O Primeiro-Ministro de Cabo Verde tem estado sob um autêntico "civilian oversight" - uns a aplaudirem, outros a deplorarem, mas poucos a analisarem -, mercê da sua inclusão de jovens ditos “thugs” como parte de um diálogo necessário na busca de soluções para o surto da violência urbana.
Nos últimos tempos, a sociedade cabo-verdiana assistiu ao surgimento eruptivo do fenómeno da violência juvenil no contexto urbano. Sendo novo, em termos até de magnitude, a sociedade tem-se mostrado despreparada perante tal fenómeno.
As respostas policiais, apesar de necessárias, diria mesmo, de muito necessárias, têm sido no entanto insuficientes, ainda que muitos cidadãos reclamem o tempo todo por respostas mais musculadas e punitivas. A par disso, eles vão também securizando, como podem, os espaços de residência, de lazer e de trabalho.
Um indicador expressivo da insegurança reinante é a consagração da segurança privada. A profissão de guarda tornou-se, em pouco tempo, algo muito comum e parte integrante da paisagem urbana quando, há uns anos, ela só fazia sentido em poucos edifícios públicos e comerciais.
A mudança de estilo de vida imposta pelo fenómeno criou na sociedade um profundo ressentimento e o fenómeno que lhe é correlativo, o da estigmatização do alegado delinquente. A sociedade chama-lhe de “thug”, corporizando assim a sua rejeição, o seu medo e a sua condenação. Mas, às vezes e em rasgo de reflexão mais demorada, perguntaria se o ressentimento não é recíproco, se o “thug” não é simultaneamente agressor e vítima?
Nesta relação entre os jovens de comportamento violento e a sociedade é preciso haver quem encare a sua acção além da necessária intervenção repressiva.
Que admita ser necessário liderar um novo modelo social para a juventude que passará seguramente por conhecer todos os meandros da problemática e não a uma tomada de posição musculada e pontual, baseada exclusivamente em medidas policiais, judiciárias e penitenciárias.
Que entenda que, além da utilização da força e vigilância policiais, com propósitos dissuasores, há que se usar a persuasão, o diálogo e o conhecimento recíproco.
É preciso que haja quem, para intervir de modo eficaz, recuse a transformar o dito “thug” num pária, num intocável no sentido de casta, num dálit, nem o reduza a um simples caso de polícia e de conflito com a lei; mas, antes, tenha coragem (e dimensão estratégica) para fazer dele também um interlocutor na busca de uma solução duradoira e sustentável.
A lei da física reza que toda acção provoca uma reacção. Assim, não poderia ser diferente neste cenário antes de tudo sociológico, mormente, quando nos referimos à violência urbana em latu sensu.
O caso francês, por não ser muito distante, me parece de alguma nota. Num passado não muito longínquo, dizia, um enorme surto de violência urbana, com forte componente de delinquência juvenil, tomou também conta da França. A explosão começara num bairro periférico de Paris, depois tomara conta da Cidade-Luz e, pouco tempo depois, alastrara-se por toda a França. De repente, esse país europeu viu-se literalmente “incendiado” pela ira dos jovens, na sua maioria imigrantes de segunda geração, que reagiam às políticas sociais excludentes e à ghetização dos bairros suburbanos.
Dominique de Villepin, chefe do Governo na altura, adiara várias visitas de Estado para resolver esta situação, decretando um autêntico “estado de emergência” e a "mobilização" do Executivo para "garantir a ordem pública", prometendo "firmeza e justiça" na resposta à situação de "bomba-relógio social" que a situação indicava. A primeira reacção do então Ministro do Interior Nikolas Sarkozi, foi de resposta policial enérgica. Acto contínuo, foi de resposta judiciária e penal, inclusive várias deportações.
Nessa busca imperiosa de soluções mais estruturantes, a voz autorizada do Presidente Jacques Chirac clamara sobre o País: "É preciso serenar os ânimos", sublinhando que "a ausência de diálogo [com a população dos bairros problemáticos] poderia gerar uma situação perigosa e de uma instabilidade sem precedentes". O Chefe do Estado pedira ainda ao Governo para firmar, através do diálogo, um “pacto social” com todos os intervenientes da problemática, inclusive os “jovens revoltosos” e que apresentasse, "no prazo de um mês", propostas para "acelerar e reforçar" a eficácia das medidas sociais contra a exclusão e a favor da igualdade de oportunidades.
Por conseguinte, mutatis mutandis, encaro a postura de José Maria Neves como uma abordagem, um método e uma estratégia, na linha da complementaridade às medidas policiais, judiciárias e penitenciárias, ora em curso. Não se trata aqui de se render à criminalidade, nem de se “empoderar” a delinquência, mas sim de acrescentar às medidas da lei e da ordem, aquelas que transformem o problema em problemática e propugnem soluções de reestruturação social.
Em primeiro lugar porque, até se provar inequivocamente o contrário, a violência juvenil provém também de um défice de reconhecimento social. Muitos dos ditos “thugs” são adolescentes que foram invisibilizados na família, depois de algum desaire, na escola, depois de algum insucesso, no grupo de vizinhança, a seguir a alguma experiência traumatizante. Até se provar o contrário, trata-se de gente a quem faltou auto-estima ao longo do processo de socialização. Porque tiveram dificuldades de diálogo com pais ou com parentes adultos, não estiveram em posição de comunicar aos professores as suas dificuldades de aprendizagem e de adaptação à instituição escolar, não conseguiram transmitir as suas habilidades a um possível empregador. Enfim, a incomunicação marcou-lhes negativamente.
