por Filinto Elísio
Mote
Escrevesse sobre o Natal na Praia de Santa Maria da Vitória. Mais precisamente, a natividade doutros tempos em que a cidade era uma urbe deste tamanho e eu, criança de esventrar suas ruelas, achava conhecer todos os seus moradores. Contasse a azáfama que era o mercado municipal na antevéspera da festa: os grunhidos dos leitões, os pregões das vendedeiras e o movimento perpétuo das compras. Retratasse o cheiro às fornadas, as montras luminosas e os coros ensaiados nas igrejas. E segredasse (aqui entre nós, ó pessoal) que o Natal do meu tempo era mais sabe, um presépio instalado na memória, quase um beijo furtado à inocência. E a cidade não tinha via rápida, centros comerciais, lojas chinesas, Sucupira, urbanizações modernas, essas coisas. Nem tinha a ambição de abraçar a Cidade Velha. Ou de fugir para o interior da ilha de Santiago. A Praia que cabia, pitoresca e no seu canto, nesta palma da mão…
Introduzindo a dúvida
E este desafio de escrever algo que não seja piegas, nem alienado. Ciente de que os tempos não são positivos: abusos, corrupção desenfreada, crises, violência, doenças, analfabetismo...o diabo? Sem muito Pai Natal, Reis Magos e veados na manjedoura, burrinhos romantizados remoendo palha, Estrela de Belém e quadros afins. Uma escrita na viagem da alma, se der....
Coda 1
Não queria também escrever de molde nostálgico e desanimado que o sentido do Natal está quebrado. Dizer-vos que tudo ficou hoje tão comercializado e calculista que já são inaudíveis os sinos a badalar na minha infância. Antes, ponho os olhos no telescópico de brinquedo e revejo, em caleidoscópio, o Natal de outros tempos. A Praia do antigamente! Prendas, cartões, bolos, decorações, festas, reuniões de família e Missa do Galo – ora, na Igreja Matriz, onde a liturgia era mais intensa; ora, na Igreja Nazarena, onde os cânticos tinham mais a ver com a alegria. Aliás, os Evangelhos rezam que o Nascimento de Cristo, cujo aniversário se comemora no Natal como nova de grande alegria…
Reverso
O peru, matava-se o gajo às bofetadas, depois de embriagado a vinho branco. Até certo ponto, e considerando o etílico, era morte desejada por muitos vagabundos da cidade. A meninada, porém, ficava horrorizada. O mesmo horror diante do leitão, assadíssimo da silva, com duas azeitonas nos olhos e umas salsas no colorau lodoso. E, para quem morava como eu na Rua do Hospital, o pior eram os gritos dos cabritos, arrastados pelas cordas na Rua da Horta, que pareciam crianças agonizantes. Como um gemido de escravo, sei lá, que por estas ruas aconteceu. Ou uma virgem, que nunca celebrou, a ver o poente em que o sol se torna regaço. Em Serpi, contou-me alguém, havia a tradição de sacrificar uma pessoa a cada festa (de preferência uma mulher). Mas antes do sacrifício, purificavam-na! E, de certa forma, escrever isto exorciza as súplicas que atravessam o passado…
Noite de Paz
Noite de Amor. E do Vinho do Porto. Das rabanadas, das azevias, dos filhoses de abóbora, ou das broas de mel. Os frutos. Entrementes, no gira-discos, Nat King Cole canta uma música natalícia. O bacalhau à Gomes de Sá, o leitão assado e o peru recheado eram a ementa preferida na noite da consoada. E à mesa, salpicada de rebuçados, eram as aletrias, nozes, figos, broas, amêndoas, castanhas e passas que faziam crescer água na boca dos convivas. Pais, irmãos, avós, tios, amigos, vizinhos, Noite de Paz num disco de vynil…
Luzes de néon
Tal qual o crepon dos papeis. A seda viscosa da solidão antiga. Pelas fraldas, como quem deambula pelas empenas da cidade, alguém está sozinho. Um belo dia, anos depois, uma grande avenida haveria de rasgar a noite mais fria. E tudo seria ornamentado de luzes de néon, com dizeres natalícios e cores alusivas. Alguém está perdido na cidade e no mundo. E come o pão que o diabo amassou. Dissonante da música e do júbilo pelo nascimento de Cristo. Distante dos jovens que tiram as Boas Festas. Estes dançam, pulam, rodopiam e fazem algazarra. Nho San José, Sagrada da Maria, tralalá e etc…Anos depois, a cidade haveria de cortar as amarras para se assumir metrópole, disforme, conforme o figurino da polis. E a solidão acentuada desse homem permaneceria numa estátua de pedra, absurda e feia, à beira dos dias!
Bedjo Natal ou tão-somente sonho
É claro que as crianças sonhavam com o Bedjo Natal. O Pai Natal, velhote, boémio, alegre de barba branca, associado a São Nicolau, bispo turco. Este, segundo a lenda, ajudava os pobres e as crianças, oferecendo-lhes presentes e dinheiro. A sua generosidade deu origem ao sonho segundo o qual visitaria a casa das crianças no dia do Natal para lhes deixar prendas. E um outro mote diz:
(…) Cantam anjos lá nos céus; trazem novas de perdão, graça eterna, salvação (…)
Coda 2
Para alguns, não há Natal sem prendas aos pés do pinheiro. É um culto comercial que rende muito dinheiro. Mas para a maioria, prendas é algo surrealista. Mais da metade do mundo vive na pobreza. E no nosso mundo, nesta nossa cidade queria dizer, também a pobreza grassa. De modo que o Natal tem de ser visto noutro prisma. Com óculos da realidade. O Natal, digam o que disserem, é um ritual do amor. A centralidade da vivência cristã está na festa da Ressurreição, Páscoa, mas é no Natal que o ar fica mais leve, as ruas ganham outras cores e as pessoas que se amam se tornam mais lindas. Os Evangelhos relatam que anjo anunciara: Não temais, porquanto vos trago novas de grande alegria. Nada está quebrado na Praia de Santa Maria da Vitória. Por isso, Boas festas, pessoal! Pois ainda há sempre o que comemorar…
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