José Luís Hopffer Almada. Era assim:

(…) Lembras-te, Lurdes/da cidade-capital/e de suas praças limpíssimas/imoladas sob a desdita sina/e dos sortilégios
do vitupério/dos vilipendiados signos/de secular capital
da colónia/renhidamente conservados? (…)

Benjamim perguntava pelo Turra, o cão, de repente desaparecido das nossas lembranças. Quis reeditar também aquela história rocambolesca do submarino imperialista, mais tarde baleia crivada de balas. Fez uma revisão sobre os apontamentos todos à sua mesa de trabalho e não compreendeu o porquê de ter sido escolhido para escrever este romance descontínuo. Se calhar, pelo seu amor reconhecido à cidade. Só que o apelo era ecuménico, não se resumindo à cidade ou ao arquipélago. Lídia, sabedora da história toda, haveria de guardar para si, as razões porque um cristão às vezes tem ímpetos de assassino. “O Velho Testamento se nos impõe como um axioma”, lá vinha o seu lado de matemático.Agora anoitecia. As estrelas, em zodíaco, iam para além da corola da lua. E à beira-mar, embora não o fosse, tudo continuava lânguido…quase inocente.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Frémito de tudo

1.
Estou em tempo de ansiedade. Muito trabalho sobre os ombros. Responsabilidade redobrada. Não pouca expectativa sobre o levantamento do contingente cultural. Saber quem (não) vive da economia da cultura. Gizar se a cultural, na amplitude da Nação, ajuda a sobreviver, a viver e mesmo a sustentar o PIB nacional. Identificá-la, não só pelas evidências, mas pelas percepções. Classificá-la, catalogá-la e indexá-la a uma estratégia económica. O frémito da cultura, pela sua materialidade e sua imaterialidade. Pela sua dissidência à matriz da "hard economy", pelo seu desvio, mesmo ao padrão, do que lhe impõe a estatística. Aplica-se-lhe o método SWOT? Qual o seu diagnóstico estratégico afinal? E a experiência dos outros, bem como um know-how já testado, em quanto nos seria valência? Ansiedade, que não desmotiva o trabalho, entretanto.

2.
Em Brasília, participarei de um evento no Instituto Camões/Centro Cultural Português, promovido pela Embaixada de Cabo Verde. Aceitei o prazer de lançar "Li Cores & Ad Vinhos", livro de poemas que publiquei em 2009, ao lado do "Marcos Cronológicos da Cidade Velha" do Historiador (e Embaixador) Daniel Pereira. De permeio, fazer três palestras - uma em Brasília e duas em São Paulo (mais precisamente na Universidade de São Paulo, onde também lançarei o livro) - sobre a literatura contemporânea de Cabo Verde, pelas mãos da Professora Doutora Simone Caputo Gomes.

3.
Já não tenho idade para contar o que me vai na alma. Às tantas, depois de tanto ler Pessoa, aprende-se que é bom (por bom agoiro, pelo menos) saber guardar "esse segredo que raras deusas têm escutado". Na ledice dos olimpos, fará este menor que já chamaria de parvónio, mas que de sua então "enjoada pátria" Eça de Queirós vaticinaria preciso "acordar o porco", é bom que as coisas mais íntimas continuem íntimas, sublimes, profundas...cheias de crença!

4.
Casimiro de Pina, colunista de serviço, a soldo de obscuros patrões, faz um texto em que, de entre vários mimos, me doura com "intelectual orgânico". Olhe que não, meu rapaz. Escrevo as coisas por convicção e moto próprio, por nelas acreditar e para expressar a minha cidadania que deus nenhum da flanaria há de calar. Está aqui a confundir uma relação causal, pois o meu texto não pede licença a ninguém, mas sim (sem arrogância alguma) impõe sentido (inclusive cívico) pela sua razão. Essa sua análise confusa, destoada, plagiada e hilariante do liberalismo, do socialismo, do marxismo e companhia, se é de análise em senso estrito, porque se exala a um grande disparate, é uma caixa tão  quadrada que não me retrata. Os seus patrões (que os tem), uma corja de inocente úteis, mas armados em mauzinhos em horas minguadas, lhe ensinaram mal. Faça, pois, um esforço para se elevar no debate das ideias (veja a fineza com que Péricles Barros, por exemplo, me faz o contraponto), pois deste lado ninguém vai se chafurdar na lama de tão franciscana ignorância (e sinecura) onde o meu rapaz chafurda...

