100 îlots de...
Flagrei-o na Rue du Rhone, que para além de nome de rio - Ródano, em português -, é vale que vai da França para se aninhar na enquistada Suiça, mais precisamente na cidade de Genebra, em puro e imenso lago. O cartaz assaz flagrado, propaganda corriqueira de uma cadeia de supermercados, anunciava 100 de pães, 100 de legumes e 100 de ovos, e, já agora pela vidraça do autocarro #20, balbuciei S/Cem Margens, que fora uma coluna de crónicas minhas no extinto jornal Horizonte, e As Sem Razões do Amor, poema do imenso Carlos Drummond de Andrade, cujos versos calham bem postar em Dia Mundial da Poesia. Enquanto o autocarro #20 percorria, na entremeada cosmopolita dessa artéria chique, cujas lojas são para magnatas árabes, políticos africanos e mafiosos de papel passado, fui imaginando o 100 de tudo pela minha vida, ora de repente mais contente, como o fui outrora aliás pelos graciosos passeios no Jardin des Eux Vives. Nesse mesmo dia, privara com Annie Viera de Mello, viúva de Sérgio Vieira de Mello, assassinado em atentado terrorista num tristíssimo dia em Bagdade, quando em missão de paz sob a bandeira das Nações Unidas. Fomos juntos ao Cimetière des Rois, Plainpalais, velar a campa do grande diplomata brasileiro. Ocasião para dividir as rosas, doravante fora pétala a pétala, pelas lágides (e respectivos epitáfios) de John Calvino, Jean Piaget e Jorge Luís Borges. Em verdade, desconheço a razão porque o número 100 me convida a certas inconfidências...
O último tesão
Neste dia pródigo, porque à poesia dedicado, a minha lembrança vai para Fernando Assis Pacheco, de quem me tornei amigo e correspondente a partir do Simpósio sobre Cinquentenário da Claridade, em 1986, na cidade do Mindelo. Não que Fernando Assis Pacheco tenha sido o melhor poeta conhecido, mas porque dos "paraliterários", como também me assumo, ele era sem dúvida o expoente máximo. Já de haver escrito "Guarda o último tesão/para mandares/meia dúzia de canalhas à tábua", autêntico testamento, servindo a carapuça para a parvónia, o homem ganhara a minha veneranda amizade. Em adiantadas vezes de encontro, quase sempre por Lisboa, falávamos da poesia e passávamos em revista alguns dos restaurantes mais implacáveis. O último havia sido um arroz de lampreia, no Solar dos Leitões, cujo travo castiço não se recomenda a qualquer um, mas, para os de bom siso e razoável recto, um verdadeiro poema esse apimentado prato.
Clube do Bode
Acompanhei de perto, e como bom amigo, o processo arisca e encantatório que deu no livro "Sintaxe do Desejo", de Dimas Macedo. Este me franqueara as portas e me permitira os meandros da cidade de Fortaleza. Conheci, frequentando em pleno direito, os salões e os bueiros dessa capital cearense, tendo por egrégio azimute as reuniões da Sexta Literária e do radical Clube do Bode, em sábados caudalosos de boa boemia. O Clube é uma resistente agremiação de poetas, músicos, artistas, políticos e leitores em geral, criada pelo Pai-de-Chiqueiro mor e editor dos caprinos, Sérgio Braga, no dizer do escritor e também amigo Airton Monte. Fora ali ocasião para o grogue de Santo Antão, verdadeiro orgulho nacional (ora em confraria, com entronização, coisa e tal), destronar a cachaça do mui amigo Lúcio Alcântara, ex Governador do ceará, produzida nos seus alambiques de São Gonçalo do Amarante. Com perdão deste aparte, o Dia Mundial da Poesia é dia em que me lembro com saudade e com afecto o "quanto de virada" o deu este criar literário que, ainda modesto, se permitir o azo às frutas. Enquanto Dimas Macedo, em táctil, gustativo, visual e olfactivo das suas vivências corpóreas e da alma, refazia "Sintaxe do Desejo", eu, no linho de iguais sentidos (e crenças, já agora), compunha na cesteira do meu íntimo banquete o livro "Das Frutas Serenadas".
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