quinta-feira, 26 de maio de 2005

Variações VI

Por Filinto Elísio



Glosa, mote et cetera

Estou a vê-los desta janela da alma, como se assistisse ao espectáculo do mundo. Todos desfilam agora que a vida nasceu e ninguém poderá parar este pais nesta dinâmica. Hei-los, jovens do milénio, alegres e ruidosos, no «façam barulho» do Festival do Gamboa. Há uma poesia em tudo isto, há emoção preservada nesta memória de quem soube este pais bem mais deprimido. Quanto caminho percorrido. Estou a vê-los, uns aos beijos, outros aos gritos, e o pais esta cada vez mais na moda. O meu eu existencial fica neste turbilhão de imagens. Exteriores e interiores. A esfera (outra, que não se estratifica) derrama em mim uma estranha contenção. Onde estarás, minha alma plena? O incauto achará que estou numa fase romântica (e se estivesse?), mas não...ando, sim, a recear que o pássaro desenhado deste quadro (reprodução rústica de uma tela de Picasso, explique-se) saia da moldura e se torne realidade. Alguém há de me achar no mínimo esquisito, mas tu saberás que, para lá deste premeditado, eu sou livre. LIVRE!


Belo Horizonte como era

Belo Horizonte era uma cidade linda. Ladeada de serra, num vale verdejante, onde as avenidas corriam ao som da música sacra. Estávamos os dois profanos, sentados no barzinho da Rua Tupis, e lá vinha o repentista com os seus versos de cordel. Ele emparelhava as rimas e vertia o poema com a mesura do garçon no seu serviço de mesa. Ora, ao Parque Municipal a ver os cisnes que lembravam os poemas de Anna Ahknatova, ora, no Palácio das Artes a debater os filmes de Kurosowa. Quando não eram longas conversas sobre a Classificação Decimal Universal ou, então, a professora Janet a jurar que a Biblioteca de Babel, de Jorge Luís Borges, era uma síntese entre a antiga Biblioteca de Alexandria e a moderna Biblioteca do Congresso. E aquele professor de História da Arte que só podia ser maluco! Mas que, ao tempo do mundo polarizado com o vergonhoso Muro de Berlim ao meio, dizia existir em cada cultura um capital especifico de valores. A cultura mantém a identidade humana no que ela tem de singular, dizia. Lembras-te do campus da Pampulha? Do Lago da Pampulha e daquele complexo arquitectónico assinado por Oscar Niemayer? Linda era a cidade de Belo Horizonte...

Os fantasmas da nossa voz

Este país começou a comemorar o seu Trigésimo Aniversario da Independência Nacional. Comemora-o, porque, para lá dos jargões políticos, a soberania aqui foi um dos motores do desenvolvimento. Cabo Verde tem, a meu ver, três recursos estratégicos, todos derivados do seu factor humano, nomeadamente, a cultura, a memória sublimada da fome e a boa imagem externa. A configuração geoestrategica é outro recurso importante, mas a historia diz-nos que, por vezes, ela tem servido para o trafico de escravos e para os apetites da planaterização do mundo. Falando nisso, nem te conto que há dias foi aqui apanhado um barco a zarpar com clandestinos da África Ocidental. A canalha chama-os aqui de mandjacos. Algo me perturba nisso tudo. A cena de quase uma centena de homens negros presos, em situação concentracionária e, depois, deportados em decisão sumaria, tudo isso me deixou pensativo. Isso mexeu com os meus insondáveis precipícios, confesso-te. Devo estar só, sozinho, a lamentar a sorte colectiva desses infelizes, embriagada esta opinião publica pela vitoria do Benfica e pela remota, mas masturbante, possibilidade de virarmos Europa. Agora, baixinho para que a rabentoleira não nos ouça, às vezes, tenho medo dos fantasmas da nossa voz. Ou do nosso pensamento. Outras vezes, estou mais positivo e seguro. Como o Esteves sem metafísica, diria Álvaro de Campos, no Tabacaria. Tu não me entendes. Eu também não me entendo tão categoricamente...

Tudo o que arde

Soube, por intuição apenas, que ainda continuas de vigília. Nessa mesma janela que dá para o mundo. Os barcos, presumo, entram e saem da baia. E nem sei se sabes daqueles últimos versos do Ode Marítima, de Álvaro de Campos. Se sabes, queria, agora como nunca, que dissesses cada palavra desse belo poema até ao derradeiro barco na neblina. E o que queres tu que eu diga? De repente, esse pássaro entra no meu calendário e tudo torna-se muito louco. Carregamos todos esta grande complexidade, um tanto ao quanto halográfica, pois vamos sendo, paradoxalmente, sapiens e demens, faber e ludens, empiricus e imaginarius, economicus e consumans, prosaicus e poeticus...Quando Deus fez o Verbo no começo de tudo, a escrita não surgira no seu frontispício. Espero-te em todos os lugares. Quando não te vejo – de ausência minha ou tua -, pressinto-te nos recônditos momentos de estar. E de ti falo o tempo todo, como se fosses tudo o que arde. Mas, se apareces, às vezes, triunfal e poderosa, outras vezes, temerosa como qualquer mortal, dou comigo a inventar metáforas para que nos teus olhos cintilem as estrelas impossíveis. Despeço-me, sem dizer-te adeus, a cada crónica semanal. Teremos quiçá um encontro marcado. Oh, como apetece exorcisar este castelo de hábitos e certezas. O afecto faz o nosso monge. O mapa oculto tem-no escrito algures cá dentro. E tenho-te pressentido, minha alma plena, desde o começo de tudo. Continuas a ser tudo o que arde...

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