5.
Vinícius, entretanto. Em tudo ao meu amor serei atento...

segunda-feira, 5 de abril de 2010

domingo, 4 de abril de 2010

A invenção do amor

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e
detergentes na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa
esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanhodo medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração
e fome de ternurae souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
Embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta
fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções paras os que auxiliarem os fugitivos

Chamem as tropas aquarteladas na província
convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos
Decrete-se a lei marcial com todas as suas consequências
O perigo justifica-o

Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade
É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-losantes que seja demasiado tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas

Sobretudo protejam as crianças da contaminação
Uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste
Inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo
Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação

Mas é possível que haja outros. É absoIutamente vitalque o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que se fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade
Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio
das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas

Procurem os guardas dos antigos universos concentracionários
precisamos da sua experiência onde quer que se escondam
ao temor do castigo

Que todos estejam a postos
Vigilância é a palavra de ordem
Atenção ao homem e à mulher de que se fala nos cartazes
À mais ligeira dúvida não hesitem denunciem
Telefonem à polícia ao comissariado ao Governo Civil
não precisam de dar o nome e a morada
e garante-se que nenhuma perseguição será movida
nos casos em que a denúncia venha a verificar-se falsa

Organizem em cada bairro em cada rua em cada prédio
comissões de vigilância. Está em jogo a cidadeo país a civilização do ocidente
esse homem e essa mulher têm de ser presos
mesmo que para isso tenhamos de recorrer às medidas mais drásticas

Por decisão governamental estão suspensas as liberdades individuais
a inviolabilidade do domicílio o habeas corpus o sigilo da correspondência
Em qualquer parte da cidade um homem e uma mulher amam-se ilegalmente
espreitam a rua pelo intervalo das persianas
beijam-se soluçam baixo e enfrentam a hostilidade nocturna

É preciso encontrá-los
É indispensável descobri-los
Escutem cuidadosamente a todas as portas antes de bater
É possível que cantem
Mas defendam-se de entender a sua voz
Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas

E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
Lhe lembravam a infância
Campos verdes floridos Água simples correndo A brisa nas montanhas

Foi condenado à morte é evidente
É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo assim desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta

Impõe-se sistematizar as buscas Não vale a pena procurá-los
nos campos de futebol no silêncio das igrejas nas boîtes com orquestra privativa
Não estarão nunca aí
Procurem-nos nas ruas suburbanas onde nada acontece
A identificação é fácil
Onde estiverem estará também pousado sobre a porta
um pássaro desconhecido e admirávelou florirá na soleira a mancha vegetal de uma flor luminosa

Será então aí
Engatilhem as armas invadam a casa disparem à queima roupa
Um tiro no coração de cada um
Vê-los-ão possivelmente dissolver-se no ar Mas estará completo o esconjuro
e podereis voltar alegremente para junto dos filhos da mulher

Mais ai de vós se sentirdes de súbito o desejo de deixar correr o pranto
Quer dizer que fostes contagiados Que estais também perdidos para nós
É preciso nesse caso ter coragem para desfechar na fronteo tiro indispensável
Não há outra saída A cidade o exige

