terça-feira, 28 de dezembro de 2004

As palavras que me cercam

Filinto Elísio




Zero

Tem dias (seria verbo ter ou haver?) em que escrevo por uma afronta da alma – uma imperiosa necessidade de trazer para fora o que me vai cá dentro. E não venha algum leitor reclamar que isto é tribuna pública e não um muro das lamentações. Mas valha-nos Deus que tudo o vai na escrita, por mais colectiva que pareça, são interstícios existenciais. Depois, estamos às voltas com o fim-do-ano. É tempo de fazer balanços, reflexões, seminários da alma, coffee breaks das paixões, essas coisas. E, quem sabe, preparar o espírito para a cavalgadura de 2005, ora terna e cheia de crença, ora aziaga e tomada de oportunistas, como já se antevê deste computador.

Um


Olho para dentro de mim e sinto uma saudade inexplicável, uma lágrima que rola do nada e não sai aqui reflectida na solidão dos espelhos. Foguetes, buzinões, serpentinas, gargalhadas. Na televisão, o último despacho sobre a tragédia no sudoeste asiático. Pode ser um mau presságio? O que me deu agora para a fantasia de vidente? Leio uma crónica de Millôr Fernandes e desato numa grande gargalhada. Este país vai ser PDM e o Pranchinha mune-se de engenho e arte para escrever a grande saga. Este país é imparável, meu companheiro. Rumo às praias de um futuro aberto, como diria Gilberto Gil. Dentro de mim, há mais livros de poesia, palavras turbinadas e metáforas fervilhantes, textos e mais textos, nesta fuga substantiva. Uma musa, projectada desta saudade inexplicável, haverá de ler, mais sancionada pelo destino que impressionada com o desatino, os sonetos por vir. Os leitores (no arrasta-pé do fim-do-ano) que me perdoem a decadência…


Dois

Quer dizer que as idas às crónicas eram mais uma questão de exercício de ódio do que a higiénica leitura dos semanários à sexta-feira. A dita pegava nos jornais e folheava-os até à última página. Depois, Freud explica, confidenciava-se com a amiga: ei-lo, o atrevido, convencidíssimo da silva, armado em carapau de corrida, só pode. Está visto que ela – musa eterna ou feiticeira de cor morena – não morria de amores pelo colunista e declarara uma guerra-fria e surda ao coitado do Pranchinha que, alheio ao fastio que provocava, ia dizendo das suas sobre o país real. O Pranchinha, ó infeliz, foi formatado como um decalque de Sancho Pança, mas de tanto frequentar os cafés da capital, onde todos viram experts de qualquer coisa, arma-se vez por outra em Dom Quixote, o sonhador. E isso irritava a musa que o lia por toxicodependência, mas acto contínuo vomitava, pois, tirando o General Palanque, nas ilhas nada que reluz é ouro. E dizia, que ela ia às crónicas por uma questão de exercício de ódio. Entrementes, e agora a vender o peixe pelo preço que comprei, estou a escrever a tal crónica no jornal Horizonte em que a leitora procura odiar o cronista, porque no fundo, no inconsciente está apanhada na alma, e este sai da fotografia e dá-lhe um beijo de cinema. Amar é submeter-se ao êxtase do simples, ora. Um beijo daqueles, em que nos filmes de cowboys desemboca em The End!

Três

Ás vezes, escrevo coisas que eu próprio não subscrevo, depois de as ler. Para quê tanto azedume, num mundo já de si pornográfico de guerra e miséria? Outras vezes, no esconderijo deste computador, reconstruo letras, sílabas, palavras, frases, a ver se me sai um texto de acariciar os espíritos. Al Berto, na tecitura da escrita, confessara que: aceito ainda o mistério das palavras que me cercam e não coincidem, em nada, com a realidade. Mas fiquemos, pelo menos agora, com este travo de realidade. Bonita é a abelha que rouba o pólen à flor. O resto…são as horas que desaguam, transbordantes, em 2005!

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