As Mil e Uma Noites
Sheherazade e as Mil e Uma Noites sempre foram as minhas referências literárias fundamentais. As Mil e Uma Noites, porque a outra só se perde, no campo da complexidade estética, apenas pela Bíblia e o Corão. E concorre à minha cabeceira com Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes, e Mensagem, de Fernando Pessoa. Exagero um bocado, mas não estou longe da verdade. E Sheherazade, porque retém toda a minha fantasia da musa inspiradora e primordial da verdadeira literatura. Sheherazade, para mim, é o supremo poder da mulher, isto é, sedutora e sensual como a água das fontes na secura dos nossos múltiplos preconceitos. Agora que entramos na Semana da Cultura no Feminino, uma iniciativa do Ministério da Cultura, germinam cá dentro algumas inquietações em torno de conceitos como mulher, homem, feminino, masculino, feminismo, machismo e feminilidade. Grandes questionamentos se impõem. Como é que a mulher pode actuar num mundo masculino de uma forma não masculina? Como é que a mulher, que não produz o conjunto das regras de funcionamento do mundo, pode processar a sua própria emancipação? Antes de mais, a mulher deverá recusar a tentação — de ser homem — esse caminho dominante do "ser". O modelo de actuação masculino baseado neste amálgama milenar, responde a uma imagem legitimada do que é ser e isto tende a ser paradigma para certos feminismos, na linha na monossexualidade do discurso antropológico. Tudo isso, para dizer-vos, caros leitores, que a verdadeira libertação é do género e que todo o ser humano – o macho, na sua condição ulterior – guarda a sua condição feminina. A sua Sheherazade...
Ora Europa, ora África
Cabo Verde, por ser país pequeno e frágil, mas virtuoso e ambicioso, tem vivido ao longo da sua História a procurar âncoras. As suas elites, desde o antanho, procuram pensar a estabilidade destas ilhas a partir de matrizes exógenas, produtoras de valores materiais e imateriais que, com criatividade e fé no Além, sempre ajudam a sobreviver (e, em períodos mais excepcionais, a desenvolver). Mas essa procura está inscrita na nossa memória genética de um tropismo sincrético, de somatório de várias componentes, que, em certas horas, se afirmam e, noutras horas, se recusam. Ora Europa, ora África, quando não Europa e África. Ou mesmo Euroáfrica, passe o composto. Mas a questão é mais complexa do que parece. As ligações com o Brasil sempre friccionaram os nossos sentimentos mais íntimos. Eu gosto de você, Brasil, diria Jorge Barbosa no seu vate modal. A simbiose com Portugal lateja em nós e se consolida, mesmo quando, a medo da despersonalização, nos sentimos a entregar. Ou quando descobrimos que o negócio da Electra, com os olhos de ver mesmo, foi um grande negócio da China. Os ilustres Mário Soares e Adriano Moreira formulam hipóteses de entrarmos (periféricos ou de cabeça) na União Europeia e aí estamos nós, sem paciência nem tempo para analisar a prenda na sua condição e intenção, a dar vivas e alvíssaras. E a âncora também pode ser a Espanha – afinal já fomos também espanhóis, filipenses da silva, enfim. Pode ser a África do Sul e/ou Angola, pois, estes lá podem ter as suas grandes mazelas, mas são terras de ouro e de petróleo e isto, deixemo-nos de tretas, conta irremediavelmente. A Guiné-Bissau, agora dilacerada pelo momento histórico, será, como já foi aliás, um espaço para nós vital, razão porque temos de olhar para esse país vizinho (e irmão, diga-se pelas nossas informações genéticas, ora) com alguma prudência e proposta de complementaridade. Âncora, ainda que pareça absurdo. País pequeno e frágil, mas virtuoso e ambicioso, Deus nos há de ajudar nesta vocação de procura. O mundo é redondo afinal...
E agora América
Cabo Verde foi um dos 16 países premiados com os Fundos do MCA Estes países foram escolhidos, segundo o jornal Washington Post, por serem países pobres, mas democráticos, com a capacidade tácita de promover reformas económicas e sociais. A postura adoptada pelo governo de Washington, pode ser analisada como uma retomada das ideias wilsonianas de 1919 em que o conceito de democracia aliado ao conceito de segurança colectiva seria resultante de bons fluídos ao comércio. E nós com isso? Cabo Verde é o único país da África Ocidental que vive na estabilidade, no crescimento saudável e na cultura da paz. O único. Este estatuto nos aproxima naturalmente da América. Os EUA, que estão em guerra contra o terrorismo global, consideram que há uma ameaça sobre os seus cidadãos e sobre o seu território e que, face a ela, é essencial buscar outras sociabilidades e encontrar novos aliados. Tenhamos coragem de analisar as coisas de frente e de despir a lógica não-alinhada do tempo da Guerra Fria. O peso da antiga estrutura mental deve dar lugar a uma leveza de olhar, disposto a reformas e inovação que se impõem. Torna-se mister compreender que a relação entre Cabo Verde e os Estados Unidos deixou de ser a mesma desde o fim da Guerra Fria. Enquanto país de vocação atlântica, precisamos colocar acento na cooperação mais intensa com os EUA, sem pôr em causa os nossos múltiplos interesses. É que, sendo o mundo realmente redondo, se reforça o atavismo estratégico entre Cabo Verde e os EUA. Nem sempre se pode fazer poesia, ao fim e ao cabo...
