1º Momento (manhosa era a lua, com poesia)
Manhosa era a lua intrometida nas nuvens. Errante, andante, minguante, como nessa música de Princesito. Manhosa a voz de Mayra Andrade, naturalmente. Manhosa a onda que, meia-noite, brincava aos pezinhos nossos na praia do Mangue. Manhosa a manhã que abria, com o sol que ainda nem queimava e cantava o galo imperceptível das recordações. E à cristalina clarabóia que a tarde empresta e à neurastenia barbosiana desta hora, leio agora, com vagar, Poemeto Erótico...de Manuel Bandeira!
É puro como nas fontes
A água clara que serpeja,
Que em cantigas se derrama...
Tão bom poder declamar, ali à beira da piscina, entre gente interessada e bonita desta hora, os versos de Manuel Bandeira. Parecia ali estar a musa mais procurada, de repente reencontrada, aninhada entre os presentes. Dona do meu imaginário, com seus olhos de amêndoa verde e sua pele moreníssima, a cintilar cá dentro a minha infância. Esse atónito e obsessivo desejo. Águas a transbordar cá dentro. E nada está certo neste lugar de não estar.
Teu corpo é tudo o que brilha,
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa, flor de laranjeira...
Ali estava ela, a poesia. Estava ali, consubstanciada em tantas outras, sorridente e poderosa. De Manuel Bandeira, Lauro Moreira, embaixador e director da Agência da Cooperação Brasileira, amigo íntimo, companheiro no vate e na palavra, que fora. Mas de Jorge Barbosa, alma gémea de Bandeira, ele nos confessara pena, muita pena mesmo, de não o ter conhecido em vida.
O Embaixador do Brasil em Cabo Verde, Victor Gobato acabava de “transformar” a sua tão diplomática quão deliciosa residência em centro cultural. Espaço de música e poesia. Tertúlia preto no branco. Se há discurso, ele vem solto. Salpicado de humor. Apetece fazer um grande manifesto cultural e marcar, em definitivo, o lugar. E a hora.
Lauro Moreira manda calar o momento (primeiro, como está aqui nomeado) e declama Navio, de Jorge Barbosa. "Leva-me contigo / navio // Mas torna-me a trazer" porque, embora haja em todos nós um incessante navio "que nunca partiu, que nunca partirá", a poesia dita, com tanta mestria e coração, nos petrifica no cais da palavra...
2º Momento (Machado de Assis e eu não estou)
Dia seguinte, para ser mais exacto. Percorro a avenida e na rotunda o bronze de um homem nu. Homem de Pedra, chamam-no. Aprimorado por uma noite de vento, desse vento imaterial que galopa. A intensa avenida de crina silenciosa de quando se sai do trabalho. Apetecia-me pastar noutras paragens. E eu esquecido que Lauro Moreira dava um autêntico recital sobre um dos meus favoritos, Machado de Assis, escritor de sanha atenta e de verve de tanta nomeada. Padre António Vieira e Machado de Assis. Dos modernos, se não estou neurasténico, Gabriel Garcia Marquez e parem vocês de se armar em intelectocratas de café. E vou, ao volante do velho Starlet, balbuciando o Soneto de Amor e Sóis, de Ruy Espinheira Filho:
de água cintilante de tão negra,
eram teus olhos de água luminosa
como só umas raras dessas brisas
chamadas alma, eram os teus olhos
Poesia é uma mulher imaginária que dança. Sob o seu véu, mamas sem a artificialidade de um silicone. Ou não?
Chego a casa, com o fim do dia a pesar sobre os ombros. E a necessária réstia de energia para dar mimos ao Pablo. Roubo-me momentos para ler um conto de Machado de Assis – A Mulher de Preto, no caso. Penso no casal Gobato, que a diplomacia brasileira deve muito e a cabo-verdiana mais ainda. E como estaria Lauro Moreira a discorrer sobre Machado de Assis nesse preciso instante, no Palácio da Cultura Ildo Lobo? O mestre que assim escreveria: Por que acabaremos no primeiro capítulo? perguntou ele; um amigo não é coisa que se despreze, acolhe-se como um presente dos deuses.
3º Momento (hora quase severina)
Mais um dia, para quem quiser fazer o roteiro deste filme...Pude conversar longamente com Lauro Moreira. Sônia Gobato, embaixatriz e anfitriã, coloca-nos na mesma mesa. Éramos quatro nessa mesa: David Hopffer Almada e Dolores Vasconcelos completavam a quadrilha. Falou-se de tudo um pouco. Do Brasil e de Cabo Verde. Os pergaminhos de uma diplomacia sul-sul. Da complementaridade entre os dois países – um tomado de continentalidade, outro lançado na sua insularidade. Ambos com fome do mundo. Um por ser demasiado grande. E outro, demasiado pequeno. A súmula dos dois mundos. O integracionismo antropofágico das nossas culturas. E, obviamente, da poesia. Dos poetas. Do poeta João Cabral de Melo Neto, em particular...
o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida
Embarco, como Jorge Barbosa outrora fizera, numa circundante e nostálgica viagem. Alguns Toureiros, de João Cabral de Melo Neto, com fina entoação e sem poetizar seu poema, dito por Lauro Moreira. Arre que não consigo ser cronista bem comportado! Logo agora que entro (sinto-o a cada pulsar) nesta fase “manhosa”...
1 comentário:
Elísio.
Regozijo.
sua verve é fundamental.
criar um roteiro labirintico onde as cenas podem se entrecruzar, seria fantastico!
Não há necessidade, mas apenas sons, tonalidades e indiferenciações que surgem (aleatórias).
as imagens a se concatenar no istmo de um não–entender, uma improvisação de visão que deriva de uma sonata, toque rápido para poucos instrumentos ou, pelo menos, toques agonísticos, pouco vitais, que se ouvem no corpo-eco de cada participante.
te abraço
afonso alves
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