segunda-feira, 6 de março de 2006

Linda cotovia

Nota para Dolores


Vejo o sol a pôr-se em raríssima beleza e a minha tristeza é uma existência…com poesia. Chamava-a, com respeito e amizade, “linda cotovia”, mercê de uns versos de Xavier Villarutica, poeta mexicano. E a minha amiga dizia amiúde versos de Pessoa quando a ocasião prometia balbuciá-los. E foram poucos, mas bons, os momentos de encanto em que pude com ela falar sobre os livros que, pela fantasia, nos apanharam pela rama. Os livros de Miguel Torga, dizia-me ela. E eu insistia que lesse os de João Ubaldo Rodrigues, devasso das vestes que aprisionam certos intelectuais. E aplaudimos juntos Lauro Moreira, na residência do Embaixador Victor Gobato, a recitar, em eloquente verve, “Alguns Toureiros”, de João Cabral de Melo Neto. Ou tão simplesmente, com uma candura de pássaro, “Estiagem”, de Jorge Barbosa. Pois é, Lica era uma alma boa, doce e pacífica. Uma alma poética. E, sempre que morre alguém próximo da minha saudade, fico a flutuar no pensamento e, sem alarde, deixo a minha solidão ir ver o pôr-do-sol.


Fome


Inaugura-se o Monumento à Fome e às Vítimas do Desastre da Assistência, numa das rotundas da capital. É um obelisco em tríade, a representar a família nuclear cabo-verdiana, disposta de forma concêntrica numa procura de céu…e de eternidade. Os obeliscos são assim: agudos, dramáticos e desafiadores. A cidade irá entender pouco a pouco o significado do Monumento e recriará a partir dele um traço mais estético (e mais futurista) para o espaço. A Fome continuará, por muito tempo, a ser uma referência em Cabo Verde. É uma experiência traumática e matricial inscrita na psique de todos nós, mesmo daqueles que insistem no esquecimento. Assim, no imponderável da velocidade das luzes e dos automóveis, faça sol ou lua, nuvem ou Juno, a nossa memória se sublimará em beleza neste chão da República…


Albatrozberdiano


Entrementes, alguém entoa uma melopeia triste e não consigo identificar quem seja. Sempre a medo de serem as sereias, das que cantam à aventura peregrina, amarro-me ao mastro da minha imaginação e sigo a viagem. Não me importa o que os deuses pequenos pensam dos dias. Estes (os dias, naturalmente) passam indiferentes aos grandes e desaguam sempre na profundidade do destino. Quem souber doutra margem, atire aqui e agora a primeira pedra. Ou tão simplesmente ria o seu riso sapiente que a própria vida tem os seus cabelos brancos. Mas não se julgue ingénuo e abrutalhado este fruto das vinhas. Tem-se nesta hora os dentes todos na boca. E o que era doce acabou: o Supremo já deu o seu veredicto e a Vénus de Milo, como diria Arménio Vieira, está gorda. A partir de hoje, entra-se no realismo pesado e a poesia, a pouquíssima então, desvelar-se-á pelo ralo. Eu já não acredito nas manhãs que cantam. Infeliz, mas lúcido, farei sozinho a minha longa estrada. Sem lenço, nem documento…

1 comentário:

Mário Vaz Almeida disse...

Os poetas sangram o caminho para que outros aí vejam uma marca para o seu próprio percurso.

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