Se um homem de repente interromper as pesquisas
e perguntar quem é e o que faz ali de armas na mão
já sabeis o que tendes a fazer Matai-o Amigo irmão que seja
matai-o Mesmo que tenha comido à vossa mesa e crescido a vosso lado
matai-o Talvez que ao enquadrá-lo na mira da espingarda
os seus olhos vos fitem com sobre-humana náusea
e deslizem depois numa tristeza líquida
até ao fim da noite Evitai o apelo a prece derradeira
um só golpe mortal misericordioso basta
para impor o silêncio secreto e inviolável


Procurem a mulher e o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua

No inquérito oficial atónito afirmou
que o homem e a mulher tinham estrelas na fronte
e caminhavam envoltos numa cortina de música
com gestos naturais alheios Crê-seque a situação vai atingir o climax
e a polícia poderá cumprir o seu dever

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
A voz do locutor definitiva nítida
Manchetes cor de sangue no rosto dos jornais

É PRECISO ENCONTRÁ-LOS ANTES QUE SEJA TARDE

Já não basta o silêncio a espera conivente o medo inexplicado
a vida igual a sempre conversas de negócios
esperanças de emprego contrabando de drogas aluguer de automóveis

Já não basta ficar frente ao copo vazio no café povoado
ou marinheiro em terra a afogar a distância
no corpo sem mistério da prostituta anónima
Algures no labirinto da cidade um homem e uma mulher
amam-se espreitam a rua pelo intervalo das persianas
constroem com urgência um universo do amor

E é preciso encontrá-los E é preciso encontrá-los

Importa perguntar em que rua se escondem
em que lugar oculto permanecem resistem
sonham meses futuros continentes à espera
Em que sombra se apagam em que suave e cúmplice
abrigo fraternal deixam correr o tempo
de sentidos cerrados ao estrépito das armas
Que mãos desconhecidas apertam as suas
no silêncio pressago da cidade inimiga

Onde quer que desfraldem o cântico sereno
rasgam densos limites entre o dia e a noite
E é preciso ir mais longe
destruir para sempre o pecado da infância
erguer muros de prisão em circulos fechados
impor a violência a tirania o ódio

Entretanto das esquinas escorre em letras enormes
a denúncia total do homem e da mulher
que no bar em penumbra numa tarde de chuva
inventaram o amor com carácter de urgência


COMUNICADO GOVERNAMENTAL À IMPRENSA



Por diversas razões sabe-se que não deixaram a cidade
o nosso sistema policial é óptimo estão vigiadas todas as saídas
encerramos o aeroporto patrulhamos os cais
há inspectores disfarçados em todas as gares de caminhos de ferro

É na cidade que é preciso procurá-los
incansavelmente sem desfalecimentos
Uma tarefa para um milhão de habitantes
todos são necessários
todos são necessários

Não sem preocupem com os gastos
a Assembleia votou um crédito especial
e o ministro das Finanças
tem já prontas as bases de um novo imposto de Salvação Pública

Depois das seis da tarde é proibido circular
Avisa-se a população de que as forças da ordem
atirarão sem prevenir sobre quem quer que seja
depois daquela hora Esta madrugada por exemplo
uma patrulha da Guarda matou no Cais da Areia
um marinheiro grego que regressava ao seu navio

Quando chegaram junto dele acenou aos soldados
disse qualquer coisa em voz baixa e fechou os olhos e morreu
Tinha trinta anos e uma família à espera numa aldeia do Peloponeso

O cônsul tomou conhecimento da ocorrência e aceitou as desculpas
do Governo pelo engano cometido
Afinal tratava-se apenas de um marinheiro qualquer
Todos compreenderam que não era caso para um protesto diplomático
e depois o homem e a mulher que a policia procura
representam um perigo para nós e para a Grécia
para todos os países do hemisfério ocidental
Valem bem o sacrifício de um marinheiro anónimo
que regressava ao seu navio depois da hora estabelecida
sujo insignificante e porventura bêbado