Assim sendo, eu pergunto se muitos deles não são, no fundo, ávidos de serem ouvidos, escutados e serem reconhecidos como “parceiros” na resolução dos seus próprios problemas. Há um livro que li ainda estudante, que se intitula “Como Eles se Tornam Delinquentes?”. Preciso relê-lo. Nele, o autor mostra-nos os complexos meandros sociais e psicológicos da construção do delinquente. O delinquente não dorme e acorda delinquente. “O delinquente nem sempre se torna, mas muitas vezes é tornado”, já dizia o meu amigo Crisolino lá de Belo Horizonte, hoje figura destacada na arte e no activismo social. Não há nada simples e linear nesta questão.
Entrementes, a explosão da violência urbana é um fenómeno que emerge dos bairros degradados, com problemas de saneamento, água e energia, saúde pública, transporte, habitação e policiamento. Nestes bairros, a maioria das pessoas está desempregada ou sub empregada. Há aqui uma relação causal entre a exclusão, a pobreza, e a origem da violência. Há aqui claramente uma problemática social que não se resolve apenas e redutoramente com medidas de coação. O fenómeno é social, exigindo um olhar sociológico.
Ao encontrar-se com os jovens ditos “thugs”, o Primeiro-Ministro teve uma atitude ousada, mesmo a risco de ser mal compreendido. Mas, como líder de uma sociedade preocupada com a violência, será que não teve a coragem extrema de fazer um gesto que “desestigmatiza”, que reconhece e reabre canais de diálogo hoje entupidos?
Para mim, foi um gesto de alta política. De grande estratégia de acção. Alguém terá dito, em jeito de censura, mas não deixando com isso de revelar um certo preconceito elitista, que os “thugs” não eram uma instituição para que o Primeiro-Ministro se encontrasse com eles. Será que elegemos o Governo para se resumir aos encontros institucionais? Quando Nelson Mandela entrava nos “tenebrosos cantos” de Swetto para “conversas pedagógicas” com os jovens em conflito com a lei, estaria ele a desviar-se das suas obrigações institucionais? Temos acompanhado as incursões do Mayor Menino, em Boston, pelos bairros de Dorchester, de Roxbury e de Mattapan, considerados problemáticos, tentando conhecer os “jovens problemáticos” pelos nomes, muitos deles cabo-verdianos, e levando-lhes soluções de integração e de “reeducação”. E esta? O mesmo vem acontecendo com os governantes portugueses e as edilidades da Grande Lisboa que entram nos bairros da Buraca, da Cova da Moura e da Reboleira para encetar uma plataforma com os jovens e os líderes locais, muitos deles também cabo-verdianos, na procura de soluções urbanas mais estáveis e mais integradoras. E os exemplos são muitos e inumeráveis de abordagens dialogantes que aditam à lei e a ordem soluções de assaz semelhança estratégica. Sem preconceitos, minha gente.
O pensamento de algum mainstream local tende a “invisibilizar” aqueles que não têm enquadramento institucional. Será isso completamente certo? Duvido. Outro achou que o gesto poderia pôr em causa autoridade do Estado, por eventualmente transmitir que se estava perante um acto de negociação com quem, afinal, viola a lei e os valores da sociedade.
Para mim, repito, o PM diz duas coisas: que condena a violência, mas preza a juventude. A primeira é inequivocamente condenável e como tal deve ser combatida. A segunda, os jovens…eles são nossos.
Um artigo de jornal diz que há meio milhar de thugs em Cabo Verde, uma inferência baseada em estatísticas policiais ou em dados sociológicos puramente matemáticos, numerário que parece não levar em consideração outras variáveis tão ou mais importantes para a compreensão da problemática. Precisamos de análises com uma dose de complexidade que permitam “salvar”, pelo diálogo e olhos nos olhos, esses jovens do “thuguismo” que os condiciona e os faz viver à margem das oportunidades que o País já permite. Como diria o escritor Arthur Koestler "as estatísticas não sangram..."
O Governo terá de agir com firmeza contra a criminalidade, procurando conciliar diálogo com todos os jovens, inclusive aqueles em conflito com a lei, e apelar à Paz Social com a necessidade de manutenção da ordem. Diálogo com todos os jovens, repito, pois eles são nossos.
Caso contrário, seria deitar fora o bebé juntamente com a água do banho. Um jogo em cima da linha. O Primeiro-Ministro faz jus à sabedoria de que não se pode enxugar o chão com a torneira aberta. Quando se faz assim, corre-se o risco de incompreensão.
A crise económica internacional e a consequente redução pontual do fluxo turístico não permitiram o crescimento a dois dígitos e a redução do desemprego a um dígito, mas a economia cabo-verdiana, mercê das almofadas financeiras e macroeconómicas criadas, ficou à tona da água e a dar sinais de continuar a navegar. O óbice do desenvolvimento, a ser, sê-lo-á social, se entretanto não estancarmos a tendência da VIOLÊNCIA URBANA. E este quadro de instabilidade terá de ser entendido como a tal “bomba-relógio social”, antevisto pelo então Presidente Jacques Chirac em se tratando da França. Em verdade, um ponto crítico, um desafio a ser vencido – e com urgência. E, no nosso caso, o "civilian oversight" apreciará a virtude da política quando propõe a força da razão ao invés da razão da força. Pois é, Zé!
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