quarta-feira, 23 de março de 2005
sábado, 19 de março de 2005
Dia Mundial da Poesia - 21 de Março
Tabacaria
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocotte célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno — não concebo bem o quê —
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para àquem do lagarto remexidamente.
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Álvaro de Campos
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocotte célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno — não concebo bem o quê —
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para àquem do lagarto remexidamente.
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Álvaro de Campos
quinta-feira, 17 de março de 2005
Difícil ser funcionário
Difícil ser funcionário
Nesta segunda-feira.
Eu te telefono, Carlos
Pedindo conselho.
Não é lá fora o dia
Que me deixa assim,
Cinemas, avenidas,
E outros não-fazeres.
É a dor das coisas,
O luto desta mesa;
É o regimento proibindo
Assovios, versos, flores.
Eu nunca suspeitara
Tanta roupa preta;
Tão pouco essas palavras —
Funcionárias, sem amor.
Carlos, há uma máquina
Que nunca escreve cartas;
Há uma garrafa de tinta
Que nunca bebeu álcool.
E os arquivos, Carlos,
As caixas de papéis:
Túmulos para todos
Os tamanhos de meu corpo.
Não me sinto correto
De gravata de cor,
E na cabeça uma moça
Em forma de lembrança
Não encontro a palavra
Que diga a esses móveis.
Se os pudesse encarar...
Fazer seu nojo meu...
Carlos, dessa náusea
Como colher a flor?
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.
João Cabral de Melo Neto
Nesta segunda-feira.
Eu te telefono, Carlos
Pedindo conselho.
Não é lá fora o dia
Que me deixa assim,
Cinemas, avenidas,
E outros não-fazeres.
É a dor das coisas,
O luto desta mesa;
É o regimento proibindo
Assovios, versos, flores.
Eu nunca suspeitara
Tanta roupa preta;
Tão pouco essas palavras —
Funcionárias, sem amor.
Carlos, há uma máquina
Que nunca escreve cartas;
Há uma garrafa de tinta
Que nunca bebeu álcool.
E os arquivos, Carlos,
As caixas de papéis:
Túmulos para todos
Os tamanhos de meu corpo.
Não me sinto correto
De gravata de cor,
E na cabeça uma moça
Em forma de lembrança
Não encontro a palavra
Que diga a esses móveis.
Se os pudesse encarar...
Fazer seu nojo meu...
Carlos, dessa náusea
Como colher a flor?
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.
João Cabral de Melo Neto
terça-feira, 15 de março de 2005
Blog Nota 6
Mais alma!!!
A cultura cabo-verdiana nunca precisou de bandeiras. Até porque ela precedeu a pátria. Tanto que no miasma da nação diasporizada, ela circula livre no espaço global, quando erigir, fará cair, o Muro de Berlim, ainda nem era sonho. Leiam Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Luis Loff de Vasconcelos. Leiam os de hoje: Mário Lúcio Sousa, João Varela, Onésimo Silveira e António Correia e Silva. Cabo Verde se afirma pela sua dimensão cultural, que não é grande, no sentido do peso e da medida, mas que é profunda e diversa. A peculiaridade da cultura cabo-verdiana reside, pois, no seu sincretismo antropofágico. Desde sempre. Muito antes do Movimento Claridoso, que, de repente, quase por decreto, virou nossa independência cultural. A cultura cabo-verdiana, para mim, sempre foi uma entidade que “come” todos os elementos culturais e processa-os de molde reinventado e, de certa forma, autónomo. Fê-lo desde a barbosiana “hora inicial” e a língua crioula é disso prova maior. Assim, a cultura cabo-verdiana nunca foi uma pedra de Sísifo, mas sim uma janela para o mundo, que é a nosso identidade lacto senso, imunizados que somos contra os zéfiros da descaracterização. A cultura cabo-verdiana nunca precisou de bandeiras, mormente quando afirmativas e patrulheiras. Precisa, sim, de cada vez mais espaço para a alma, como diria o imenso Orlando Pantera, nesta continuada afirmação da estética...
