quarta-feira, 4 de maio de 2005

Uma questão de alma moderna

por Filinto Elísio





Em tributo à “alma moderna” de António de Paula Brito, Pedro Cardoso,Eugénio Tavares e Luis Loff de Vasconcelos



Com o coração na mão


Neste processo de oficialização do crioulo, vozes, aqui e acolá, prós e contra, dirão da sua justiça e contribuirão para prossecução do debate necessário que importa revigorar. O dia é agora e o lugar é aqui. E, antes de mais, importa reafirmar que a padronização da língua (não confundir com imposição) pressupõe obviamente, em exacta dimensão e proporção, a ideia de ser a nossa unidade estribada na nossa língua materna, como ela é falada e cultivada em cada espaço e em cada região do nosso país. Mais do que isso até: em cada comunidade mais ao largo da nossa nação. Em todos os tempos e lugares, o afrontamento da língua nacional se coloca em determinado momento do desenvolvimento. Sobretudo, em momentos de pique do desenvolvimento humanista, como é o que se vive hoje em Cabo Verde, 30 anos passados sobre a nossa Independência Nacional. E o processo de afirmação linguística nunca foi feito em águas serenadas. Língua tem a ver com cultura, poder, afirmação e coisas afins, de modo que envolve princípios e interesses, tanto convergentes como divergentes...


Processo que vem do antanho


Na Europa, por exemplo, a oficialização das línguas nacionais deu-se na sua maioria durante o Renascimento, momento no qual os principais países abandonaram as estruturas - económicas, sociais, culturais - feudais e entram na fase moderna. Com o fim da Idade Média os romances falados passam a afirmar-se como línguas escritas e de cultura; o francês, o italiano, o castelhano, assim como o português, passam a ter, por diferentes processos, o estatuto de línguas oficiais. Era o latim a língua escrita por excelência; as línguas nacionais foram se constituindo, como se depreende, em variedades orais. Elas passam por um processo gradual de legitimação que inclui a homogeneização das formas de escrita e a escolha de uma variedade padrão a ser transcrita. Este processo de ‘padronização’ das variedades “nacionais” vai culminar na formação das línguas nacionais. A formação do português como língua nacional está, naturalmente, contextualizada nesse processo mais geral do desenvolvimento renascentista europeu. A língua portuguesa afirma-se no período dos descobrimentos em que Portugal teve um papel central na Europa, especialmente no que tange às inovações técnicas ligadas à navegação e aos conhecimentos geográficos. É nesse contexto de humanismo que surgem as primeiras gramáticas: a de Fernão de Oliveira em 1536, e a de João de Barros em 1539.


E o quiproquó que aquilo deu?


Também em Portugal, a questão não foi pacífica. As peças em defesa da língua portuguesa tinham de passar por três instâncias censórias antes de serem licenciadas: o Santo Ofício, o Ordinário eclesiástico e o Paço. A gramática de Barros foi listada no index de obras proibidas; Fernão de Oliveira foi preso e condenado pelo Tribunal do Santo Ofício. Isso, para desdramatizarmos um ou outro frisson que o processo de afirmação línguística possa provocar nestas paragens...


A palavra dos outros


Este processo de afirmação línguística, desde o antanho, tem defensores respeitáveis. Vejamos, por exemplo, o que diz a voz abalizada de Aristides Lima, Presidente da Assembleia Nacional, sobre a problemática (é de dar a palavra aos outros, note-se): “O poder político tem urgentemente de fazer mais do que fez até agora. Ele está convocado a, eventualmente, fazer o seu exercício de desalienação cultural. Ele está convocado a reconhecer à língua mais falada pela comunidade cabo-verdiana um estatuto de igual dignidade que o português. Ele está convocado a reconhecer a cada um de nós o direito ao ensino em língua cabo-verdiana, ao lado do direito ao ensino em português; a reconhecer o direito do uso do crioulo em correspondências e documentos oficiais e, ainda, o direito a um presença equitativa do crioulo nos meios de comunicação social do Estado. Isto não é nenhum favor. É tão somente escutar o imperativo do direito humano à língua e reconhecer o direito à igualdade das duas línguas que caracterizam a nossa cultura.”


O bilinguismo é uma valência


O processo de afirmação da língua cabo-verdiana, sobretudo, o processo da construção do bilinguismo cabo-verdiano, prima-se pela busca de um consenso amplo, alargado e participado. Um processo que observa sensibilidades e competências, factores socio-linguísticos e histórico-linguísticos, oportunidades identitárias e de desenvolvimento. Um processo construído de há séculos e que atinge o ápice do debate, agora que o país faz 30 anos da Independência Nacional. O bilinguismo não é um dilema, nem uma dicotomia, mas uma realidade ambivalente com soluções para os desafios de Cabo Verde. Por ser uma ambivalência enriquecedora, importa potenciá-la. A padronização escrita do crioulo e a democratização do português são dois passos importantes no processo de construção nacional. Outro passo, não menos importante, seria a elaboração do crioulo-padrão que deverá se sobrepor à multiplicidade de variantes da língua no arquipélago, constituindo-se como um novo símbolo de unidade no país. Por isso, haja diferença, mas com serenidade; contradição, com boa-fé...em face de um desígnio histórico. E o melhor laboratório para tal padronização é a sua socialização no Ensino (o Superior, sobretudo) e na Comunicação Social. E o seu óbvio reconhecimento de língua paritária na Administração Pública. Outrossim, não estamos em tempo de imposições. Nem as da maioria, obviamente. E muito menos as da minoria, como fora norma nestas ilhas, antes, de colonialismo e, depois, de auto-colonialismo. De facto, o grande Albert Einstein tinha razão ao dizer que “é muito mais fácil dissecar o átomo do que desenraizar preconceitos”. Por isso, faça-se o caminho a caminhar, desintegrando o átomo de certos preconceitos. Numa autêntica (e desta feita genuína) largada de consciencialização. Já ninguém aceita ser auto-colonizado nestas ilhas, venha esta maldição sob a roupagem que vier e este vaticínio da boca de quem vier. É que “o dia nasceu”, como diria o poeta Mário Fonseca...

1 comentário:

Kamia disse...

Fala da elaboração de um crioulo-padrão. Acredita mesmo que tal seja possivel? Principalmente a nível oral? Será que o badiu e o homem de S. Nicolau algum dia falarão e escreverão o mesmo crioulo? E entretanto, não se correria o risco de empobrecer a nossa lingua materna?