SEGUE-SE UM PROGRAMA DE MÚSICA DE DANÇA
Divirtam-se atordoem-se mas não esqueçam o homem e a mulher
Escondidos em qualquer parte da cidade
Repete-se é indispensável encontrá-los
Um grupo de cidadãos de relevo ofereceu uma importante recompensa
destinada a quem prestar informações que levem à captura do casal fugitivo
Apela-se para o civismo de todos os habitantes
A questão está posta É preciso resoIvê-la
para que a vida reentre na normalidade habitual

Investigamos nos arquivos
Nada consta
Era um homem como qualquer outro
com um emprego de trinta e oito horas semanais
cinema aos sábados à noite
domingos sem programa
e gosto pelos livros de ficção cientifica
Os vizinhos nunca notaram nada de especial
vinha cedo para casa
não tinha televisão,deitava-se sobre a cama logo após o jantar
e adormecia sem esforço

Não voltou ao emprego o quarto está fechado
deixou em meio as «Crónicas marcianas»
perdeu-se precipitadamente no labirinto da cidade
à saída do hotel numa tarde de chuva

O pouco que se sabe da mulher autoriza-nos a crer
que se trata de uma rapariga até aqui vulgar
Nenhum sinal característico nenhum hábito digno de nota
Gostava de gatos dizem Mas mesmo isso não é certo
Trabalhava numa fábrica de têxteis como secretária da gerência
era bem paga e tinha semana inglesa
passava as férias na Costa da Caparica.

Ninguém lhe conhecia uma aventura
Em quatro anos de emprego só faltou uma vez
quando o pai sofreu um colapso cardíaco
Não pedia empréstimos na Caixa
Usava saia e blusa
e um impermeável vermelho no dia em que desapareceu

Esperam por ela em casa: duas cartas de amigas
o último número de uma revista de modas
a boneca espanhola que lhe deram aos sete anos

Ficou provado que não se conheciam
Encontraram-se ocasionalmente num bar de hotel numa tarde de chuva
sorriram inventaram o amor com carácter de urgência
mergulharam cantando no coração da cidade

Importa descobri-los onde quer que se escondam
antes que seja demasiado tarde
e o amor como um rio inunde as alamedas
praças becos calçadas quebrando nas esquinas

Já não podem escapar
Foi tudo calculado
com rigores matemáticos
Estabeleceu-se o cerco
A policia e o exército estão a postos
Prevê-se
para breve a captura do casal fugitivo

(Mas um grito de esperança inconsequente vem
do fundo da noite envolver a cidade
au bout du chagrin une fenêtre ouverte
une fenêtre eclairée)

DANIEL FILIPE

sábado, 3 de abril de 2010

haicai 142

feriado da paixão
sal/mão na mesa reunida
vê jesus que tevê

jc.pompeu
Abr 2010

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Em nosso vão momento


Queria música, aquela que se arranca da imaginação e se instala, possessa dos arfares, nos respirares teu e meu. Queria, fossem acordes de Villa Lobos e de Egberto Gismonti. Ou Milton Nascimento cantando, baixinho, quase em sussurro, Guardanapos de Papel. Para que os caminhos do encontro tivessem sinuosidades melódicas. Que o frenesim dos nossos corpos, mesmo não se reflectido em dança nesse espelho, nos soubesse, entretanto, ao descaso de braços entrelaçados e à verdade de estarmos atordoados pela hipótese de lua. Bem que poderia ser uma canção napolitana. Às vezes, serviria um fado. Outras vezes, uma morna na fímbria das pensativas horas. Mas, sendo samba, bossa-nova ou tango, teremos de ter olhos cerrados e as nudezes declaradas. Ou quando a própria música diz “it’s time for slow dancing” e dançámo-la na síncope de um contra-baixo e à dolência de um trompete de Wynton Marsalis. Love and Broken Hearts, minha Princesa. Em momento de procura, se não como dizes do meu atrevimento, em que te emento esta loucura, juro que me serve, mais que qualquer verve, oh meu ledo devaneio que me reduz à rima pobre, realejo estranho serei este que se enamora. Faça-se lua ou não…