quarta-feira, 23 de março de 2005

Um tanto de tudo e um pouco de nada

As Mil e Uma Noites

Sheherazade e as Mil e Uma Noites sempre foram as minhas referências literárias fundamentais. As Mil e Uma Noites, porque a outra só se perde, no campo da complexidade estética, apenas pela Bíblia e o Corão. E concorre à minha cabeceira com Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes, e Mensagem, de Fernando Pessoa. Exagero um bocado, mas não estou longe da verdade. E Sheherazade, porque retém toda a minha fantasia da musa inspiradora e primordial da verdadeira literatura. Sheherazade, para mim, é o supremo poder da mulher, isto é, sedutora e sensual como a água das fontes na secura dos nossos múltiplos preconceitos. Agora que entramos na Semana da Cultura no Feminino, uma iniciativa do Ministério da Cultura, germinam cá dentro algumas inquietações em torno de conceitos como mulher, homem, feminino, masculino, feminismo, machismo e feminilidade. Grandes questionamentos se impõem. Como é que a mulher pode actuar num mundo masculino de uma forma não masculina? Como é que a mulher, que não produz o conjunto das regras de funcionamento do mundo, pode processar a sua própria emancipação? Antes de mais, a mulher deverá recusar a tentação — de ser homem — esse caminho dominante do "ser". O modelo de actuação masculino baseado neste amálgama milenar, responde a uma imagem legitimada do que é ser e isto tende a ser paradigma para certos feminismos, na linha na monossexualidade do discurso antropológico. Tudo isso, para dizer-vos, caros leitores, que a verdadeira libertação é do género e que todo o ser humano – o macho, na sua condição ulterior – guarda a sua condição feminina. A sua Sheherazade...

Ora Europa, ora África

Cabo Verde, por ser país pequeno e frágil, mas virtuoso e ambicioso, tem vivido ao longo da sua História a procurar âncoras. As suas elites, desde o antanho, procuram pensar a estabilidade destas ilhas a partir de matrizes exógenas, produtoras de valores materiais e imateriais que, com criatividade e fé no Além, sempre ajudam a sobreviver (e, em períodos mais excepcionais, a desenvolver). Mas essa procura está inscrita na nossa memória genética de um tropismo sincrético, de somatório de várias componentes, que, em certas horas, se afirmam e, noutras horas, se recusam. Ora Europa, ora África, quando não Europa e África. Ou mesmo Euroáfrica, passe o composto. Mas a questão é mais complexa do que parece. As ligações com o Brasil sempre friccionaram os nossos sentimentos mais íntimos. Eu gosto de você, Brasil, diria Jorge Barbosa no seu vate modal. A simbiose com Portugal lateja em nós e se consolida, mesmo quando, a medo da despersonalização, nos sentimos a entregar. Ou quando descobrimos que o negócio da Electra, com os olhos de ver mesmo, foi um grande negócio da China. Os ilustres Mário Soares e Adriano Moreira formulam hipóteses de entrarmos (periféricos ou de cabeça) na União Europeia e aí estamos nós, sem paciência nem tempo para analisar a prenda na sua condição e intenção, a dar vivas e alvíssaras. E a âncora também pode ser a Espanha – afinal já fomos também espanhóis, filipenses da silva, enfim. Pode ser a África do Sul e/ou Angola, pois, estes lá podem ter as suas grandes mazelas, mas são terras de ouro e de petróleo e isto, deixemo-nos de tretas, conta irremediavelmente. A Guiné-Bissau, agora dilacerada pelo momento histórico, será, como já foi aliás, um espaço para nós vital, razão porque temos de olhar para esse país vizinho (e irmão, diga-se pelas nossas informações genéticas, ora) com alguma prudência e proposta de complementaridade. Âncora, ainda que pareça absurdo. País pequeno e frágil, mas virtuoso e ambicioso, Deus nos há de ajudar nesta vocação de procura. O mundo é redondo afinal...

E agora América

Cabo Verde foi um dos 16 países premiados com os Fundos do MCA Estes países foram escolhidos, segundo o jornal Washington Post, por serem países pobres, mas democráticos, com a capacidade tácita de promover reformas económicas e sociais. A postura adoptada pelo governo de Washington, pode ser analisada como uma retomada das ideias wilsonianas de 1919 em que o conceito de democracia aliado ao conceito de segurança colectiva seria resultante de bons fluídos ao comércio. E nós com isso? Cabo Verde é o único país da África Ocidental que vive na estabilidade, no crescimento saudável e na cultura da paz. O único. Este estatuto nos aproxima naturalmente da América. Os EUA, que estão em guerra contra o terrorismo global, consideram que há uma ameaça sobre os seus cidadãos e sobre o seu território e que, face a ela, é essencial buscar outras sociabilidades e encontrar novos aliados. Tenhamos coragem de analisar as coisas de frente e de despir a lógica não-alinhada do tempo da Guerra Fria. O peso da antiga estrutura mental deve dar lugar a uma leveza de olhar, disposto a reformas e inovação que se impõem. Torna-se mister compreender que a relação entre Cabo Verde e os Estados Unidos deixou de ser a mesma desde o fim da Guerra Fria. Enquanto país de vocação atlântica, precisamos colocar acento na cooperação mais intensa com os EUA, sem pôr em causa os nossos múltiplos interesses. É que, sendo o mundo realmente redondo, se reforça o atavismo estratégico entre Cabo Verde e os EUA. Nem sempre se pode fazer poesia, ao fim e ao cabo...

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