sábado, 22 de setembro de 2007

Mostos de arrepia

Dir-te-ei, sem mágoa, meus presságios
Namorar teus olhos e comer teus olhares,
Lamber o adágio que incendeia teu corpo
Queimar-me na lenha dos meus desejos…

Dir-te-ei, sem flores, o que me demora
À roda de ti, da pedra ou de mim próprio,
O solstício das ameias, o fluir de areias,
Ora estrelas no vão, ora só tua geografia…

Nem frutas – do sabor de amora à resina
Com que as maçãs, proibidas, estão no cio,
E o sumo macio das quentes mangas…

Nem palavras (em sonoras eloquências)
Montadas, uma a uma, em revoada teia,
Serão presságios, ora mostos de arrepia…


Filinto Elísio

Ruínas

Remotas barcaças, pedaços de vime,
Carcaças de tartarugas, rugas de vidro,
Pegadas de ti ou de ninguém, pedras.
E velas que hasteiam tantos náufragos…

A solidão que principia o fulgor do mar,
Em tempo de estio e de chuva, o clamor
Das ondas no rendilhar das espumas
E as ruínas dos álamos e dos ventos…

Tudo isso és tu, sândalo de mim, atear
Teu fogo no cismado, no qual crepitam
Ânfora e querubim, incensos antigos…

Ardores e quero sim, grandes amores,
Astros nublados, armaduras e pecados,
Gretas e terrores, pescados dourados…


Filinto Elísio

À Morte do Artista

Metes-lhe a espada, deste lado e esgrimas,
Sempre, para lhe calar o coração e atordoas,
Nele, tudo o que pressentes ter certa cotovia,
Ressentes, depois, sua morte em lágrimas…

Renitente, à tua bússola faltará o norte,
Sem rei, nem roque ou de sorte tão pouco,
Será, se tanto, miragem esta tua viagem…

Oásis de sonhos, sendo reais os desertos,
Nereidas nas nuvens às putas dos portos
E moinhos de vento em páginas brancas…

Terás, sim, perdão no calvário dos mortos
E nesse purgatório, bula de tantas ancas,
Deusas vaporosas e palancas andaluzas…


Filinto Elísio

Madrigal em “Soncent”


Ao meu amigo Zeca Duarte


Os galos que cantam na baia adormecida
E as peixeiras aos pregões “cavala fresca”,
Levam a mesma métrica e a mesma clave,
Não se sabe se do dia ou da pura melodia…

Mas o que se conhece, não da madrugada,
Posto que arredia o amanhecer, é o solfejo
De haver, entre lua e sol, tal pejo do nada,
Como fosse nada a chave da idade do ser…

O resto, sendo sobras da cidade, a desdita
Dos burocratas e comandita, o estremecer
Das luzes e prenhe barro, esturro de tudo…

Espore na rosa ou na ninfa, pólen ou boca,
Esta hora louca de também só entardecer,
Quando e contudo, a vida se revela pouca…
Filinto Elísio

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

É quando apetece correr até ao infinito


É quando apetece correr até ao infinito,
Morrer, de manha, na praia, na montanha
Ou rir da Luz, do Sétimo Dia e do seu selo

Com que se constrói paralaxe no seu erro…

Poemas substantivos, palavras que são
Tudo menos adjectivos e complementos
De Musas sem lácio, assim cruas e nuas,
Querubim de seios e de estrelas no vão…

Outra poesia que não esta, algo que leve
E traga ao gosto desta fome, ida e volta
Que me não travem a sina de argonauta…

E eu fique, de tão segredo quão esfinge,
Odisseia ou périplo e de assaz degredo
Sem eira, nem beira, simples marginal…


Filinto Elísio

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Dispersão qualquer do sujeito

Desajuste

Ao vosso claro desajuste, acusavas esse homem de ser poeta. Preferias que ele fosse empresário, tropa ou funcionário público. Fosse ele bastonário de alguma ordem, deputado, médico ou mesmo psicólogo. Lobo do homem, se possível. Mas poeta, minha gente. Vá lá que o homem conseguia, a custo, ser amante. A sua conta bancária, um deserto. Dir-se-ia alucinado pela floresta das palavras. Um louco em todo o senso. Ao vosso mais que desajuste, dizia, queria ele que soubesses coisas como a dor de uma simples rosa e a ternura de um solitário da alma. Ser poeta é o susto das horas desiguais e dos lugares que sonhamos. Haverá para o poeta uma dispersão qualquer do sujeito à busca do objecto refractário da loucura. Como dizia Álvaro de Campos “Amanhã é dos loucos de hoje”.

Pedro Cardoso

Como encanta ler Pedro Cardoso. Sem óculos de Manuel Ferreira, naturalmente. Esse sentir Cabo Verde, tenhamos em mente, não foi invenção da Claridade. A bem dizer, ele perde-se na nossa memória ontológica. Tudo o que foi escrito pelos intelectuais do século XIX e os primeiros anos do século XX tem a ver com a problemática da terra. Na robusta prosa ou no inventivo verso, o espaço dos nativistas eram as ilhas com os seus dramas. Quando não, acções cívicas e com autodeterminação.