E a nossa estrutura desejante?
E o cabo-verdiano precisa mais do que nunca da estética, tanto como do pão para a boca. Mostra-nos a psicanálise que a função do belo perturba a estrutura do ser desejante diante do enigmático e inacessível. Para o ser psíquico a criatividade estética se configura como um acto e símbolo da realização. Bem dizia Diderot que a perfeição de um espectáculo consiste no seu poder de evocar uma aura da realização. Agora, o busílis da questão é sabermos, com firmeza, o que é a realização. Dou um doce. O debate ainda vai no adro. O dramaturgo João Branco disse-nos aquilo das crianças encantadas (e, quem sabe, transformadas) pelos encantos do teatro, uma realização que talvez transcenda à bizantinice de certas discussões. Gostei desse rasgo no Konbersu Sabi, da jornalista Matilde Dias. Os ilustrados e os iluminados que deixem os acantonados becos sem saída e venham à praça (pode até ser virtual) do diálogo. Vale escujurarmos a sina dos meios pequenos. Ou mesmo tacanhos, para que saibamos destrinçar o trigo do joio. Se, vez por outra, surgem tiradas brilhantes, aqui quase sempre o verbo tem sido chulo. Verborreia pelo esculacho. Quando não descamba para um bairrismo incompetente. Estamos literalmente naquele dilema de ou vai, ou racha. Dum lado, ficamos arreigados, orgulhosamente agarrados à pedra da tradição. Doutro, já sabemos que a cultura não pode ser a pedra de Sísifo, e a queremos solta como uma ave que voa. Pior são aqueles que vêm ao debate com a pedra na mão. E no coração, meu Deus. Assim fica difícil pensar que este país é de morabeza...
En souffrance
Eu seria um ser humano en souffrance, se me fosse privado saber de Nácia Gomi e de William Shakspeare, de José Luis Tavares e de Pablo Picasso, de Vasco Martins e de Wole Soyinka. Deixem-me curtir Kwame Kondé! Não se “avexem” que a 5ª Sinfonia de Beethoven me emociona! Aceso, integral e crítico, me sinto pronto para o grande diálogo. Pronto, porque estou descomplexado. De coração na mão. Pronto para dar e receber. Para apreender de tudo. Com todos. Mas palavra que não entendi aquilo sobre o índice de civilização. Falta-me entendimento em relação a certas questões. E, em remate final, indagaria: espelho, espelho meu, existirá alguma civilização “mais civilizada” do que a minha? Já Lévi-Strauss nos ensinara que a diferença cultural, não deve ser percebida como uma ameaça a ser destruída mas como alternativa a ser inter-cambiada. E eis que à negativa do espelho, meu espelho, se adensa a anuência da antropologia. Ou, aqui no âmago, a antropofagia...
A cultura cabo-verdiana nunca precisou de bandeiras. Até porque ela precedeu a pátria. Tanto que no miasma da nação diasporizada, ela circula livre no espaço global, quando erigir, fará cair, o Muro de Berlim, ainda nem era sonho. Leiam Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Luis Loff de Vasconcelos. Leiam os de hoje: Mário Lúcio Sousa, João Varela, Onésimo Silveira e António Correia e Silva. Cabo Verde se afirma pela sua dimensão cultural, que não é grande, no sentido do peso e da medida, mas que é profunda e diversa. A peculiaridade da cultura cabo-verdiana reside, pois, no seu sincretismo antropofágico. Desde sempre. Muito antes do Movimento Claridoso, que, de repente, quase por decreto, virou nossa independência cultural. A cultura cabo-verdiana, para mim, sempre foi uma entidade que “come” todos os elementos culturais e processa-os de molde reinventado e, de certa forma, autónomo. Fê-lo desde a barbosiana “hora inicial” e a língua crioula é disso prova maior. Assim, a cultura cabo-verdiana nunca foi uma pedra de Sísifo, mas sim uma janela para o mundo, que é a nosso identidade lacto senso, imunizados que somos contra os zéfiros da descaracterização. A cultura cabo-verdiana nunca precisou de bandeiras, mormente quando afirmativas e patrulheiras. Precisa, sim, de cada vez mais espaço para a alma, como diria o imenso Orlando Pantera, nesta continuada afirmação da estética...
E a nossa estrutura desejante?
