quarta-feira, 2 de março de 2005

O Primeiro Dia

“O meticuloso exercício da escrita pode ser a nossa salvação”
Paula. Isabel Allende


O sinal da cruz

Tenho acompanhado, com angústia e admiração, as privações de João Paulo II. Como um asceta, ele aproxima-se da janela e faz o sinal da cruz à multidão vigilante. O gesto ritual ganha outro significado, porque, lá no fundo, todos sabem que o Santo Padre está na vertiginosa contagem decrescente. E, no âmago, ninguém sabe se para o salto noutra vida, dimensionada, crê-se, de mais pureza e santidade. Ou, se apenas regresso ao pó, vaticínio, algo como um destino, iniciado no Primeiro Dia. Angústia, não pela morte, axiomática como a luz, mas pela interrogação que traz a esta solidão peregrina. E admiração, porque na vida – e longe de mim a morbidez –, nada soa tão cristalina como um salto para o cronos e o caos da eterna idade…

Cavalheiro de fina estampa

Escrever, à minha resposta mais íntima, seria falar-vos aqui dos astros, dos vulcões e dos oceanos. Se o meu avô estivesse ainda vivo, o desfecho do meu livro seria outro. Intenso como era ele, havia de ter peso e espaço nesta história. O narrador teria até de pedir licença para vos conceder aos detalhes, pois, em termos de mesuras, o avô era mesmo um exímio. “Um cavalheiro de fina estampa”, repetia a minha tia mais velha. Rigoroso e erudito, o avô declamava, de cor e salteado, os cantos d´Os Lusíadas, de Luís de Camões, e contava, em miúdos, a tragédia da Assistência. E na minha história, introduzia-o como personagem central das incursões pelos inter-textos. A trama far-se-ia passear pelos 24 cantos e 12.000 versos hexâmetros com que Homero construiu o Odisseia. E daria, como ele sonhara, outro destino a Ulisses, náufrago recolhido na praia pela princesa Nausicaa. Havia de ter peso e espaço nesta história, porque, esquecido do primeiro dia, a minha mais recuada lembrança vê o avô na sua cadeira de baloiço, à porta da velha casa. E nesse quadro, ora ruidoso de meninos, ora bucólico de lua vaga, eu ali ficava a querer saber dos astros, dos vulcões e dos oceanos. E da seiva que, imperceptível, subia pelo tronco da velha espinheira, mais raquítica de que velha, diga-se. De ser esta saudade a minha grande metáfora…

Versos hexâmetros

Cada número uma palavra, assim faz o homem o seu próprio Oráculo, memorizando mesmo, no espaço, a sua memória do começo. E esta geometria lhe permite os versos hexâmetros com que vai vivendo os limites ou termos das coisas. O finito e o infinito, o limitado e o ilimitado, tudo geometricamente em harmonia, dirá o homem para que possa sonhar e criar. E vai sabendo isto do Génese: No princípio Deus criou a terra. A terra achava-se vazia, as trevas cobriam o abismo e o vento de Deus girava sobre as águas. Então, Deus disse “Exista a luz” e assim se cumpriu. Deus viu que a luz era boa, apartou-a das trevas, chamou à lua “dia” e às trevas “noite”. Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia…

O poderoso vinho

O Pranchinha, sempre a profanar a crónica, entra no texto e mostra-me um pasquim desta praça. O jornaleco vomita, da primeira à última página, a sua pestilência. Meu amor, morri ontem quando o tempo abrasado ao sol cambava atrás dos montes. Ísis, recolhe-me em pedaços e sopra os meus lábios de retorno à vida. Sou zapping desse espectáculo dos mitos. E quando se ama a matemática, o primeiro dia passa a ser uma condição incessante e quase sempre aleatória. No corredor tríade da vida, o primeiro dia é a impressão da memória. Os números não passam de uma feiticeira chamada Circe que, com o seu poderoso vinho, tem o dom de transformar os homens em bestas. E vice-versa…

Suma Teológica

Como diria São Tomás de Aquino, o número é a multitudo mensurata per unum. O Papa aproxima-se novamente da janela e faz o sinal da cruz à multidão…




Filinto Elísio

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