terça-feira, 15 de março de 2005

Blog Nota 6

Mais alma!!!

A cultura cabo-verdiana nunca precisou de bandeiras. Até porque ela precedeu a pátria. Tanto que no miasma da nação diasporizada, ela circula livre no espaço global, quando erigir, fará cair, o Muro de Berlim, ainda nem era sonho. Leiam Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Luis Loff de Vasconcelos. Leiam os de hoje: Mário Lúcio Sousa, João Varela, Onésimo Silveira e António Correia e Silva. Cabo Verde se afirma pela sua dimensão cultural, que não é grande, no sentido do peso e da medida, mas que é profunda e diversa. A peculiaridade da cultura cabo-verdiana reside, pois, no seu sincretismo antropofágico. Desde sempre. Muito antes do Movimento Claridoso, que, de repente, quase por decreto, virou nossa independência cultural. A cultura cabo-verdiana, para mim, sempre foi uma entidade que “come” todos os elementos culturais e processa-os de molde reinventado e, de certa forma, autónomo. Fê-lo desde a barbosiana “hora inicial” e a língua crioula é disso prova maior. Assim, a cultura cabo-verdiana nunca foi uma pedra de Sísifo, mas sim uma janela para o mundo, que é a nosso identidade lacto senso, imunizados que somos contra os zéfiros da descaracterização. A cultura cabo-verdiana nunca precisou de bandeiras, mormente quando afirmativas e patrulheiras. Precisa, sim, de cada vez mais espaço para a alma, como diria o imenso Orlando Pantera, nesta continuada afirmação da estética...

E a nossa estrutura desejante?

E o cabo-verdiano precisa mais do que nunca da estética, tanto como do pão para a boca. Mostra-nos a psicanálise que a função do belo perturba a estrutura do ser desejante diante do enigmático e inacessível. Para o ser psíquico a criatividade estética se configura como um acto e símbolo da realização. Bem dizia Diderot que a perfeição de um espectáculo consiste no seu poder de evocar uma aura da realização. Agora, o busílis da questão é sabermos, com firmeza, o que é a realização. Dou um doce. O debate ainda vai no adro. O dramaturgo João Branco disse-nos aquilo das crianças encantadas (e, quem sabe, transformadas) pelos encantos do teatro, uma realização que talvez transcenda à bizantinice de certas discussões. Gostei desse rasgo no Konbersu Sabi, da jornalista Matilde Dias. Os ilustrados e os iluminados que deixem os acantonados becos sem saída e venham à praça (pode até ser virtual) do diálogo. Vale escujurarmos a sina dos meios pequenos. Ou mesmo tacanhos, para que saibamos destrinçar o trigo do joio. Se, vez por outra, surgem tiradas brilhantes, aqui quase sempre o verbo tem sido chulo. Verborreia pelo esculacho. Quando não descamba para um bairrismo incompetente. Estamos literalmente naquele dilema de ou vai, ou racha. Dum lado, ficamos arreigados, orgulhosamente agarrados à pedra da tradição. Doutro, já sabemos que a cultura não pode ser a pedra de Sísifo, e a queremos solta como uma ave que voa. Pior são aqueles que vêm ao debate com a pedra na mão. E no coração, meu Deus. Assim fica difícil pensar que este país é de morabeza...

En souffrance

Eu seria um ser humano en souffrance, se me fosse privado saber de Nácia Gomi e de William Shakspeare, de José Luis Tavares e de Pablo Picasso, de Vasco Martins e de Wole Soyinka. Deixem-me curtir Kwame Kondé! Não se “avexem” que a 5ª Sinfonia de Beethoven me emociona! Aceso, integral e crítico, me sinto pronto para o grande diálogo. Pronto, porque estou descomplexado. De coração na mão. Pronto para dar e receber. Para apreender de tudo. Com todos. Mas palavra que não entendi aquilo sobre o índice de civilização. Falta-me entendimento em relação a certas questões. E, em remate final, indagaria: espelho, espelho meu, existirá alguma civilização “mais civilizada” do que a minha? Já Lévi-Strauss nos ensinara que a diferença cultural, não deve ser percebida como uma ameaça a ser destruída mas como alternativa a ser inter-cambiada. E eis que à negativa do espelho, meu espelho, se adensa a anuência da antropologia. Ou, aqui no âmago, a antropofagia...

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