E o cabo-verdiano precisa mais do que nunca da estética, tanto como do pão para a boca. Mostra-nos a psicanálise que a função do belo perturba a estrutura do ser desejante diante do enigmático e inacessível. Para o ser psíquico a criatividade estética se configura como um acto e símbolo da realização. Bem dizia Diderot que a perfeição de um espectáculo consiste no seu poder de evocar uma aura da realização. Agora, o busílis da questão é sabermos, com firmeza, o que é a realização. Dou um doce. O debate ainda vai no adro. O dramaturgo João Branco disse-nos aquilo das crianças encantadas (e, quem sabe, transformadas) pelos encantos do teatro, uma realização que talvez transcenda à bizantinice de certas discussões. Gostei desse rasgo no Konbersu Sabi, da jornalista Matilde Dias. Os ilustrados e os iluminados que deixem os acantonados becos sem saída e venham à praça (pode até ser virtual) do diálogo. Vale escujurarmos a sina dos meios pequenos. Ou mesmo tacanhos, para que saibamos destrinçar o trigo do joio. Se, vez por outra, surgem tiradas brilhantes, aqui quase sempre o verbo tem sido chulo. Verborreia pelo esculacho. Quando não descamba para um bairrismo incompetente. Estamos literalmente naquele dilema de ou vai, ou racha. Dum lado, ficamos arreigados, orgulhosamente agarrados à pedra da tradição. Doutro, já sabemos que a cultura não pode ser a pedra de Sísifo, e a queremos solta como uma ave que voa. Pior são aqueles que vêm ao debate com a pedra na mão. E no coração, meu Deus. Assim fica difícil pensar que este país é de morabeza...
En souffrance
Eu seria um ser humano en souffrance, se me fosse privado saber de Nácia Gomi e de William Shakspeare, de José Luis Tavares e de Pablo Picasso, de Vasco Martins e de Wole Soyinka. Deixem-me curtir Kwame Kondé! Não se “avexem” que a 5ª Sinfonia de Beethoven me emociona! Aceso, integral e crítico, me sinto pronto para o grande diálogo. Pronto, porque estou descomplexado. De coração na mão. Pronto para dar e receber. Para apreender de tudo. Com todos. Mas palavra que não entendi aquilo sobre o índice de civilização. Falta-me entendimento em relação a certas questões. E, em remate final, indagaria: espelho, espelho meu, existirá alguma civilização “mais civilizada” do que a minha? Já Lévi-Strauss nos ensinara que a diferença cultural, não deve ser percebida como uma ameaça a ser destruída mas como alternativa a ser inter-cambiada. E eis que à negativa do espelho, meu espelho, se adensa a anuência da antropologia. Ou, aqui no âmago, a antropofagia...
sexta-feira, 11 de março de 2005
O mar tão-só à justa
Tão sentado quão me deslavo, vejo-te,
Tardos dos meus olhos, seja tempo
Esmaecido das nuvens ou das flores peregrinas,
Assim clepsidra musa das que crepita…
Aonde o périplo leva, ao tento breve e fogo,
Sobressalta na noite esta chama dos olhares,
Pedra em cripta que não sabes já, a rebrilhar
Quais estrelas lá longe da tua sombra…
Dou-te mais do que o mar para dar,
As praias íntimas de conchas mais secretas,
As gretas que sabem ao desponte da noite…
As luas que sobem ao musgo das grutas,
O escorrer impúdico nas veias das águas,
O mar tão-só à justa dos nossos corpos…
Filinto Elísio
Tardos dos meus olhos, seja tempo
Esmaecido das nuvens ou das flores peregrinas,
Assim clepsidra musa das que crepita…
Aonde o périplo leva, ao tento breve e fogo,
Sobressalta na noite esta chama dos olhares,
Pedra em cripta que não sabes já, a rebrilhar
Quais estrelas lá longe da tua sombra…
Dou-te mais do que o mar para dar,
As praias íntimas de conchas mais secretas,
As gretas que sabem ao desponte da noite…
As luas que sobem ao musgo das grutas,
O escorrer impúdico nas veias das águas,
O mar tão-só à justa dos nossos corpos…
Filinto Elísio
Blog Nota 5
Fragoso e Branco
Do debate…bem, do pretenso debate sobre o teatro em Cabo Verde, iniciado em boa hora, e com polémica, por Francisco Fragoso, salva-se, dum lado, a impressão de que novas luzes e outras dinâmicas começam a germinar; doutro lado, fica o travo de que continuamos provincianos e tacanhos. Numa rotação mais lenta da que este mundializado planeta, diga-se. Tanto Francisco Fragoso como João Branco muito fizeram, e fazem, pelo teatro em Cabo Verde. Torna-se, por isso, normal que, diante de tanta convergência, existam entre eles pontos (e pomos) de discórdia. Mas o inferno…são os claquistas de parte a parte. Estes continuam saudosistas, dependentes e bairristas, quando não racistas. E trocam farpas de levar por casa. Um verdadeiro festival do maniqueísmo e da mediocridade. Debater teatro é saudável e é isto que o país precisa. De um amplo debate cultural ao fim e ao cabo…
Espuma que já bateu na praia