Existencial

Às vezes, pergunta-se qual a obrigação de amar este lugar sobre todas as coisas. Outras vezes, questiona-se isso de poeta com os pés fincados no chão. Em verdade, o poeta é o solitário de passagem. E a sua solidão é uma poeira suspensa. Ou o vagar da penugem em longa viagem. A solidão é nuvem, vista no silêncio desta janela. A lembrança do branco de um pássaro. A luz, meio fugaz, de uma outra claridade. A angustiosa página em branco. Sem poema, nem fonema…

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Há de também constar que amámos

Há de também constar que amámos,
Aqui, ali ou noutro lugar, outra galáxia,
Tempo, ora lesto que nem vento, ora lasso,
Vagar que se esvai, areia na clepsidra…

Ainda há de constar, além dos beijos,
Afagos e, do corpo, tantos incêndios,
O remanso de termos amado estrelas,
Luares de romance e sóis a poente…

O recorte dos montes e o que há do mar,
A pedra da hora, a contemplação pura,
O haver temperatura e olhares afinal…

Tudo fazer sentido ou só sendo caos,
O sussurrar no ante grito do silêncio,
E esse constar para a sintaxe dos dias…


Filinto Elísio

sábado, 8 de setembro de 2007

Trazenu lus pa lumia nos kaminhu

Lus

Não entro no âmago da questão, até porque boa música para mim significa o que me emociona e me faz voar. Às vezes, é música densa. Outras vezes, é uma simples melodia. Quase sempre, “Redemption Song”. Eu apreciei muito o disco “Lus”, de Nancy Vieira. Apreciei-o também pela singeleza e pelo minimalismo das composições. Além do mais, a interpretação de Nancy Vieira, como cantora, é soberba. Com o charme de Mayra Andrade, a garra de Lura e a candura de Sara Tavares. É música de Cabo Verde no seu melhor. Em clara idade…

Chermayeff

Lembro-me, como se fosse hoje, do dia em que conheci Peter Chermayeff, o grande arquitecto. Chegara a seu escritório da Cambridge Seven Associations, na zona da Universidade da Harvard, a norte de Boston, e preparava-me para a grande entrevista. A conversa discorrera sobre a Nação Cabo-verdiana e a sua formidável Diáspora, e o projecto (com a maqueta sobre a secretária) do Aquário do Mindelo. A empatia por ele foi imediata. Estava ali um homem simples, dialogante e culto. O artista, aliás arquitecto de artefactos náuticos e marinhos, maravilhado por projectar em Cabo Verde o maior aquário de toda a África. Ou, a melhor colecção de corais já organizada, inscrevendo Mindelo entre as cidades “aquarianas” do planeta. Tornamo-nos amigos e juntos lamentámos o mesquinho de certas (não) decisões…

Entre Nós


Nasceu, de parto natural e necessário, o jornal A Nação. Espero que este novo órgão de imprensa seja de facto uma pedrada no charco mediático cabo-verdiano. Que o jornal não seja editado pelos Estados Gerais dos partidos políticos, nem sirva de arma de arremesso deste ou daquele interesse. Com o meu cepticismo natural, não serei esse equilibrista em cima do muro. Antes pelo contrário, dou o benefício da dúvida aos promotores do projecto e faço a minha parte: Entre Nós – a coluna assinada por Filinto Elísio…

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Si ka badu, ka ta biradu


Monumento ao Emigrante
Cidade da Praia
Carlos Hamelberg & Filinto Elísio
Chuva à tua varanda
Mal refeito da síndrome do stress pós-férias, eis que me retorno ao quotidiano. Não foi fácil, mas cheguei à conclusão que a mesmice não paga o preço e que a felicidade é a metáfora que a vida nos concede. Em verdade, estando aqui ou na China, importam, antes de mais nada, a realização e a felicidade. Às vezes, é uma chuva miudinha ao largo do Chemin des Carabouts, em Genebra. Outras vezes, é a chuva mais intensa, pressentida na Av. Beira-Mar, em Fortaleza. Quando não é o cheiro à terra molhada em Portãozinho, Assomada, com gosto a pêssego. Chuva...é o que me encanta, à tua varanda.
Aos 150 anos
A Cidade da Praia vai celebrar os 150 anos, em 2008. Há um arquipélago de motivos para pensarmos a Praia nos próximos anos. Primeiro, porque é a capital de Cabo Verde. Depois, porque é o espaço urbano no mundo onde vive a maior parte dos cabo-verdianos. E ainda, porque é a babel possível de uma nação a ser possível. E, não menos importante, porque a Praia é imparável. Já nem nós a conseguimos parar. Quanto mais os outros. A celebrar, pois, os 150 anos e esta imparabilidade consequente...
Desta arte...
Jacques G., o meu amigo belga, aconselhava assim: "Nunca digas desta arte, não beberei". Na minha sala, quadros de Mito e de Mizá já me bastavam. As estantes com os livros podem ser claras, sim, a combinar com o resto. Por ser bibliotecário e bibliófilo, já estou a ver como arrumar tantos títulos. É que, em assomos de sonambulismos, percorro à noite as estantes a ver se as Virgens Loucas, de António Aurélio Gonçalves, não visitam Madame Bovary, de Flaubert. E se a barata de Metamorfoses, de Kafka, com textura de rinoceronte, não seja eu afinal a engatar as damas do Mar de Laginha, de Germano Almeida. Ficarei eu pelas estantes, ó musa. É a minha loucura...
Post Scriptum
Sei, sim, o que é ter saudades da tua guitarra. Não seremos lobos, bem como o estio de haver essa alcateia.