Outro debate que desponta é sobre a oficialização do crioulo. E tudo indica que, contrariamente à Igreja Católica que, há muitos anos, deu à língua materna o estatuto litúrgico, a nossa dita intelectualidade treme nas bases. Muitos consagrados e com lugares marcados nos pequeníssimos pedestais, temem introduzir algo que os obrigue a repensar, a reaprender e a revalorizar. Será demasiado trabalho para uma intelectualidade que vê o mundo de um horizonte pequeno. Só que a oficialização do crioulo deixou de ser uma onda que se adensa, mas uma espuma que já bateu na praia…
Agora que a vida nasceu
Em verdade, Cabo Verde, agora que a vida nasceu, precisava ter disto tudo (e bem à Eduardo Pitta): os artistas «nascidos de cu para a lua», os «funcionários», os «mediáticos», os «velhíssimos», os «novos», os «novíssimos», os «urbanóides», os «do Partido», os «picantes», os «malditos», os «marginais», os «tardo-Dada», as «socialites-escritoras», os «laterais», os «colunistas», os «candidatos», os «jornalistas», os «psicoterapeutas», os «académicos», os «S/M», os «políticos», as «feministas», as «professoras», os «deputados», as «escritoras do Graal», os «gay off the record», os «palopianos», os «venéreos», os «crioulistas», os «fedorentos radical-chic», etc.
Da paz era o nome do largo
O largo por ironia chamava-se da paz. E eu, por redundância, quis fazer as pazes entre dois amigos. As circunstâncias (não importam aqui as razões) fizeram com que estivessem de costas voltadas. Nem conto nesta terra onde tudo se sabe. Mas estamos em tempo de criação, que diabo! E tempo não haverá para odiar tanto. O que sobra será do amor. Da amizade. Ledo o meu engano. Vociferantes e maldizentes, prontos para a primeira pedra. Para mim, bastou. O meu teatro é de tirar, e não colocar, a máscara. Saio para o Largo da Paz e sinto-me mais livre que nunca, embora triste pela perda. Por ironia, balbucio o nome da placa que dá nome ao largo…
Dá Fala
A revista Dá Fala foi lançada, com sublinhado frisson cultural, no Palácio da Cultura Ildo Lobo. É uma revista com gráfica solta, que desafia laudas, margens e sequências. Com um conteúdo múltiplo, ainda não totalmente definido, mas que se orienta para as artes, letras e ideias. Por tudo isso, é uma iniciativa bem-vinda que me lembrou, primeiro, a revista Ponto & Vírgula e, segundo, a folha cultural Sopinha do Alfabeto. Com Artiletra, já no mercado cultural há década e meia, Dá Fala é mais uma valência editorial. Num tempo em que as novas tecnologias também se derivam para o campo gravítico da cultura. Os blogs que o confirmem - Lantuna, Os Momentos e Aulil, entre os mais dinâmicos…
Do debate…bem, do pretenso debate sobre o teatro em Cabo Verde, iniciado em boa hora, e com polémica, por Francisco Fragoso, salva-se, dum lado, a impressão de que novas luzes e outras dinâmicas começam a germinar; doutro lado, fica o travo de que continuamos provincianos e tacanhos. Numa rotação mais lenta da que este mundializado planeta, diga-se. Tanto Francisco Fragoso como João Branco muito fizeram, e fazem, pelo teatro em Cabo Verde. Torna-se, por isso, normal que, diante de tanta convergência, existam entre eles pontos (e pomos) de discórdia. Mas o inferno…são os claquistas de parte a parte. Estes continuam saudosistas, dependentes e bairristas, quando não racistas. E trocam farpas de levar por casa. Um verdadeiro festival do maniqueísmo e da mediocridade. Debater teatro é saudável e é isto que o país precisa. De um amplo debate cultural ao fim e ao cabo…
Espuma que já bateu na praia
Outro debate que desponta é sobre a oficialização do crioulo. E tudo indica que, contrariamente à Igreja Católica que, há muitos anos, deu à língua materna o estatuto litúrgico, a nossa dita intelectualidade treme nas bases. Muitos consagrados e com lugares marcados nos pequeníssimos pedestais, temem introduzir algo que os obrigue a repensar, a reaprender e a revalorizar. Será demasiado trabalho para uma intelectualidade que vê o mundo de um horizonte pequeno. Só que a oficialização do crioulo deixou de ser uma onda que se adensa, mas uma espuma que já bateu na praia…
Agora que a vida nasceu
Em verdade, Cabo Verde, agora que a vida nasceu, precisava ter disto tudo (e bem à Eduardo Pitta): os artistas «nascidos de cu para a lua», os «funcionários», os «mediáticos», os «velhíssimos», os «novos», os «novíssimos», os «urbanóides», os «do Partido», os «picantes», os «malditos», os «marginais», os «tardo-Dada», as «socialites-escritoras», os «laterais», os «colunistas», os «candidatos», os «jornalistas», os «psicoterapeutas», os «académicos», os «S/M», os «políticos», as «feministas», as «professoras», os «deputados», as «escritoras do Graal», os «gay off the record», os «palopianos», os «venéreos», os «crioulistas», os «fedorentos radical-chic», etc.
Da paz era o nome do largo
O largo por ironia chamava-se da paz. E eu, por redundância, quis fazer as pazes entre dois amigos. As circunstâncias (não importam aqui as razões) fizeram com que estivessem de costas voltadas. Nem conto nesta terra onde tudo se sabe. Mas estamos em tempo de criação, que diabo! E tempo não haverá para odiar tanto. O que sobra será do amor. Da amizade. Ledo o meu engano. Vociferantes e maldizentes, prontos para a primeira pedra. Para mim, bastou. O meu teatro é de tirar, e não colocar, a máscara. Saio para o Largo da Paz e sinto-me mais livre que nunca, embora triste pela perda. Por ironia, balbucio o nome da placa que dá nome ao largo…
Dá Fala
A revista Dá Fala foi lançada, com sublinhado frisson cultural, no Palácio da Cultura Ildo Lobo. É uma revista com gráfica solta, que desafia laudas, margens e sequências. Com um conteúdo múltiplo, ainda não totalmente definido, mas que se orienta para as artes, letras e ideias. Por tudo isso, é uma iniciativa bem-vinda que me lembrou, primeiro, a revista Ponto & Vírgula e, segundo, a folha cultural Sopinha do Alfabeto. Com Artiletra, já no mercado cultural há década e meia, Dá Fala é mais uma valência editorial. Num tempo em que as novas tecnologias também se derivam para o campo gravítico da cultura. Os blogs que o confirmem - Lantuna, Os Momentos e Aulil, entre os mais dinâmicos…
quarta-feira, 9 de março de 2005
Gestos escusados
Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Pablo Neruda
Nosso fórum
O mundo está amedrontado pela justificada fúria da riqueza e do terror. E a questão essencial tem a ver com a Humanidade. E não apenas, como pretendem alguns, com a geo-política. E o sistema doutrinal (hoje globalitário e com filiação entre nós), que com a ideologia não se confunde, é aquele que legitima, sempre e a qualquer preço, a ordem dominante. Ora, temos de ser mais complexos e analisar, com parcimónia e sem fantasmas, este mundo que se arma em cão. É possível sim, nas ilhas e no cosmos, um novo mundo.
Adão desconhecido
Sempre que a Electra, por excesso de zelo ou de competência, nos falta com a energia eléctrica, facto frequente, pelo menos na capital do país, revejo mentalmente “Virgens Loucas”, de António Aurélio Gonçalves (o mestre da boa prosa) e fico à varanda, horas esquecidas, a ver as constelações. E tem sido assim, às escuras perante o firmamento, que me sinto grão de areia neste Universo e que me apetece escrever poesia. Na sala de visitas, a televisão apagada e a vela fragilmente acesa, exala um silêncio existencial. E, entre o ridículo que é o blackout da Electra (logo nesta cidade de maior demanda e de melhor receita!) e o romântico destas mãos para o vácuo, procuro, como no famoso quadro de Miguel Angelo, tocar os meus dedos aos de um Adão desconhecido...
Os astros de Neruda
Um dia, escrever-te-ei textos elegantes e excelentes. A minha literatura, então, será redimensionada pelo imperativo da beleza. Pela estética mais pura. As Belas Letras. Caudalosas prosas que, correndo o curso de um rio, extravasem suas águas no mar das palavras. Quem escreve, caro Pranchinha, quer no seu epitáfio apenas as datas de nascimento e de passamento; no seu obituário, acrescente-se-lhe que amou os seus filhos e as frutas serenadas da poesia. Quem escreve precisa de remanso e de descanso, algo como uma paz interior na seiva dos momentos. Um dia, havendo espaço para tanto, dir-te-ei como tiritam azuis os astros ao longe...
Doce Guerra
Apesar dos grandes avanços nestes 30 anos bem contados (e bem vividos), Cabo Verde - Doce Guerra, como vaticinou Antero Simas – continua a ser um país sob stress e sob o espectro da incerteza. Que os merecidos elogios, não nos façam esquecer esta secular contingência face à conjuntura internacional. No mundo interdependente e global, os frágeis, pequenos e pobres são menos iguais do que os outros. A esta hora importaria uma largada diferente, mais centrada na solidez endogénica e menos voltada para modismos importados. País insular, nação diasporizada e povo escolarizado, qual a próxima questão? Sustentabilidade parece ser a palavra-chave e a necessária procura. E qualidade a palavra de ordem (onde já ouvi isso?). Para o grande salto colectivo...
Slightly single
Caro amigo, nesta respiração assistida da solidão procuro sorrir. Para a manhã radiante. Ou, simplesmente, para o bom dia de um transeunte. Eu queria sentir agora, como nos versos de Fernando Assis Pacheco, uma paz assim fresca/ sem grandes gestos/ escusados. E eis que Neruda termina assim o lindo pórtico: Aunque ésta sea el último dolor que ella me causa/ y éstos los últimos versos que yo le escribo.
sexta-feira, 4 de março de 2005
Poema em linha recta
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Álvaro de Campos
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Álvaro de Campos
quarta-feira, 2 de março de 2005
O Primeiro Dia
“O meticuloso exercício da escrita pode ser a nossa salvação”
Paula. Isabel Allende
O sinal da cruz
Tenho acompanhado, com angústia e admiração, as privações de João Paulo II. Como um asceta, ele aproxima-se da janela e faz o sinal da cruz à multidão vigilante. O gesto ritual ganha outro significado, porque, lá no fundo, todos sabem que o Santo Padre está na vertiginosa contagem decrescente. E, no âmago, ninguém sabe se para o salto noutra vida, dimensionada, crê-se, de mais pureza e santidade. Ou, se apenas regresso ao pó, vaticínio, algo como um destino, iniciado no Primeiro Dia. Angústia, não pela morte, axiomática como a luz, mas pela interrogação que traz a esta solidão peregrina. E admiração, porque na vida – e longe de mim a morbidez –, nada soa tão cristalina como um salto para o cronos e o caos da eterna idade…
Cavalheiro de fina estampa
Escrever, à minha resposta mais íntima, seria falar-vos aqui dos astros, dos vulcões e dos oceanos. Se o meu avô estivesse ainda vivo, o desfecho do meu livro seria outro. Intenso como era ele, havia de ter peso e espaço nesta história. O narrador teria até de pedir licença para vos conceder aos detalhes, pois, em termos de mesuras, o avô era mesmo um exímio. “Um cavalheiro de fina estampa”, repetia a minha tia mais velha. Rigoroso e erudito, o avô declamava, de cor e salteado, os cantos d´Os Lusíadas, de Luís de Camões, e contava, em miúdos, a tragédia da Assistência. E na minha história, introduzia-o como personagem central das incursões pelos inter-textos. A trama far-se-ia passear pelos 24 cantos e 12.000 versos hexâmetros com que Homero construiu o Odisseia. E daria, como ele sonhara, outro destino a Ulisses, náufrago recolhido na praia pela princesa Nausicaa. Havia de ter peso e espaço nesta história, porque, esquecido do primeiro dia, a minha mais recuada lembrança vê o avô na sua cadeira de baloiço, à porta da velha casa. E nesse quadro, ora ruidoso de meninos, ora bucólico de lua vaga, eu ali ficava a querer saber dos astros, dos vulcões e dos oceanos. E da seiva que, imperceptível, subia pelo tronco da velha espinheira, mais raquítica de que velha, diga-se. De ser esta saudade a minha grande metáfora…
Versos hexâmetros
Cada número uma palavra, assim faz o homem o seu próprio Oráculo, memorizando mesmo, no espaço, a sua memória do começo. E esta geometria lhe permite os versos hexâmetros com que vai vivendo os limites ou termos das coisas. O finito e o infinito, o limitado e o ilimitado, tudo geometricamente em harmonia, dirá o homem para que possa sonhar e criar. E vai sabendo isto do Génese: No princípio Deus criou a terra. A terra achava-se vazia, as trevas cobriam o abismo e o vento de Deus girava sobre as águas. Então, Deus disse “Exista a luz” e assim se cumpriu. Deus viu que a luz era boa, apartou-a das trevas, chamou à lua “dia” e às trevas “noite”. Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia…
O poderoso vinho
O Pranchinha, sempre a profanar a crónica, entra no texto e mostra-me um pasquim desta praça. O jornaleco vomita, da primeira à última página, a sua pestilência. Meu amor, morri ontem quando o tempo abrasado ao sol cambava atrás dos montes. Ísis, recolhe-me em pedaços e sopra os meus lábios de retorno à vida. Sou zapping desse espectáculo dos mitos. E quando se ama a matemática, o primeiro dia passa a ser uma condição incessante e quase sempre aleatória. No corredor tríade da vida, o primeiro dia é a impressão da memória. Os números não passam de uma feiticeira chamada Circe que, com o seu poderoso vinho, tem o dom de transformar os homens em bestas. E vice-versa…
Suma Teológica
Como diria São Tomás de Aquino, o número é a multitudo mensurata per unum. O Papa aproxima-se novamente da janela e faz o sinal da cruz à multidão…
Filinto Elísio
Paula. Isabel Allende
O sinal da cruz
Tenho acompanhado, com angústia e admiração, as privações de João Paulo II. Como um asceta, ele aproxima-se da janela e faz o sinal da cruz à multidão vigilante. O gesto ritual ganha outro significado, porque, lá no fundo, todos sabem que o Santo Padre está na vertiginosa contagem decrescente. E, no âmago, ninguém sabe se para o salto noutra vida, dimensionada, crê-se, de mais pureza e santidade. Ou, se apenas regresso ao pó, vaticínio, algo como um destino, iniciado no Primeiro Dia. Angústia, não pela morte, axiomática como a luz, mas pela interrogação que traz a esta solidão peregrina. E admiração, porque na vida – e longe de mim a morbidez –, nada soa tão cristalina como um salto para o cronos e o caos da eterna idade…
Cavalheiro de fina estampa
Escrever, à minha resposta mais íntima, seria falar-vos aqui dos astros, dos vulcões e dos oceanos. Se o meu avô estivesse ainda vivo, o desfecho do meu livro seria outro. Intenso como era ele, havia de ter peso e espaço nesta história. O narrador teria até de pedir licença para vos conceder aos detalhes, pois, em termos de mesuras, o avô era mesmo um exímio. “Um cavalheiro de fina estampa”, repetia a minha tia mais velha. Rigoroso e erudito, o avô declamava, de cor e salteado, os cantos d´Os Lusíadas, de Luís de Camões, e contava, em miúdos, a tragédia da Assistência. E na minha história, introduzia-o como personagem central das incursões pelos inter-textos. A trama far-se-ia passear pelos 24 cantos e 12.000 versos hexâmetros com que Homero construiu o Odisseia. E daria, como ele sonhara, outro destino a Ulisses, náufrago recolhido na praia pela princesa Nausicaa. Havia de ter peso e espaço nesta história, porque, esquecido do primeiro dia, a minha mais recuada lembrança vê o avô na sua cadeira de baloiço, à porta da velha casa. E nesse quadro, ora ruidoso de meninos, ora bucólico de lua vaga, eu ali ficava a querer saber dos astros, dos vulcões e dos oceanos. E da seiva que, imperceptível, subia pelo tronco da velha espinheira, mais raquítica de que velha, diga-se. De ser esta saudade a minha grande metáfora…
Versos hexâmetros
Cada número uma palavra, assim faz o homem o seu próprio Oráculo, memorizando mesmo, no espaço, a sua memória do começo. E esta geometria lhe permite os versos hexâmetros com que vai vivendo os limites ou termos das coisas. O finito e o infinito, o limitado e o ilimitado, tudo geometricamente em harmonia, dirá o homem para que possa sonhar e criar. E vai sabendo isto do Génese: No princípio Deus criou a terra. A terra achava-se vazia, as trevas cobriam o abismo e o vento de Deus girava sobre as águas. Então, Deus disse “Exista a luz” e assim se cumpriu. Deus viu que a luz era boa, apartou-a das trevas, chamou à lua “dia” e às trevas “noite”. Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia…
O poderoso vinho
O Pranchinha, sempre a profanar a crónica, entra no texto e mostra-me um pasquim desta praça. O jornaleco vomita, da primeira à última página, a sua pestilência. Meu amor, morri ontem quando o tempo abrasado ao sol cambava atrás dos montes. Ísis, recolhe-me em pedaços e sopra os meus lábios de retorno à vida. Sou zapping desse espectáculo dos mitos. E quando se ama a matemática, o primeiro dia passa a ser uma condição incessante e quase sempre aleatória. No corredor tríade da vida, o primeiro dia é a impressão da memória. Os números não passam de uma feiticeira chamada Circe que, com o seu poderoso vinho, tem o dom de transformar os homens em bestas. E vice-versa…
Suma Teológica
Como diria São Tomás de Aquino, o número é a multitudo mensurata per unum. O Papa aproxima-se novamente da janela e faz o sinal da cruz à multidão…
Filinto Elísio
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